«O Casamento Enganoso», por Miguel de Cervantes.
«O Casamento Enganoso»
Conto de Miguel de Cervantes
484- «O CASAMENTO ENGANOSO»
Saía do Hospital da Ressurreição, em Valladolid, além da
Porta do Campo, um soldado que, por usar a espada como bordão e pela fraqueza
de suas pernas e palidez do rosto, denotava claramente – embora a temperatura
não fosse tão cálida – que ele deveria ter transpirado em vinte dias toda a
disposição que, com toda a certeza, adquirira numa hora. Andava aos
ziguezagues, tropeçando a cada momento, como um convalescente e, ao transpor a
porta da cidade, percebeu aproximar-se da sua direção um amigo a quem não via
há mais de seis meses. Este, benzendo-se, como se tivesse visto alguma
assombração, aproximou-se e lhe disse:
— Que aconteceu, Senhor Alferes Campuzano? é possível que
esteja por aqui? Imaginava-o em Flandres, de lança em riste e não por esses
lados, arrastando a espada. Que palidez, que fraqueza é essa?
Campuzano respondeu:
— Se estou ou não nesta terra, Senhor Licenciado Peralta, a
minha simples presença o diz. Quanto às outras perguntas, nada tenho a
responder senão que estou saindo daquele hospital, onde sofri quatorze
suadouros, por causa de uma mulher a quem escolhi para minha, quando jamais o
devia ter feito.
— Quer Vossa Mercê dizer que se casou? — perguntou Peralta.
— Sim — respondeu Campuzano.
— Teria sido por amor? — disse Peralta, acrescentando: —
Tais casamentos trazem sempre o arrependimento.
— Não saberei se foi por amor — respondeu o Alferes — embora
possa garantir ter sido por amargor, pois do meu casamento, ou cansamento,
carrego tais coisas no corpo e na alma que as do corpo, para curá-las, me
custaram quarenta suadouros, mas as da alma não encontro remédio sequer para
aliviá-las. Mas Vossa Mercê me perdoará; não posso manter longas conversas
neste lugar. Qualquer outro dia, mais comodamente, contar-lhe-ei minhas
aventuras; são as mais novas e originais que Vossa Mercê terá ouvido em todos
os seus longos dias.
— Não será assim — disse o Licenciado — pois desejo que
venha à minha pousada, para ali desabafarmos nossas mágoas. Além disso, tenho
lá uma comida própria para convalescentes. Embora tenha sido preparada para
dois, meu criado se contentará com um pastel. E se a sua convalescença
permitir, umas fatias de presunto servirão para nos abrir o apetite. A boa
vontade com que lhe ofereço, não somente agora, mas todas as vezes que Vossa
Mercê quiser, está acima de qualquer dúvida.
Agradeceu-lhe Campuzano, aceitando o convite e os
oferecimentos. Foram ambos a São Lorente, onde ouviram missa, e depois Peralta
levou o amigo à sua casa, dando-lhe o prometido e insistindo que repetisse. Mal
Campuzano concluíra, pediu-lhe Peralta que narrasse os acontecimentos que tanto
o haviam mortificado. Campuzano não se fez de rogado, pondo-se logo a falar.
— Vossa Mercê bem se recorda, Sr Licenciado Peralta, como
fui, nesta cidade, amigo do Capitão Pedro de Herrera, que agora está em
Flandres.
— Bem me recordo — respondeu Peralta.
— Pois um dia — prosseguiu — quando mal acabávamos a
refeição na pousada da Solana, onde vivíamos, entraram duas mulheres de belo
porte, acompanhadas por dois criados. Uma delas pôs-se logo a falar com o
Capitão, encostados ambos a um canto da janela. A outra sentou-se numa cadeira
junto à minha, cobrindo-se com o xale até o pescoço, não deixando ver do seu
rosto mais do que a transparência do xale permitia. Embora cortêsmente lhe suplicasse
que se descobrisse, não foi possível conseguir tal coisa. E, para completar a
história – fosse de caso pensado ou por simples acaso – ela exibiu suas mãos
muito brancas, cobertas por excelentes jóias. Por meu lado, estava
importantíssimo com aquela grande corrente que Vossa Mercê terá, talvez,
conhecido, o chapéu com plumas e cordões, o traje de cores e a arrogância de um
militar, tão imponente aos olhos da minha vaidade que me julgava pairando no
ar. Com tudo isto, roguei-lhe que se descobrisse, ao que ela respondeu:
— Não sejais importuno. Tenho minha casa; fazei com que um
pajem me siga, pois embora seja mais honrada do que faz crer esta resposta,
quero ver se vossa discrição corresponde à vossa galhardia. Folgarei, então,
que me vejais.
