quinta-feira, 25 de setembro de 2014

OUTROS CONTOS

«Morgana Fala», por Marion Zimmer Bradley.

«Morgana Fala»
Conto de Marion Zimmer Bradley

279- «MORGANA FALA»

Em vida, chamaram-me de muitas coisas: irmã, amante, sacerdotisa, maga, rainha. Na verdade cheguei a ser maga, e poderá vir um tempo em que tais coisas devam ser conhecidas. Verdadeiramente, porém, creio que os cristãos darão a última palavra. O mundo das fadas afasta-se cada vez mais daquele em que Cristo predomina. Nada tenho contra o Cristo, apenas contra os seus sacerdotes, que chamam a Grande Deusa de demônio e negam o seu poder no mundo. Alegam que, no máximo, esse seu poder é o de Satã. Ou vestem-na com o manto azul da Senhora de Nazaré – que realmente foi poderosa, a seu modo, que, dizem, foi sempre virgem. Mas o que pode uma virgem saber das mágoas e labutas da humanidade?

E, agora, que o mundo está mudado e Arthur –  meu irmão, meu amante, rei que foi e rei que será – está morto (o povo diz que ele dorme) na ilha sagrada de Avalon, é preciso contar as coisas antes que os sacerdotes do Cristo Branco espalhem por toda parte os seus santos e as suas lendas. Pois, como disse, o mundo mudou. Houve um tempo em que um viajante, se tivesse disposição e conhecesse apenas uns poucos segredos, poderia levar sua barca para fora, penetrar o Mar do Verão e chegar não ao Glastonbury dos monges, mas à ilha sagrada de Avalon; isso porque, em tal época, os portões entre os mundos vagavam com as brumas, e estavam abertos, um após o outro, ao capricho e ao desejo do viajante. Esse é o grande segredo, conhecido de todos os homens cultos de nossa época: pelo pensamento criamos o mundo que nos cerca, novo a cada dia.

E agora os padres, acreditando que isso interfere no poder do seu Deus, que criou o mundo de uma vez por todas, para ser imutável, fecha os portões (que nunca foram portões, exceto na mente dos homens) e os caminhos só levam à ilha dos padres, que eles protegeram com o som dos sinos das suas igrejas, afastando todos os pensamentos de um outro mundo que vivia nas trevas. Na verdade, dizem eles, se aquele mundo algum dia existiu, era propriedade de Satã, e a porta do Inferno, se não o próprio Inferno.

Não sei o que o Deus deles pode ter criado ou não. Apesar das histórias contadas, nunca soube muito sobre seus padres e jamais usei o negro de uma de suas monjas-escravas. Se os cortesões de Arthur em Camelot fizeram de mim esse juízo, quando fui lá (pois sempre usei as roupas negras da Grande Mãe em seu disfarce de maga), não os desiludi. E, na verdade, ao final do reino de Arthur, teria sido perigoso agir assim, e inclinei a cabeça à conveniência, como nunca teria feita a minha grande Senhora Viviane, Senhora do Lago, que depois de mim foi a maior amiga de Arthur, para a transformar mais tarde em sua maior inimiga, também depois de mim.

A luta, porém, terminou. Pude finalmente saudar Arthur, em sua agonia, não como meu inimigo e o inimigo de minha Deusa, mas apenas como meu irmão, e como um homem que ia morrer e precisava da ajuda da Mãe, para a qual todos os homens finalmente se voltam. Até mesmo os sacerdotes sabem disso, com sua Maria sempre-virgem em seu manto azul, pois ela, na hora da morte, também se transforma na Mãe do mundo.

E assim, Arthur jazia enfim com a cabeça em meu colo, vendo-me não como irmã, amante ou inimiga, mas apenas como maga, sacerdotisa, Senhora do Lago; descansou, portanto, no peito da Grande Mãe, de onde nasceu, e para quem, como todos os homens, tem de finalmente voltar. E talvez, enquanto eu guiava a barca que o levava, desta vez não para a ilha dos padres, mas para a verdadeira ilha sagrada no mundo das trevas que fica além do nosso, para a ilha de Avalon, aonde, agora, poucos, além de mim, poderiam ir – ele estivesse arrependido da inimizade surgida entre nós.

Ao contar esta história, falarei por vezes de coisas que ocorreram quando eu ainda era demasiado jovem para compreendê-las, ou quando não estava presente. Meu leitor fará uma pausa e dirá, talvez: “Esta é a sua magia.” Mas eu tive sempre o dom da Visão, dever o interior da mente dos homens e das mulheres; e durante todo esse tempo, estive perto de todos. Assim, por vezes, tudo o que pensavam era do meu conhecimento, de uma forma ou de outra. Por isso, contarei esta história.

 Um dia também os padres a contarão, tal como a conhecem. Talvez entre as duas se possam perceber alguns lampejos de verdade.

O que os sacerdotes não sabem, com o seu Deus uno e a sua verdade única, é que não existe história totalmente verdadeira. A verdade tem muitas faces e assemelha-se à velha estrada que conduz à Avalon; o lugar para onde o caminho nos levará depende da nossa própria vontade e de nossos pensamentos, e, talvez, no fim, cheguemos ou à sagrada ilha da eternidade, ou aos padres, com seus sinos, sua morte, seu Satã e Inferno e danação… Mas talvez eu seja injusta com eles. Até mesmo a Senhora do Lago, que odiava a batina do padre tanto quanto teria odiado a serpente venenosa, e com boas razões, censurou-me certa vez por falar mal do Deus deles.

“Todos os deuses são um Deus”, disse ela, então, como já dissera muitas vezes antes, e como eu repeti para minhas noviças inúmeras vezes, e como toda sacerdotisa, depois de mim, há de dizer novamente, “e todas as deusas são uma Deusa, e há apenas um iniciador. E a cada homem a sua verdade, e Deus com ela.”

Assim, talvez a verdade se situe em algum ponto entre o caminho para Glastonbury, a ilha dos padres, e o caminho para Avalon, perdido para sempre nas brumas do Mar do Verão. 

Mas esta é a minha verdade; eu, que sou Morgana, conto-vos estas coisas, Morgana que em tempos mais recentes foi chamada Morgana, a Fada.

Marion Zimmer Bradley

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