sábado, 7 de junho de 2014

OUTROS CONTOS

«Arranjo em Preto e Branco», Dorothy Parker.

«Arranjo em Preto e Branco»
Conto de Dorothy Parker

171- «ARRANJO EM PRETO E BRANCO»

A mulher com papoulas de veludo rosa entrelaçadas em seus cabelos excessivamente dourados atravessou o grande salão lotado num andar curioso, passadas largas, enviesadas, e agarrou com força o braço de seu anfitrião.

“Agora te peguei!" ela falou. “Agora você não me escapa!”

“Olá!”, disse o anfitrião. “Ora… Como vai você?”

“Estou muito bem”, ela respondeu. “Simplesmente ótima! Ouça, eu quero que você me faça um grande favor. Você faz? Por favor? Por favorzinho?”

“O que é?" ele perguntou.

“Ouça, quero ser apresentada ao Walter Williams. Sou louca por esse homem, sabe? Quando ele canta! Quando ele canta aqueles spirituals! Sabe, eu disse ao Burton ‘Ainda bem para você que o Walter Williams é preto’”, eu disse, “‘ou você teria muitos motivos para ter ciúmes’. Gostaria mesmo de conhecê-lo. Gostaria de dizer a ele que já o ouvi cantar. Será que você pode ser um anjo e me apresentar a ele?”.

“Claro”, disse o dono da casa. “Pensei que você já o conhecesse. A festa é para ele. Mas onde é que ele está?”.

“Lá, perto da estante. Mas é melhor esperar que aquelas pessoas acabem de falar com ele. Eu acho que você está sendo maravilhoso oferecendo esta festa maravilhosa para ele, permitindo que ele conheça todas essas pessoas brancas e tudo. Ele não está muito grato?”.

“Espero que não”, o anfitrião respondeu.

“Pois eu acho isso sensacional”, ela disse. “Acho mesmo. Não vejo porque conhecer pessoas de cor não seja coisa perfeitamente natural. Não tenho nada contra, nadinha de nada. Já o Burton é o oposto. Bem, você sabe, ele é da Virgínia e você sabe como eles são”.

“Ele veio com você?”, ele perguntou.

“Não, ele não podia”, ela respondeu. “Hoje estou de cigarra. Na hora de sair eu disse: ‘Sabe-se lá como vou me comportar, hein?’. Ele estava tão cansado que não podia nem se mexer. Não é uma pena?”.

“É...”, o dono da casa respondeu.

“Espere até eu dizer a ele que conheci Walter Williams”, ela falou. “Ele só vai faltar morrer. Nós brigamos muito por causa dos pretos. Falo à beça, sem parar, digo tudo que penso, fico tão nervosa. ‘Não seja bobo, eu digo’. Mas uma coisa eu preciso dizer em favor de Burton, ele é muito mais aberto que a maioria desses sulistas. Na verdade ele gosta muito dos pretos. Ele fala sempre que não teria empregados brancos. Você sabe, ele teve uma ama preta, uma verdadeira mammy, que ele simplesmente adora. Sempre que ele vai em casa ele vai na cozinha vê-la. Vai mesmo, sabe, até hoje. O que ele sempre diz é que não tem nada contra os pretos enquanto eles estão no lugar deles. Ele está sempre fazendo coisas para eles, dando-lhes roupas e não sei mais o quê. A única coisa que ele diz é que não sentaria numa mesa com um deles nem por um milhão de dólares. ‘Ih! eu digo para ele, eu fico com nojo quando você fala assim’. Eu sou uma peste com ele. Não sou?”

“Oh, não, não”, disse o anfitrião. “De modo algum”.

“Sou sim”, ela disse. “Sei que sou. Coitado do Burton! Mas é que eu... eu não me sinto assim, de jeito nenhum. Não tenho nenhum sentimento contra as pessoas de cor. Na verdade, sou louca por alguns deles. São como crianças, fáceis de lidar, sempre cantando e rindo, alegres. Você não acha que eles são as pessoas mais felizes que você jamais viu? Honestamente, só de ouvi-los já fico com vontade de rir. Gosto mesmo deles. De verdade. Sabe, ouça, eu tenho uma lavadeira preta, há muitos anos, e gosto muito dela. Ela é uma figura! E sabe de uma coisa, para mim ela é uma amiga. É assim que penso nela. Como eu digo para o Burton, ‘Pelo amor de Deus, somos todos seres humanos! ’ Não somos?”

“Sim”, ele respondeu.“Claro".

“Agora veja o Walter Williams”, ela disse. “Para mim, um homem desses é um verdadeiro artista. É o que eu acho. Acho que ele merece todo o crédito. Por Deus, sou tão louca por música e artes que pouco me importo com a cor dele. Sinceramente, acho que se uma pessoa é artista, ninguém pode ter nada contra conhecê-la. É exatamente o que digo para o Burton. Você não concorda?”

“Sim”, o anfitrião respondeu. “Claro que sim”.

“É isso que eu sinto”, ela disse. “Não consigo compreender como alguém pode ser tão tacanho. Pois eu acho que é um privilégio conhecer um homem como Walter Williams. Acho, sim. Não tenho nada contra. Ora, pensa bem, o bom Deus o fez, assim como fez a todos nós. Não é?”.