Beijei-lhe as mãos pela grande mercê que me fazia, em paga
da qual lhe prometi punhados de ouro. O capitão concluíra sua conversa. Elas se
foram, seguidas pelo meu criado. O capitão disse-me que a dama lhe pedira para
levar algumas cartas a outro capitão, em Flandres. Dizia serem para um primo,
mas ele bem sabia não serem senão para o amante. Eu ficara abrasado pelas mãos
de neve que havia visto e ansioso pelo rosto que desejava ver. E assim, no dia
seguinte, guiado pelo meu criado, fui visitá-la. Encontrei uma bela residência
e uma mulher de quase trinta anos, a quem reconheci pelas mãos. Não era bela ao
extremo, mas era-o de maneira que nos podia render pelo trato, pois possuía um
tom de voz tão suave e penetrante, que ia até a alma. Mantivemos longos e
amorosos colóquios. Blasonei, garganteei, prometi, enfim, dei todas as
demonstrações que me pareceram necessárias para tornar-me benquisto. Mas ela
parecia ter sido feita para ouvir semelhantes ou maiores oferecimentos e
razões. Era toda ouvidos e nenhuma surpresa. Para concluir: nossos colóquios
duraram quatro floridos dias. Continuei a visitá-la sem que chegasse, porém, a
colher o fruto ambicionado.
Nos momentos em que a visitei, encontrei a casa livre;
jamais percebi traços de parentes reais ou fingidos. Servia-lhe certa moça,
mais astuta que simplória. Tratando meus amores como soldado em véspera de
partida, apertei finalmente a senhora Dona Estefânia de Caicedo – é este o nome
de quem assim me deixou – que respondeu: "Tola seria, Senhor Alferes
Campuzano, se quisesse vender-me a Vossa Mercê por santa. Pecadora tenho sido e
ainda sou, embora não tanto que os vizinhos murmurem e os empregados comentem.
Nem de meus parentes herdei coisa alguma, mas, apesar disso, o que tenho aqui
em casa vale – bem contados – dois mil e quinhentos escudos. E isso em coisas
que vendidas se converterão em bom dinheiro. Com esta fortuna procuro marido a
quem entregar-me e a quem obedecer. A quem, juntamente com o arranjo da minha
vida, entregarei uma incrível solicitude em agradar e servir. Príncipe algum
terá cozinheiro mais cuidadoso ou quem melhor saiba dar o ponto nos guisados.
Tanto sei dirigir uma casa como orientar uma cozinha ou receber visitas. Na
verdade sei mandar e fazer com que me obedeçam. Nada desperdiço e muito
economizo. O dinheiro não vale menos e sim mais, quando gasto sob minha
orientação. A roupa branca que possuo, que é muita e da melhor, não foi
adquirida em lojas ou vendedores ambulantes; esses dedos e os de minhas criadas
fizeram-na, e se fosse possível, tê-la tecido em casa, assim teríamos feito.
Digo estas coisas sem modéstia, pois não há mal quando a necessidade nos obriga
a dizê-las. Acrescento, finalmente, que procuro marido que me ampare, dirija e
honre, e não amante que se aproveite e depois vá falar por aí... Se Vossa Mercê
souber apreciar a prenda que neste momento se lhe oferece, aqui estou à vossa
disposição, sujeita a tudo quanto Vossa Mercê ordenar, e isso sem me pôr em
leilão, que é a mesma coisa que andar em língua de casamenteiros. Não há nada
para consertar o todo como as suas próprias partes.
Eu, que estava com o juízo, não na cabeça, mas nos
calcanhares, julgando a felicidade ainda maior do que a imaginação me pintava e
oferecendo-se-me tão à mão, quantidade tal de bens – já os contemplava
convertidos em dinheiro! – sem fazer mais comentários do que aqueles a que dava
lugar a ventura (que me entibiava o raciocínio), respondi-lhe que me sentia
muito alegre e afortunado por haver-me dado o céu, quase por milagre,
companheira tal, para fazê-la senhora da minha vontade e dos meus haveres, que
não eram tão poucos que não valessem, junto com aquela corrente que trazia no
peito e outra joiazinhas que estavam em casa, além das minhas galas de soldado,
mais de dois mil ducados, os quais, junto aos dois mil e quinhentos dela,
formavam quantia mais do que suficiente para vivermos na aldeia onde nasci e
ainda possuía alguns bens. Tais haveres, convertidos em dinheiro, renderiam
seus frutos com o tempo, permitindo-nos uma vida alegre e descansada. Em suma,
naquela noite acertamos o nosso casamento e esclarecemos nossa vida de
solteiros. E nos próximos três dias de festas que vieram logo pela Páscoa,
fizeram-se os proclamas e no quarto dia nos casamos, encontrando-se presentes
dois amigos meus e um rapaz que dizia ser primo dela. Tratei-o como a um
parente, com palavras amáveis, como foram as que até então ele dirigira a minha
nova esposa. Falava, no entanto, com intenção tão falsa e hipócrita que prefiro
ficar calado. Embora esteja dizendo somente verdades, não são verdades de
confessionário, dessas que não podem deixar de ser ditas.
