quarta-feira, 9 de julho de 2014

OUTROS CONTOS

«Conto do Dilúvio», por Vinicius de Moraes.

«Conto do Dilúvio»
Amor à Chuva, por Leonid Afremov

200- «CONTO DO DILÚVIO»

O rapaz vinha contente pelo aguaceiro - plact, ploct, ploct - na semi-embriaguez em que o tinham deixado umas cachaças tomadas para cortar: um mulatinho bacano e desempenado, naquela idade em que só se olha para a frente. Levantara as calças até os joelhos e agora deixava a chuva bater-lhe livremente no rosto, tomado de euforia. Nunca tinha visto tanta água. Ficara um tempão preso na obra, tudo alagado em torno, mas a cachaça correra de mão em mão - ele pouco habituado - e de repente, com a cabeça em fogo, resolvera enfrentar o temporal - poxa! - senão ia perder a vez da Ritinha. 

Ritinha era uma jovem prostituta do morro, menina de 14 anos que se achamegara por ele. Ela o esperava sempre embaixo da escadaria que cortava a encosta, para evitar confusão com os malandros que a requestavam. "Deixa eles comigo …", dizia-lhe o rapaz cheio de entono, gingando o corpo como quem vai se espalhar. Mas ela sabia que seu namorado ainda não dava pé para enfrentar a turma da pesada, e por isso arrumara aquele cantinho discreto, onde podiam se amar à vontade. 

Ele a viu mesmo de longe, abrigada sob a pedra da encosta, e correu para ela - ploct, ploct, ploct, ploct - o mais depressa que podia, a mente cheia de desejo do seu amor fácil e sem compromisso. Teve apenas o cuidado de rodear de longe o grande bueiro aberto na rua, para onde as águas lamacentas eram tragadas em rápida e perigosa sucção: 

- Pensei que você não viesse mais... - queixou-se ela, abraçando-o todo contra o coração. 

- Ah! roxinha... Não foi mole não! Se o papai aqui não é muito safo, você hoje ficava sem a sua marmita... 

E veio o amor violento sob a chuva, um a querer sugar o outro, ela no seu abandono de prostituta-menina, ele no ardor de seus verdes anos, acrescido da embriaguez do álcool. E a tromba-d'água caía em torrente sobre seus jovens corpos se amando na lama, lavando-os das impurezas da vida no morro. E depois veio a paz. 

-Vou te levar pro teu barraco - disse-lhe ele, agradecido. 

- Que barraco? Não tem mais barraco nenhum não... 

- Como é que não tem mais barraco?

Ela deu de ombros: 

- A pedra rolou ontem de madrugada e acabou com tudo. 

O rapaz ergueu o corpo a meio, para olhá-la melhor. Só então notou grandes rnanchas de sangue por baixo da lama que a cobria. 

- Quer dizer que você não tem mais onde morar? 

Ela levantou-se, apoiando-se nele: 

- Tenho. Só agora é que eu tenho mesmo onde morar. Você chama morar àquele barraco imundo que eu tinha, onde eu vendia meu corpo por um dólar de maconha? 

Depois, desprendendo-se dele, deu alguns passos em direção à rua cheia onde a água turbilhonava: 

- Eu só voltei para não faltar ao nosso encontro... 

E caminhando rapidamente para o sumidouro, gritou-lhe: 

- Desde ontem eu moro aqui. 

E tapando delicadamente as narinas com os dedos sujos de sangue e barro, deu um gracioso saltinho para dentro do bueiro e desapareceu.

Vinicius de Moraes 

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