sexta-feira, 11 de julho de 2014

OUTROS CONTOS

«É preciso colocar-se ao alcance de todo o Mundo», por Léon Bloy.

«É preciso colocar-se ao alcance 
de todo o Mundo»
Prelúdio: segundo volume 
da Exegese dos Lugares Comuns

202- «É PRECISO COLOCAR-SE AO ALCANCE DE TODO O MUNDO»

Isto é o que me pedem. Acham-me muito extraordinário, muito inacessível. Sou igualmente incompreendido pelo notário, pela devota e pelo fabricante de supositórios. As afirmações rudimentares, os axiomas incontestáveis e até as obviedades mais evidentes tomam comigo um aspecto de mistério que ultraja o senso comum. Decidi portanto colocar-me ao alcance de todo mundo.

Mas ignoro como. Sou mesmo forçado a reconhecer que não sei o que essas palavras querem dizer. Devo entender que se está ao alcance de todo mundo quando se está situado de maneira propícia a receber de todos os lados bofetadas ou botinadas, situação, reconheço, que está bem pouco de acordo com meus hábitos e instintos? Quantas vezes, ao contrário, e com que força de cobiça, desejei, no mesmo sentido, que todo mundo estivesse ao meu alcance?

É verdade que esse desejo era absurdo, pois todo mundo é uma expressão ininteligível para designar uma coisa indiscernível. Quando me falam das pessoas do mundo, dos homens ou mulheres do mundo, meu pensamento vai de chofre a essa populaça elegante e estúpida, marcada com o selo do Príncipe dos demónios, pela qual Jesus disse que não rezaria. Compreendo logo a seguir, e sou mesmo tentado a correr ao cemitério mais próximo para contemplar, uma vez mais, a espantosa miséria dessas lajes orgulhosas que a santa de Dulmen via cobertas de trevas e que descem às vezes - já o fiz notar - abaixo do nível do chão, pouco tempo depois da sepultura.

Mas há uma multidão infinita de outra gente, todos aqueles que não podem ser ditos do mundo e que, entretanto, são implicitamente designados quando se diz: todo mundo. Nessa multidão há sobretudo gente pobre. Aqui minha razão falha e não vejo absolutamente como poderia, ao mesmo tempo, colocar-me ao alcance dos sepulcros negros e das vivas hóstias luminosas!

Colocar-me ao alcance de todo mundo, ainda uma vez! Vejamos! Oh, minha pobre alma, isto é possível? Responde-me, pois minha inteligência se cala. Estavas, esta manhã, na igreja, tentando unir-te, identificar-te com Jesus que doou-se a todos os homens. Rezaste, sem dúvida, tão bem quanto pudeste, pelos vivos e pelos defuntos. Com o risco de causar-me náuseas, chegaste mesmo a lembrar-te misericordiamente, suponho, daqueles que não são nem vivos nem mortos, que subsistem, ninguém sabe porquê, nas imundícies, e que são chamados de burgueses. É isto colocar-se ao alcance de todo mundo? Parece-me, ao contrário, que em um tal momento o mundo não era mais tangível para ti e que tu mesma te tornaste absolutamente intangível para ele... Tu não me dizes nada, tu também, e permaneço em minha questão como sobre uma estaca.

Eis-me então incapaz de fazer o que me pedem. Tentarei entretanto, já que estou acostumado com as tarefas impossíveis. Quem sabe? Talvez o mundo não seja tão vasto quanto se imagina. Quando uma pobre dona-de-casa remexe em sua lareira, espanta-se da quantidade de cinzas e do pouco combustível que lhe resta para cozinhar sua refeição e para aquecer sua casa. Pode ser que depois do preparo de minha precedente Exegese (1) eu encontre muito pouca coisa para colocar em meu forno e que Todo Mundo se reduza a algumas unidades vantajosas. Esse pensamento reanima-me.

Léon Bloy

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