O criado conduziu meu baú da pousada para a casa de minha
mulher. Encerrei nele, diante dela, minha esplêndida corrente, mostrando-lhe
outras três ou quatro, não do mesmo tamanho, porém da melhor qualidade, assim
como três ou quatro cintos de diversos tipos. Mostrei-lhe, também as roupas e
chapéus, entregando-lhe para as despesas da casa os quatrocentos reais que
possuía. Seis dias desfrutei, calmamente, como genro pobre em casa de sogro rico,
a lua-de-mel. Pisei custosos tapetes, amassei colchas de Holanda, alumiei-me
com candelabros de prata. Almoçava na cama, levantando-me às onze horas,
comendo as doze e sesteando as duas. Dona Estefânia e a criada excediam-se em
agrados e cuidados. Meu criado, que até ali fora lerdo e preguiçoso,
transformara-se num azougue. Os momentos que Dona Estefânia não passava ao meu
lado, era fácil encontrá-la na cozinha, toda solícita em ordenar guisados que
me despertassem o gosto e avivassem o apetite. Minhas camisas, colarinhos e
lenços, pelo perfume que exalavam, pareciam um novo Aranjuez de flores,
banhados como eram em água de flor de laranjeira.
Esses dias passaram voando como passam os anos sob o império
do tempo. Por ver-me tão regalado e bem servido, transformara-se em boa a má
intenção com que começara aquele negócio. Ao fim deles, certa manhã – quando
ainda no leito com Dona Estefânia – chamaram com grandes batidas na porta. Ouço
a criada dizer, assomando a janela:
— Oh! Seja bem-vinda! Vejam só, veio antes do que avisara em
sua carta...
— Quem é que chegou, mulher? — perguntei.
— Quem? — respondeu ela — Minha Senhora Dona Clementa Bueso,
acompanhada por Dom Lope Melendez de Almendárez, dois criados e Hortigosa, a
ama.
— Corra, mulher, e abra-lhes a porta, que já vou — disse
Dona Estefânia à criada, que parara sem saber que atitude tomar. — E vós,
Senhor, pelo amor que me tendes, não os assusteis nem respondais, em meu nome,
a coisa alguma que contra mim ouvirdes.
— Mas, quem vos ofenderá, ainda mais em minha presença?
Dizei. Que gente é essa que tanto alarma vos causa?
— Não tenho tempo para responder-vos — disse Dona Estefânia:
— Sabei somente que tudo o que aqui se passará é fingido e visa a certo
desígnio o qual sabê-lo-eis depois.
Quis replicar, mas a Senhora Dona Clementa Bueso não
permitiu, pois entrou no quarto, arrastando a cauda do longo vestido verde todo
enfeitado com cordões de ouro, capinha da mesma qualidade, chapéu de plumas
verdes, brancas e vermelhas, e rico cinto de ouro. Metade do seu rosto estava
oculto por um véu leve. Em sua companhia entrou o Senhor Dom Lope Melendez de
Almendárez, não menos bizarro nem menos ricamente ataviado.
Dona Hortigosa foi a primeira a falar, exclamando:
— Jesus! Que é isto? Ocupando o leito da Senhora Clementa, e
alem disso, com um homem?
Milagres vejo hoje nesta casa! Não há dúvida de que
Dona Estefânia tomou o pé pela mão abusando da amizade de minha senhora.
— Tendes razão, Dona Hortigosa, mas a culpa é minha. Que
jamais me aborreça novamente por arranjar amigas que não sabem ser senão quando
o desejam!
A tudo isto, Dona Estefânia respondeu:
— Não se aborreça, Dona Clementa, e creia que não é sem
mistério que a senhora vê estas coisas em sua casa. Quando souber da verdade, sei
que ficarei desculpada e Vossa Mercê sem nenhum motivo de queixa.
