26 de Outubro de 1998, morre o escritor português José
Cardoso Pires, autor de «Balada da Praia dos Cães».
Poet'anarquista
«O Príncipe Real»
Jardim do Príncipe Real/ Lisboa 1949
308- «O PRÍNCIPE REAL»
Se há jardim de Lisboa que me dê gosto maior é o do Príncipe
Real. Primeiro, por causa da árvore-mãe que tem ao centro, baixinha e de ventre
antigo, e de ramagem tão extensa que dá abrigo a meio mundo. Depois porque o
conheci rodeado de poetas, uns em verso, outros em prosa: O' Neill morou-lhe
quase em frente, na rua da Escola Politécnica, Vieira de Almeida mesmo ao lado,
Ruy Cinatti na rua da Palmeira e Agostinho da Silva na Travessa do
Abarracamento de Peniche que é um recanto pacífico para meditar. Isso para não
falar já do Poeta Real que se chamava Mendonça e que nunca escreveu coisíssima
nenhuma na vida, pelo menos que se saiba. Fizemo-lo poeta, eu e alguns amigos,
porque se passeava no jardim acompanhado dum pato negro, com a solenidade dum
letrado do Olimpo. Alguém que numa cidade se passeia com um pato é poeta ou tem
alma disso. No entanto, se nós, em vez de poeta, o tivéssemos feito Príncipe
Real também não ficaria pior porque condizia com a majestade com que ele
atravessava a paisagem.
Finalmente o quiosque. Importante não esquecer o quiosque
neste jardim porque ali se servia a melhor ginja-com-elas de Lisboa ao balcão
da janelinha e sabiam-se enredos que se passavam a toda a volta. Enjaulado no
seu posto, o patrão da ginjinha, tabacos e lotarias, contava casos de
sentimento, velhices adormecidas, drogados de aflição e tudo o mais que ocorria
naqueles bancos à beira-relva
Assim, com a bebida e a conversa pelo meio, iam correndo as
nossas tardes, até que por volta das cinco horas dava entrada no jardim o
príncipe do pato-negro. Gravata de seda-luto, penteadíssimo em negro espelhado,
seguia por entre flores e relvados, de cabeça levantada e olhar perdido como se
andasse no horizonte do mundo, indiferente a tudo mais.
Mas sabia-se olhado como uma aparição enigmática - e esse
era o seu orgulho, não tenho dúvida. Por alguma razão alguém se exibe em
público com um pato e, ainda por cima, um pato negro com uma pena amarela
levantada em arco na cabeça.
"Trata-se dum pato chinês", dizia o dono do
quiosque. "Daí aquela pena amarela".
Para a porteira do Poeta real, que o conhecia há mais de
vinte anos( quer-se dizer, desde que ele e a defunta esposa tinham vindo morar
para ali) o pato seria, antes, pata e quem assim falava sabia muito bem porquê.
Repare, lembrava a porteira ao homem do quiosque, era naquele jardim que a
mulher dele, o senhor Mendonça, o vinha esperar todas as tardes à saída do
emprego quando era viva, e nessa altura não havia pato nenhum. Era ali que os
dois davam uma voltinha antes de irem para casa, e era naquele mesmo banco onde
ele agora lê o jornal que se sentavam em silêncio, frente ao canteiro das rosas
damascenas tão do agrado da senhora. Ele agarrado ao Diário da Tarde, ela a
admirar as flores da sua predilecção, então isto não lhe diz nada?, perguntava
a porteira ao dono do botequim.
Não? Pois à porteira dizia-lhe tudo. Na sua opinião o pato
não era pato nem coisa nenhuma; era, explicou ela mil vezes à janela do
quiosque, uma reencarnação da falecida e Deus se lhe dera aquela forma lá tinha
as suas razões.
Ah bem, pois sim. O do quiosque ouvia-a de cara séria e
passava a diante porque sabia que a mulher era uma fanática dos espíritos, uma
esparvoada que acreditava que a pessoa, depois de morta, voltava ao mundo em
forma de gente ou de animal de estimação para chatear os que andam por cá. A
isso chamavam lá na seita dela a passagem da alma ou outra coisa qualquer, e só
um desgraçado dum comerciante tão modesto como ele tinha de aturar conversas
misteriosas desta espécie porque a porteira, além de vizinha, era uma cliente
certa da lotaria, do totoloto e de tudo o que metesse números do destino.
José Cardoso Pires
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