domingo, 26 de outubro de 2014

OUTROS CONTOS

«O Príncipe Real», por José Cardoso Pires.

26 de Outubro de 1998, morre o escritor português José Cardoso Pires, autor de «Balada da Praia dos Cães».
Poet'anarquista
«O Príncipe Real»
Jardim do Príncipe Real/ Lisboa 1949

308- «O PRÍNCIPE REAL»

Se há jardim de Lisboa que me dê gosto maior é o do Príncipe Real. Primeiro, por causa da árvore-mãe que tem ao centro, baixinha e de ventre antigo, e de ramagem tão extensa que dá abrigo a meio mundo. Depois porque o conheci rodeado de poetas, uns em verso, outros em prosa: O' Neill morou-lhe quase em frente, na rua da Escola Politécnica, Vieira de Almeida mesmo ao lado, Ruy Cinatti na rua da Palmeira e Agostinho da Silva na Travessa do Abarracamento de Peniche que é um recanto pacífico para meditar. Isso para não falar já do Poeta Real que se chamava Mendonça e que nunca escreveu coisíssima nenhuma na vida, pelo menos que se saiba. Fizemo-lo poeta, eu e alguns amigos, porque se passeava no jardim acompanhado dum pato negro, com a solenidade dum letrado do Olimpo. Alguém que numa cidade se passeia com um pato é poeta ou tem alma disso. No entanto, se nós, em vez de poeta, o tivéssemos feito Príncipe Real também não ficaria pior porque condizia com a majestade com que ele atravessava a paisagem.

Finalmente o quiosque. Importante não esquecer o quiosque neste jardim porque ali se servia a melhor ginja-com-elas de Lisboa ao balcão da janelinha e sabiam-se enredos que se passavam a toda a volta. Enjaulado no seu posto, o patrão da ginjinha, tabacos e lotarias, contava casos de sentimento, velhices adormecidas, drogados de aflição e tudo o mais que ocorria naqueles bancos à beira-relva

Assim, com a bebida e a conversa pelo meio, iam correndo as nossas tardes, até que por volta das cinco horas dava entrada no jardim o príncipe do pato-negro. Gravata de seda-luto, penteadíssimo em negro espelhado, seguia por entre flores e relvados, de cabeça levantada e olhar perdido como se andasse no horizonte do mundo, indiferente a tudo mais.

Mas sabia-se olhado como uma aparição enigmática - e esse era o seu orgulho, não tenho dúvida. Por alguma razão alguém se exibe em público com um pato e, ainda por cima, um pato negro com uma pena amarela levantada em arco na cabeça.

"Trata-se dum pato chinês", dizia o dono do quiosque. "Daí aquela pena amarela".

Para a porteira do Poeta real, que o conhecia há mais de vinte anos( quer-se dizer, desde que ele e a defunta esposa tinham vindo morar para ali) o pato seria, antes, pata e quem assim falava sabia muito bem porquê. Repare, lembrava a porteira ao homem do quiosque, era naquele jardim que a mulher dele, o senhor Mendonça, o vinha esperar todas as tardes à saída do emprego quando era viva, e nessa altura não havia pato nenhum. Era ali que os dois davam uma voltinha antes de irem para casa, e era naquele mesmo banco onde ele agora lê o jornal que se sentavam em silêncio, frente ao canteiro das rosas damascenas tão do agrado da senhora. Ele agarrado ao Diário da Tarde, ela a admirar as flores da sua predilecção, então isto não lhe diz nada?, perguntava a porteira ao dono do botequim.

Não? Pois à porteira dizia-lhe tudo. Na sua opinião o pato não era pato nem coisa nenhuma; era, explicou ela mil vezes à janela do quiosque, uma reencarnação da falecida e Deus se lhe dera aquela forma lá tinha as suas razões.

Ah bem, pois sim. O do quiosque ouvia-a de cara séria e passava a diante porque sabia que a mulher era uma fanática dos espíritos, uma esparvoada que acreditava que a pessoa, depois de morta, voltava ao mundo em forma de gente ou de animal de estimação para chatear os que andam por cá. A isso chamavam lá na seita dela a passagem da alma ou outra coisa qualquer, e só um desgraçado dum comerciante tão modesto como ele tinha de aturar conversas misteriosas desta espécie porque a porteira, além de vizinha, era uma cliente certa da lotaria, do totoloto e de tudo o que metesse números do destino.

José Cardoso Pires

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