«É preciso colocar-se ao alcance
de todo o Mundo»
Prelúdio: segundo volume
da Exegese dos Lugares
Comuns
202- «É PRECISO COLOCAR-SE AO ALCANCE DE TODO O MUNDO»
Isto é o que me pedem. Acham-me muito extraordinário, muito
inacessível. Sou igualmente incompreendido pelo notário, pela devota e pelo
fabricante de supositórios. As afirmações rudimentares, os axiomas
incontestáveis e até as obviedades mais evidentes tomam comigo um aspecto de
mistério que ultraja o senso comum. Decidi portanto colocar-me ao alcance de
todo mundo.
Mas ignoro como. Sou mesmo forçado a reconhecer que não sei
o que essas palavras querem dizer. Devo entender que se está ao alcance de todo
mundo quando se está situado de maneira propícia a receber de todos os lados
bofetadas ou botinadas, situação, reconheço, que está bem pouco de acordo com
meus hábitos e instintos? Quantas vezes, ao contrário, e com que força de
cobiça, desejei, no mesmo sentido, que todo mundo estivesse ao meu alcance?
É verdade que esse desejo era absurdo, pois todo mundo é uma
expressão ininteligível para designar uma coisa indiscernível. Quando me falam
das pessoas do mundo, dos homens ou mulheres do mundo, meu pensamento vai de
chofre a essa populaça elegante e estúpida, marcada com o selo do Príncipe dos
demónios, pela qual Jesus disse que não rezaria. Compreendo logo a seguir, e
sou mesmo tentado a correr ao cemitério mais próximo para contemplar, uma vez
mais, a espantosa miséria dessas lajes orgulhosas que a santa de Dulmen via
cobertas de trevas e que descem às vezes - já o fiz notar - abaixo do nível do
chão, pouco tempo depois da sepultura.
Mas há uma multidão infinita de outra gente, todos aqueles
que não podem ser ditos do mundo e que, entretanto, são implicitamente
designados quando se diz: todo mundo. Nessa multidão há sobretudo gente pobre.
Aqui minha razão falha e não vejo absolutamente como poderia, ao mesmo tempo,
colocar-me ao alcance dos sepulcros negros e das vivas hóstias luminosas!
Colocar-me ao alcance de todo mundo, ainda uma vez! Vejamos!
Oh, minha pobre alma, isto é possível? Responde-me, pois minha inteligência se
cala. Estavas, esta manhã, na igreja, tentando unir-te, identificar-te com
Jesus que doou-se a todos os homens. Rezaste, sem dúvida, tão bem quanto
pudeste, pelos vivos e pelos defuntos. Com o risco de causar-me náuseas, chegaste
mesmo a lembrar-te misericordiamente, suponho, daqueles que não são nem vivos
nem mortos, que subsistem, ninguém sabe porquê, nas imundícies, e que são
chamados de burgueses. É isto colocar-se ao alcance de todo mundo? Parece-me,
ao contrário, que em um tal momento o mundo não era mais tangível para ti e que
tu mesma te tornaste absolutamente intangível para ele... Tu não me dizes nada,
tu também, e permaneço em minha questão como sobre uma estaca.
Eis-me então incapaz de fazer o que me pedem. Tentarei
entretanto, já que estou acostumado com as tarefas impossíveis. Quem sabe?
Talvez o mundo não seja tão vasto quanto se imagina. Quando uma pobre
dona-de-casa remexe em sua lareira, espanta-se da quantidade de cinzas e do
pouco combustível que lhe resta para cozinhar sua refeição e para aquecer sua
casa. Pode ser que depois do preparo de minha precedente Exegese (1)
eu encontre muito pouca coisa para colocar em meu forno e que Todo Mundo se
reduza a algumas unidades vantajosas. Esse pensamento reanima-me.
Léon Bloy
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