Nessas alturas eu já vestira as calças e a camisa e Dona
Estefânia, tomando-me pelo braço, levou-me a outro quarto e ali me disse que
aquela sua amiga desejava enganar Dom Lope, com quem pretendia casar-se. Que o
engano era dar-lhe a entender que aquela casa e tudo quanto nela estava lhe
pertencia, e disso tudo pensava fazer seu dote. Uma vez realizado o casamento
pouco se lhe dava que descobrissem o engano, confiada como estava no grande
amor de Dom Lope.
— E logo me devolverá tudo. Não se pode levá-la a mal, nem a
nenhuma outra mulher que procure marido honrado, embora por meio de um embuste.
Respondi-lhe que era uma prova de grande amizade o que
tencionava fazer, e que primeiro pensasse bem, porque poderia, depois, sem ter
necessidade, precisar da justiça para readquirir seus haveres. Porém ela
respondeu com tantas e tais razões, mostrando quantas coisas obrigavam-na a
servir Dona Clementa — coisas de pouca importância, é verdade — que embora de
má vontade e com remorso na consciência, concordei com o desejo de Dona
Estefânia. Assegurou-me ela que a farsa duraria somente oito dias, durante os
quais ficaríamos em casa de outra amiga sua. Acabamos de nos vestir e logo,
despedindo-se de Dona Clementa e do Senhor Lope, disse a meu criado que
carregasse o baú e a seguisse. Eu também a segui, sem despedir-me de ninguém.
Dona Estefânia parou em casa de uma amiga e, antes que
entrássemos, esteve lá dentro um bom tempinho, falando com ela. Depois surgiu
uma criada, mandando que entrássemos — eu e o criado. Levou-nos a um pequeno
aposento, no qual havia duas camas tão juntas uma da outra que pareciam uma só.
Não havia espaço para separá-las; as cobertas pareciam beijar-se. Ali estivemos
seis dias e em todos eles não passou uma hora que não tivéssemos alguma
discussão. Dizia-lhe da loucura que fizera em ter deixado a casa e seus
pertences, embora fosse para a própria mãe. Durante as discussões, ia e vinha
pelo quarto, tanto que a dona da casa, um dia em que Dona Estefânia fora ver em
que pé estavam as coisas, quis saber qual a causa que me levava a discutir
tanto com ela e o que fizera que tanto a ofendia, sobretudo insistindo em dizer
que fora loucura notória e não amizade perfeita. Contei-lhe toda história,
falei que me casara com Dona Estefânia e do dote que ela trouxera. Quando lhe
disse da grande tolice que fizera em deixar a casa e pertences à Dona Clementa,
embora fosse com a boa intenção de conseguir um marido da importância de Dom
Lope, começou a benzer-se e a persignar-se com tanta pressa e com tantos
"ai! Jesus, Jesus!" que não pude deixar de ficar grandemente
perturbado. Ela então me disse:
— Senhor Alferes: não sei se vou contra a minha consciência
ao contar-lhe o que também nela pesaria se permanecesse calada. Porém, por Deus
e pelo Destino, seja o que for: viva a verdade e morra a mentira! A verdade é
que Dona Clementa é a verdadeira dona da casa e dos haveres. Mentira foi tudo
quanto lhe contou Dona Estefânia. Ela não possui casa nem bens, nem outro
vestido a não ser aquele que traz no corpo. E, para tornar viável esse logro,
foi que Dona Clementa andou a visitar parentes seus em Placêncio e dali esteve
fazendo uma novena a Nossa Senhora de Guadalupe. Neste espaço de tempo deixou
Dona Estefânia para cuidar de sua casa, pois são realmente grandes amigas. Está
claro que não se deve culpar a pobre mulher, pois soube arranjar para marido
uma pessoa como o Senhor Alferes.
Aqui ela deu fim à sua conversa e eu dei princípio ao meu
desespero, e sem dúvida o teria prolongado se o meu anjo da guarda não
acudisse, dizendo ao meu coração não esquecer que era cristão e que o maior
pecado dos homens é o desespero, por ser pecado dos demônios. Esta
consideração, ou boa inspiração, conformou-me um pouco, mas não tanto que
deixasse de apanhar a capa e saísse à procura de Dona Estefânia, com intenção
de dar-lhe exemplar castigo. Porém a sorte, que não saberei dizer se melhorava
ou piorava as coisas, ordenou que em nenhum lugar onde pensava encontrá-la, ela
estivesse. Fui a São Lorente, encomendando-me à Nossa Senhora; sentei-me,
depois, num banco e com o desgosto fui tomado por um sono tão pesado que não
despertaria tão cedo se não me sacudissem. Fui cheio de pensamentos e de
aflição à casa de Dona Clementa, e encontrei-a tão à vontade, como senhora que
era de seus bens; não ousei dizer-lhe nada porque Dom Lope estava presente.
