«Eva Potra»
A Amiga d' Évora/ JPGalhardas
76- «O QUARTETO DOS AGOSTINHOS»
(2ª Parte - Peças Soltas no Interior da Circunferência)
Eva Potra
(Onde se fala duma pobre menina rica)
A Eva nasceu em Lisboa, no seio de uma família de grandes
proprietários de terras que se espalhavam por vários concelhos alentejanos.
Nunca viveu em Vila Viçosa, embora a família aqui possuísse um palacete. Esse
palacete apenas era ocupado durante as várias feiras que se realizavam na Vila,
nomeadamente em Janeiro, Maio e Agosto, assim como durante as Festas dos
Capuchos e os feriados em honra da Padroeira de Portugal. Nos tempos restantes
vivia num monte que se situava entre a freguesia das Ciladas e o rio Quadiana,
mas já no concelho do Alandroal. Filha única, sempre foi muito protegida e
mimada pela família. Quando terminou o ensino primário, continuou os estudos no
colégio da Vila. Chegava diariamente, sempre em cima da hora de início das
aulas, transportada por um automóvel com motorista que lhe abria a porta para
ela sair. Almoçava no interior do estabelecimento, de um conjunto de lancheiras
que continham a refeição, e que ficavam à guarda do contínuo. No fim das aulas,
já o automóvel a esperava no exterior, com a porta aberta pelo mesmo motorista.
Todos os dias assim era. Até que um dia .... a Chibía – com
aquele desembaraço que a caracterizava
– se fez convidada para o almoço.
O atrevimento foi prontamente aceite pela Eva, que de imediato abriu as
lancheiras e as deixou à disposição da mulata.
«Chíbia, a Mulata do Grupo»
Mulata em Rua Vermelha/ Di Cavalcanti
Estiveram mais de uma hora à conversa, enquanto comiam,
naquela mesa de mármore, debaixo do grande plátano que dava sombra ao recinto
do recreio. Repetiram a cena por duas ou três vezes. Numa dessas vezes até foi
a Chibía que trouxe o almoço. Mais modesto, é verdade, mas comido com a mesma
vontade. Passada que foi uma semana, a Chibía sentenciou – «A
menina rica não é só a melhor aluna da turma, é também uma tipa porreira. Está
na altura de a trazermos para o grupo.»
– E uns dias depois já eram quatro à mesa. A Eva passou a trazer almoços
reforçados que acrescentavam o farnel das outras. De boca cheia, contrariando
todas as etiquetas, todas querendo falar ao mesmo tempo, cruzavam-se expressões
em duas línguas: português e espanhol. Nunca aquela mesa de mármore e aquele
plátano, ouviram gargalhadas tão cristalinas e conversas tão sérias, levando em
conta a idade das convivas: catorze, quinze anos. Rapidamente a Eva tomou o
comando do grupo. Era a única que falava francês com desenvoltura, dando
explicações às outras. A língua espanhola também não lhe era estranha, pois as
propriedades da família eram todas junto à raia de Espanha, o que lhe
proporcionava um contacto muito frequente com os espanhóis. Para a Carmen foi
bom falar, volta e meia, na sua língua de origem. Mas o que mais espanto causou
nas outras foi o tipo de leituras que já praticava. Nada de livrinhos
cor-de-rosa, nada de “Corins Tellados”, e autores afins. «Essas leituras não
ensinavam, apenas atrofiavam» – dizia ela. E foi através da Eva que conheceram
Camilo Castelo Branco, Eça de Queiroz, e outros autores de que nunca tinham
ouvido falar. Foi também com ela que, pela primeira vez, leram os sonetos duma
poeta da Vila, de quem conheciam o nome, mas cujas obras andavam estranhamente
arredias do conhecimento geral. Ou escondidas. Compreenderam melhor os
interesses literários de Eva quando, numa tarde de primavera, esta as levou a
sua casa. O monte era um enorme casarão, com uma magnífica vista sobre o rio
Quadiana, onde uma grande sala tinha as paredes repletas de livros. - «A minha
biblioteca» - dissera, simplesmente, a amiga Eva. A partir dessa data passou a
ser a biblioteca de todas elas. Todas ali foram beber algum conhecimento. Foi,
portanto, com naturalidade que ela assumiu a liderança do grupo. E foi também
com naturalidade que as outras aceitaram essa liderança.
«Quarteto dos Agostinhos»
Quatro Mulheres/ Di Cavalcanti
Assim nasceu o “
Quarteto a Perder-se nas Brumas dos Caminhos “. Durou três anos. Depois da
tarde em que tiraram a fotografia no jardim dos Agostinhos, por consenso geral,
mudaram o nome para “ Quarteto dos Agostinhos “. Levando em conta o destino de
Eva, assim como de todas as restantes, aliás – pensou mais tarde a autora
destas linhas – talvez a primeira designação fosse mais apropriada. Por volta
dos vinte anos de todas elas, a vida teceu brumas em todos os caminhos. No que
a Eva diz respeito, essas brumas encerravam desgostos e sofrimentos. Não para
ela, que encarou esses desgostos e sofrimentos com alegria, coragem e
determinação, mas para aqueles e aquelas que lhe queriam bem. Assim que entrou
na universidade, iniciou a militância num partido que combatia o regime que
governava o país.
«As Brumas d' Eva Potra»
A Estátua, por José António Pinho
Presa várias vezes, voltava à liberdade, umas vezes, porque
as acusações não eram graves, outras, porque a família utilizava os contactos
que tinha e conseguia tirá-la dos calabouços da Pide. Na última vez que a
prenderam, depois de passar à clandestinidade, mantiveram-na na cadeia durante
vários anos. Sem julgamento. Uma das antigas companheiras do “Quarteto dos
Agostinhos”, Eveline Sambraz, foi visita assídua durante essa fase da vida
dela. Foi a revolução de Abril que a devolveu à liberdade. Ainda foi deputada
depois da revolução. Morreu em 1990, de doença prolongada. Teve uma filha, a
quem chamou Eveline, em homenagem à amiga que sempre a tinha acompanhado e apoiado.
Foi a primeira do
quarteto a desaparecer.
Eveline Sambraz
(Continuação...)
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