quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

OUTROS CONTOS

«O Quarteto dos Agostinhos», por Eveline Sambraz.

Por aqui- «OUTROS CONTOS», (1ª Parte - Peças Soltas no Interior da Circunferência).
Poet'anarquista 
«Eva Potra»
A Amiga d' Évora/ JPGalhardas

76- «O QUARTETO DOS AGOSTINHOS»

(2ª Parte - Peças Soltas no Interior da Circunferência)

Eva Potra

(Onde se fala duma pobre menina rica)

A Eva nasceu em Lisboa, no seio de uma família de grandes proprietários de terras que se espalhavam por vários concelhos alentejanos. Nunca viveu em Vila Viçosa, embora a família aqui possuísse um palacete. Esse palacete apenas era ocupado durante as várias feiras que se realizavam na Vila, nomeadamente em Janeiro, Maio e Agosto, assim como durante as Festas dos Capuchos e os feriados em honra da Padroeira de Portugal. Nos tempos restantes vivia num monte que se situava entre a freguesia das Ciladas e o rio Quadiana, mas já no concelho do Alandroal. Filha única, sempre foi muito protegida e mimada pela família. Quando terminou o ensino primário, continuou os estudos no colégio da Vila. Chegava diariamente, sempre em cima da hora de início das aulas, transportada por um automóvel com motorista que lhe abria a porta para ela sair. Almoçava no interior do estabelecimento, de um conjunto de lancheiras que continham a refeição, e que ficavam à guarda do contínuo. No fim das aulas, já o automóvel a esperava no exterior, com a porta aberta pelo mesmo motorista. Todos os dias assim era. Até que um dia .... a Chibía  –  com aquele desembaraço que a caracterizava  –  se fez convidada para o almoço. O atrevimento foi prontamente aceite pela Eva, que de imediato abriu as lancheiras e as deixou à disposição da mulata.

«Chíbia, a Mulata do Grupo»
Mulata em Rua Vermelha/ Di Cavalcanti

Estiveram mais de uma hora à conversa, enquanto comiam, naquela mesa de mármore, debaixo do grande plátano que dava sombra ao recinto do recreio. Repetiram a cena por duas ou três vezes. Numa dessas vezes até foi a Chibía que trouxe o almoço. Mais modesto, é verdade, mas comido com a mesma vontade. Passada que foi uma semana, a Chibía sentenciou  –  «A menina rica não é só a melhor aluna da turma, é também uma tipa porreira. Está na altura de a trazermos para o grupo.»  – E uns dias depois já eram quatro à mesa. A Eva passou a trazer almoços reforçados que acrescentavam o farnel das outras. De boca cheia, contrariando todas as etiquetas, todas querendo falar ao mesmo tempo, cruzavam-se expressões em duas línguas: português e espanhol. Nunca aquela mesa de mármore e aquele plátano, ouviram gargalhadas tão cristalinas e conversas tão sérias, levando em conta a idade das convivas: catorze, quinze anos. Rapidamente a Eva tomou o comando do grupo. Era a única que falava francês com desenvoltura, dando explicações às outras. A língua espanhola também não lhe era estranha, pois as propriedades da família eram todas junto à raia de Espanha, o que lhe proporcionava um contacto muito frequente com os espanhóis. Para a Carmen foi bom falar, volta e meia, na sua língua de origem. Mas o que mais espanto causou nas outras foi o tipo de leituras que já praticava. Nada de livrinhos cor-de-rosa, nada de “Corins Tellados”, e autores afins. «Essas leituras não ensinavam, apenas atrofiavam» – dizia ela. E foi através da Eva que conheceram Camilo Castelo Branco, Eça de Queiroz, e outros autores de que nunca tinham ouvido falar. Foi também com ela que, pela primeira vez, leram os sonetos duma poeta da Vila, de quem conheciam o nome, mas cujas obras andavam estranhamente arredias do conhecimento geral. Ou escondidas. Compreenderam melhor os interesses literários de Eva quando, numa tarde de primavera, esta as levou a sua casa. O monte era um enorme casarão, com uma magnífica vista sobre o rio Quadiana, onde uma grande sala tinha as paredes repletas de livros. - «A minha biblioteca» - dissera, simplesmente, a amiga Eva. A partir dessa data passou a ser a biblioteca de todas elas. Todas ali foram beber algum conhecimento. Foi, portanto, com naturalidade que ela assumiu a liderança do grupo. E foi também com naturalidade que as outras aceitaram essa liderança. 

«Quarteto dos Agostinhos»
Quatro Mulheres/ Di Cavalcanti

Assim nasceu o “ Quarteto a Perder-se nas Brumas dos Caminhos “. Durou três anos. Depois da tarde em que tiraram a fotografia no jardim dos Agostinhos, por consenso geral, mudaram o nome para “ Quarteto dos Agostinhos “. Levando em conta o destino de Eva, assim como de todas as restantes, aliás – pensou mais tarde a autora destas linhas – talvez a primeira designação fosse mais apropriada. Por volta dos vinte anos de todas elas, a vida teceu brumas em todos os caminhos. No que a Eva diz respeito, essas brumas encerravam desgostos e sofrimentos. Não para ela, que encarou esses desgostos e sofrimentos com alegria, coragem e determinação, mas para aqueles e aquelas que lhe queriam bem. Assim que entrou na universidade, iniciou a militância num partido que combatia o regime que governava o país. 

«As Brumas d' Eva Potra»
A Estátua, por José António Pinho

Presa várias vezes, voltava à liberdade, umas vezes, porque as acusações não eram graves, outras, porque a família utilizava os contactos que tinha e conseguia tirá-la dos calabouços da Pide. Na última vez que a prenderam, depois de passar à clandestinidade, mantiveram-na na cadeia durante vários anos. Sem julgamento. Uma das antigas companheiras do “Quarteto dos Agostinhos”, Eveline Sambraz, foi visita assídua durante essa fase da vida dela. Foi a revolução de Abril que a devolveu à liberdade. Ainda foi deputada depois da revolução. Morreu em 1990, de doença prolongada. Teve uma filha, a quem chamou Eveline, em homenagem à amiga que sempre a tinha acompanhado e apoiado. 

Foi a primeira do quarteto a desaparecer.
 
Eveline Sambraz

(Continuação...)

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