“Claro”, disse o dono da casa. “Sem dúvida”.

“É isso que eu digo”, ela continuou. “Fico furiosa quando as pessoas são intolerantes com os pretos. Custo a me controlar. Claro que até compreendo quando se trata de um preto mau, esses são simplesmente horríveis. Mas é como eu digo para o Burton, há alguns brancos maus nesse mundo também. Não é?”.

“De fato”, ele disse.

“Bem, eu adoraria que algum dia um homem como Walter Williams fosse a minha casa cantar para nós”, ela disse. “Claro que por causa do Burton eu não posso convidá-lo, mas eu não teria nada contra. Como ele canta bem! Não é maravilhoso como todos eles têm música dentro deles? Parece que faz parte deles. Vamos, vamos até lá falar com ele. Espera, o que eu devo fazer ao ser apresentada? Devo estender a mão? Ou o que?”

“Ora, faça como quiser”, disse o anfitrião.

“Acho que é melhor”, ela falou. “Não quero de modo algum que ele pense que não me sinto à vontade. Acho que é melhor que eu lhe estenda a mão, do mesmo modo que eu faria com qualquer outra pessoa. É exatamente isso que vou fazer”.

Quando chegaram na estante ao lado da qual estava em pé o negro alto e jovem, o anfitrião fez as apresentações; o negro cumprimentou com a cabeça e disse “Como vai?”.

A mulher com as papoulas de veludo rosa esticou a mão e o braço o quanto pode e assim ficou para que o mundo todo a visse, até o negro corresponder ao aperto de mão e soltar a mão dela.

“Ó, como vai, sr.Williams”, ela disse. “Bem, como vai? Eu acabava de dizer como gosto da sua voz. Já fui aos seus concertos e temos seus discos em casa e tudo. Eu gosto demais!”.

Ela falou com grande clareza, movendo os lábios cuidadosamente, como se estivesse se dirigindo a surdos.

“Fico feliz”, ele respondeu.

“Eu simplesmente adoro aquela Water Boy que você canta”, ela disse. “Sinceramente, não consigo tirá-la da cabeça. Deixo meu marido quase doido, do jeito que fico cantarolando o tempo todo. Oh! Ele parece tão preto quanto o ás de... Bem. Diga, onde você acha todas essas músicas? Onde você as consegue?”.

“Bem”, ele respondeu, “há tantos… ".

“Imagino que você adore cantá-las”, ela falou. “Deve ser muito divertido. Todos aqueles velhos e adoráveis spirituals, eu simplesmente adoro! Bem, e o que você está fazendo agora? Continua a cantar? Por que você não apresenta outro concerto, qualquer outro dia?”.

“Tenho um concerto dia dezesseis deste mês”, ele respondeu.

“Oh! estarei lá”, ela disse. “Estarei lá, se puder. Pode contar comigo. Nossa, vem vindo um monte de pessoas querendo falar com você. Você é um verdadeiro convidado de honra! Quem é aquela moça de branco? Eu a conheço de algum lugar”.

“Aquela é Katherine Burke”, o anfitrião respondeu.

“Deus do Céu!”, ela disse. “Aquela é a Katherine Burke? Ela é completamente diferente fora do palco! Pensava que ela era muito mais bonita. Não tinha ideia que ela fosse tão escura. Ora, ela parece quase uma... Oh! Eu acho que ela é ótima atriz. Você não acha que ela é uma ótima atriz, sr. Williams? Eu a acho maravilhosa. Você não acha?”.

“Acho, sim”, ele respondeu.

“Eu também acho”, ela falou. “Simplesmente maravilhosa. Bem, precisamos dar a outras pessoas uma chance de conversar com o convidado de honra. Ora bem, não esqueça, sr. Williams, se for de todo possível eu irei a esse concerto. Estarei lá aplaudindo com todo entusiasmo. E se eu não puder ir, direi a todas as pessoas que conheço para irem, que não faltem. Não se esqueça!”.

“Não vou esquecer”, ele respondeu. “Muito obrigado”.

“Oh, Deus do Céu”, ela falou. “Quase morri. De verdade, dou minha palavra, quase morri. Você notou aquela pausa horrível que eu fiz? Eu ia dizer que Katherine parecia quase uma preta. Parei bem a tempo! Você acha que ele notou?”.

“Acho que não”, disse o anfitrião.

“Ainda bem”, ela disse, “porque eu não queria aborrecê-lo por nada deste mundo. Ora, ele é tão simpático. Muito simpático. Bem educado e tudo. Você sabe, com muitas pessoas de cor você lhes dá um dedo, eles querem logo a mão. Mas ele não é assim. Bem, acho que ele tem mais bom senso, é isso. Ele é muito agradável. Você não acha?”

“Acho”, respondeu o dono da festa.

“Gostei dele”, ela falou. “Não me incomodou em nada ele ser um homem de cor. Fiquei tão à vontade como com qualquer outra pessoa. Conversei com ele com a mesma naturalidade, e tudo. Mas, quer saber? Foi um esforço ficar séria. Só pensava no Burton. Espere só eu contar ao Burton que eu o chamei de ‘Senhor’!"

Dorothy Parker

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