«Morgana Fala»
Conto de Marion Zimmer Bradley
279- «MORGANA FALA»
Em vida, chamaram-me de muitas coisas: irmã, amante,
sacerdotisa, maga, rainha. Na verdade cheguei a ser maga, e poderá vir um tempo
em que tais coisas devam ser conhecidas. Verdadeiramente, porém, creio que os
cristãos darão a última palavra. O mundo das fadas afasta-se cada vez mais
daquele em que Cristo predomina. Nada tenho contra o Cristo, apenas contra os
seus sacerdotes, que chamam a Grande Deusa de demônio e negam o seu poder no
mundo. Alegam que, no máximo, esse seu poder é o de Satã. Ou vestem-na com o
manto azul da Senhora de Nazaré – que realmente foi poderosa, a seu modo, que,
dizem, foi sempre virgem. Mas o que pode uma virgem saber das mágoas e labutas
da humanidade?
E, agora, que o mundo está mudado e Arthur – meu
irmão, meu amante, rei que foi e rei que será – está morto (o povo diz que ele
dorme) na ilha sagrada de Avalon, é preciso contar as coisas antes que os
sacerdotes do Cristo Branco espalhem por toda parte os seus santos e as suas
lendas. Pois, como disse, o mundo mudou. Houve um tempo em que um viajante, se
tivesse disposição e conhecesse apenas uns poucos segredos, poderia levar sua
barca para fora, penetrar o Mar do Verão e chegar não ao Glastonbury dos
monges, mas à ilha sagrada de Avalon; isso porque, em tal época, os portões entre
os mundos vagavam com as brumas, e estavam abertos, um após o outro, ao
capricho e ao desejo do viajante. Esse é o grande segredo, conhecido de todos
os homens cultos de nossa época: pelo pensamento criamos o mundo que nos cerca,
novo a cada dia.
E agora os padres, acreditando que isso interfere no poder
do seu Deus, que criou o mundo de uma vez por todas, para ser imutável, fecha
os portões (que nunca foram portões, exceto na mente dos homens) e os caminhos
só levam à ilha dos padres, que eles protegeram com o som dos sinos das suas
igrejas, afastando todos os pensamentos de um outro mundo que vivia nas trevas.
Na verdade, dizem eles, se aquele mundo algum dia existiu, era propriedade de
Satã, e a porta do Inferno, se não o próprio Inferno.
Não sei o que o Deus deles pode ter criado ou não. Apesar
das histórias contadas, nunca soube muito sobre seus padres e jamais usei o
negro de uma de suas monjas-escravas. Se os cortesões de Arthur em Camelot
fizeram de mim esse juízo, quando fui lá (pois sempre usei as roupas negras da
Grande Mãe em seu disfarce de maga), não os desiludi. E, na verdade, ao final
do reino de Arthur, teria sido perigoso agir assim, e inclinei a cabeça à
conveniência, como nunca teria feita a minha grande Senhora Viviane, Senhora do
Lago, que depois de mim foi a maior amiga de Arthur, para a transformar mais
tarde em sua maior inimiga, também depois de mim.
A luta, porém, terminou. Pude finalmente saudar Arthur, em
sua agonia, não como meu inimigo e o inimigo de minha Deusa, mas apenas como
meu irmão, e como um homem que ia morrer e precisava da ajuda da Mãe, para a
qual todos os homens finalmente se voltam. Até mesmo os sacerdotes sabem disso,
com sua Maria sempre-virgem em seu manto azul, pois ela, na hora da morte,
também se transforma na Mãe do mundo.
E assim, Arthur jazia enfim com a cabeça em meu colo,
vendo-me não como irmã, amante ou inimiga, mas apenas como maga, sacerdotisa,
Senhora do Lago; descansou, portanto, no peito da Grande Mãe, de onde nasceu, e
para quem, como todos os homens, tem de finalmente voltar. E talvez, enquanto
eu guiava a barca que o levava, desta vez não para a ilha dos padres, mas para
a verdadeira ilha sagrada no mundo das trevas que fica além do nosso, para a
ilha de Avalon, aonde, agora, poucos, além de mim, poderiam ir – ele estivesse
arrependido da inimizade surgida entre nós.
Ao contar esta história, falarei por vezes de coisas que
ocorreram quando eu ainda era demasiado jovem para compreendê-las, ou quando
não estava presente. Meu leitor fará uma pausa e dirá, talvez: “Esta é a sua
magia.” Mas eu tive sempre o dom da Visão, dever o interior da mente dos homens
e das mulheres; e durante todo esse tempo, estive perto de todos. Assim, por
vezes, tudo o que pensavam era do meu conhecimento, de uma forma ou de outra.
Por isso, contarei esta história.
O que os sacerdotes não sabem, com o seu Deus uno e a sua
verdade única, é que não existe história totalmente verdadeira. A verdade tem
muitas faces e assemelha-se à velha estrada que conduz à Avalon; o lugar para
onde o caminho nos levará depende da nossa própria vontade e de nossos
pensamentos, e, talvez, no fim, cheguemos ou à sagrada ilha da eternidade, ou
aos padres, com seus sinos, sua morte, seu Satã e Inferno e danação… Mas talvez
eu seja injusta com eles. Até mesmo a Senhora do Lago, que odiava a batina do
padre tanto quanto teria odiado a serpente venenosa, e com boas razões, censurou-me
certa vez por falar mal do Deus deles.
“Todos os deuses são um Deus”, disse ela, então, como já
dissera muitas vezes antes, e como eu repeti para minhas noviças inúmeras
vezes, e como toda sacerdotisa, depois de mim, há de dizer novamente, “e todas
as deusas são uma Deusa, e há apenas um iniciador. E a cada homem a sua
verdade, e Deus com ela.”
Assim, talvez a verdade se situe em algum ponto entre o
caminho para Glastonbury, a ilha dos padres, e o caminho para Avalon, perdido
para sempre nas brumas do Mar do Verão.
Mas esta é a minha verdade; eu, que sou Morgana, conto-vos
estas coisas, Morgana que em tempos mais recentes foi chamada Morgana, a Fada.
Marion Zimmer Bradley
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