«Conto do Dilúvio»
Amor à Chuva, por Leonid Afremov
200- «CONTO DO DILÚVIO»
O rapaz vinha contente pelo aguaceiro - plact, ploct, ploct
- na semi-embriaguez em que o tinham deixado umas cachaças tomadas para cortar:
um mulatinho bacano e desempenado, naquela idade em que só se olha para a
frente. Levantara as calças até os joelhos e agora deixava a chuva bater-lhe
livremente no rosto, tomado de euforia. Nunca tinha visto tanta água. Ficara um
tempão preso na obra, tudo alagado em torno, mas a cachaça correra de mão em
mão - ele pouco habituado - e de repente, com a cabeça em fogo, resolvera
enfrentar o temporal - poxa! - senão ia perder a vez da Ritinha.
Ritinha era uma jovem prostituta do morro, menina de 14 anos que se achamegara
por ele. Ela o esperava sempre embaixo da escadaria que cortava a encosta, para
evitar confusão com os malandros que a requestavam. "Deixa eles comigo
…", dizia-lhe o rapaz cheio de entono, gingando o corpo como quem vai se
espalhar. Mas ela sabia que seu namorado ainda não dava pé para enfrentar a
turma da pesada, e por isso arrumara aquele cantinho discreto, onde podiam se
amar à vontade.
Ele a viu mesmo de longe, abrigada sob a pedra da encosta, e correu para ela -
ploct, ploct, ploct, ploct - o mais depressa que podia, a mente cheia de desejo
do seu amor fácil e sem compromisso. Teve apenas o cuidado de rodear de longe o
grande bueiro aberto na rua, para onde as águas lamacentas eram tragadas em
rápida e perigosa sucção:
- Pensei que você não viesse mais... - queixou-se ela, abraçando-o todo contra
o coração.
- Ah! roxinha... Não foi mole não! Se o papai aqui não é muito safo, você hoje
ficava sem a sua marmita...
E veio o amor violento sob a chuva, um a querer sugar o outro, ela no seu
abandono de prostituta-menina, ele no ardor de seus verdes anos, acrescido da
embriaguez do álcool. E a tromba-d'água caía em torrente sobre seus jovens
corpos se amando na lama, lavando-os das impurezas da vida no morro. E depois
veio a paz.
-Vou te levar pro teu barraco - disse-lhe ele, agradecido.
- Que barraco? Não tem mais barraco nenhum não...
- Como é que não tem mais barraco?
Ela deu de ombros:
- A pedra rolou ontem de madrugada e acabou com tudo.
O rapaz ergueu o corpo a meio, para olhá-la melhor. Só então notou grandes
rnanchas de sangue por baixo da lama que a cobria.
- Quer dizer que você não tem mais onde morar?
Ela levantou-se, apoiando-se nele:
- Tenho. Só agora é que eu tenho mesmo onde morar. Você chama morar àquele
barraco imundo que eu tinha, onde eu vendia meu corpo por um dólar de
maconha?
Depois, desprendendo-se dele, deu alguns passos em direção à rua cheia onde a
água turbilhonava:
- Eu só voltei para não faltar ao nosso encontro...
E caminhando rapidamente para o sumidouro, gritou-lhe:
- Desde ontem eu moro aqui.
E tapando delicadamente as narinas com os dedos sujos de sangue e barro, deu um
gracioso saltinho para dentro do bueiro e desapareceu.
Vinicius de Moraes
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