«Dois Corpos que Caem»
Pintura Surrealista de Joel Rea
208- «DOIS CORPOS QUE CAEM»
Por simples acaso, dois desconhecidos encontraram-se
despencando juntos do alto do Edifício Itália, no centro de São Paulo.
- Oi – disse o primeiro, no alvoroçado início da queda. – Eu me chamo João. E
você?
- António – gritou o segundo, perfurando furiosamente o espaço.
E, só pra matar o tempo do mergulho, começaram a conversar.
- O que você faz aqui? – perguntou António.
- Estou me matando – respondeu João. – E você?
- Que coincidência! Eu também. Espero que desta vez dê certo, porque é minha
décima tentativa. Anos venho tentando. Mas tem sempre um amigo, um desconhecido
e até bombeiro que impede. Você afinal está se matando por quê?
- Por amor – respondeu João, sentindo o vento frio no rosto. – Eu, que amava
tanto, fui trocado por um homem de olhos azuis. Infelizmente só tenho estes
corriqueiros olhos castanhos…
- E não lhe parece insensato destruir a vida por algo tão efémero como o amor?
– ponderou António, sentindo a zoada que o acompanhava à morte.
- Justamente. Trata-se de uma vingança da insensatez contra a lógica
- gritou João num tom quase triunfante. – Em geral é a vida que destrói o amor.
Desta vez, decidi que o amor acertaria contas com a vida!
- Poxa – exclamou António – você fez do amor uma panaceia!
- Antes fosse – replicou João, com um suspiro. – Duvidoso como é, o amor me
provocou dores horríveis. Nunca se sabe se o que chamamos amor é desamparo,
solidão doentia ou desejo incontrolável de dominação. O que na verdade me seduz
é que o amor destrói certezas com a mesma incomparável transparência com que o
caos significante enfrenta a insignificância
da ordem. Não, o amor não é solução para a vida. Mas é culminância. Morrer por
ele me trouxe paz.
Ante o vertiginoso discurso, ambos tentaram sorrir contra a gravidade.
- E você, como se sente? – perguntou João a António.
- Oh, agora estou plenamente satisfeito.
- Então por que busca a morte?
- Bom – respondeu António – me assustou descobrir um fiasco primordial: que a
razão tem demónios que a própria razão desconhece. Daí, preferi mergulhar de
vez no mistério.
- Sim, da razão conheço demasiados horrores. Mas que mistério é esse tão
importante a ponto de merecer sua vida?
- Não sei – respondeu António. – Mistério é mistério.
- Mas morto você não desvendará o mistério! – protestou João.
- Por isso mesmo. O fundamental no mistério é aguçar contradições, e não
desvendar. Matar-me, por exemplo, é bom na medida que me torna parte do enigma
e, de certo modo, o agudiza. Tem a ver com a fé, que gera energias para a vida.
Ou para a história, quem sabe…
- Taí um negócio que perdi: a fé. Deus para mim… – e João engasgou.
- Ora – revidou António vivamente. – A fé nada tem a ver com Deus, que se
reduziu a uma pobre estrela anã de energias tão concentradas que já nem sai do
lugar. Deus desistiu de entender os homems, e virou também indagador. Sem Deus
nem Razão, a única fé possível é mergulhar neste abismo do mistério total.
- Mas para isso é preciso ao menos saber onde está o mistério – insistiu João
com os cabelos drapejando ao vento.
- Ué, o mistério está em mim, por exemplo, que me mato para coincidir comigo
mesmo. Mas há mistério também em você: seu morrer de amor é o mais impossível
ato de fé. Graças a ele, você participa do mistério. Porque se apaixonou pelos
abismos. João olhou com olhos estatelados, ao compreender. E António, que já
faiscava na semi-realidade da vertigem, gritou com todas as forças:
- Há sobretudo este mistério maior de estarmos, na mesma hora e local,
cometendo o mesmo gesto absurdo e despencando para a mesma incerteza, por puro
acaso. Além de cúmplices, a intensidade deste mergulho nos tornou visionários.
Você não vê diante de si o desconhecido? É que já estamos perfurando a treva.
E como tudo de fato reluzia, João também ergueu a voz:
- Sim, sim. É espantoso o brilho do absurdo.
- E agora – disse António bem diante do rosto de João – falemos um pouco da
permanência. Você gosta dos meus olhos azuis?
Foi quando os dois corpos se estatelaram na Avenida São Luíz.
João Silvério Trevisan
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