Voltei à casa de minha hospedeira, a qual me disse haver contado à Dona
Estefânia como eu já sabia toda sua hipocrisia e falsidade e que ela lhe havia
perguntado que cara fizera eu com a notícia. Havia-lhe respondido que uma cara
muito má e que, segundo o seu modo de ver, eu saíra a procurá-la com ruim
intenção e pior determinação. Disse, finalmente, que Dona Estefânia levara tudo
quanto havia no baú, sem deixar nele uma só peça de roupa.
Aqui foi a coisa! Aqui teve-me Deus, de novo, em suas mãos.
Fui ver o baú, encontrando-o aberto, como um túmulo à espera do cadáver. Com
boas razões seria o meu, se não tivesse calma para sentir e ponderar tamanha
desgraça...
— Bem esperta foi — disse neste momento, o Licenciado
Peralta — por haver Dona Estefânia, levado tanta corrente e tantos cintos,
pois, como se diz, todos os enterros... etc., etc.
— Nenhuma pena me deu essa falta — respondeu o Alferes —
pois também poderei dizer: Pensou Dom Simueque que me enganava com sua filha
caolha e, por Deus, coxo sou eu de um lado...
— Não sei a que propósito pode Vossa Mercê dizer isso —
respondeu Peralta.
— O propósito é — disse o Alferes — de que aquele embrulho e
aparato de correntes, cintos e brincos, poderia valer, quando muito, dez ou
doze escudos.
— Isso não é possível — replicou o Licenciado — porque a
corrente que o senhor trazia no pescoço parecia pesar mais de duzentos ducados.
— Assim seria — respondeu o Alferes — se a verdade fosse o
que a aparência mostrava; porém, como nem tudo o que reluz é ouro, as
correntes, cintos, jóias, brincos, não passavam de imitações. Estavam tão bem
feitas que somente o toque ou o fogo poderiam descobrir sua qualidade.
— Dessa maneira — disse o Licenciado — entre Vossa Mercê e a
Senhora Dona Estefânia, houve empate no jogo?
— E tão empate — respondeu o Alferes — que poderíamos voltar
a baralhar as cartas. Mas o estrago está, Sr. Licenciado, em que ela poderá
desfazer-se de minhas correntes, e eu não do laço em que caí. Sim, porque,
embora muito me pese, ela é minha mulher.
— Daí graças Deus, Sr. Campuzano — disse Peralta — que ela
se foi e que não estais obrigado a ir buscá-la.
— Assim é — respondeu o Alferes — porém, com tudo isto,
embora não a procure, tenho-a sempre em pensamento, e onde quer que esteja está
presente a desonra.
— Não sei o que responder — disse Peralta — senão
trazendo-lhe à memória dois versos de Petrarca, que dizem: Chi chi prende
diletto di far frode, Non sidè lamentar s’altri l’inganna. O que
significa em nossa língua: "aquele que tem o costume e o gosto de enganar
a outros, não deve queixar-se, quando é enganado."
— Não me queixo — respondeu o Alferes — e sim me lastimo,
pois o culpado, nem por reconhecer a culpa, deixa de sentir a pena do castigo.
Bem sei que tentei enganar e fui enganado, feriram-me com as minhas próprias
armas, mas não posso deixar que tais sentimentos deixem de subir à tona.
Finalmente, o que mais importa no meu romance – que tal nome
se pode dar à narrativa das minhas aventuras – é ter sabido que Dona Estefânia
se fora com o primo, o mesmo que se encontrava em nosso casamento, e que tempos
atrás fora seu amigo para todas as coisas. Não quis procurá-la, para não
encontrar o mal que me faltava. Mudei pousada e cabelo, em poucos dias
começaram a cair-me os pêlos das sobrancelhas e cílios, e pouco a pouco
foram-se eles. Tornei-me calvo antes do tempo: deram-me uma doença chamada
calvície. Achei-me verdadeiramente limpo: não possuía nem cabelos para pentear,
nem dinheiro para gastar. A enfermidade caminhou ao mesmo passo da minha
miséria, e como a pobreza atropela a honra e a uns leva a forca, a outros ao
hospital e a outros ainda os faz bater nas portas dos seus inimigos com pedidos
e súplicas, o que é uma das maiores desgraças que pode acontecer a qualquer
infeliz, e por não ter podido cuidar das roupas que me protegeriam e
assegurariam a saúde ao chegar o tempo em que se dão os suadouros no Hospital
da Ressurreição, para ele me dirigi e nele tomei quarenta suadouros. Dizem que
ficarei bom, se me tratar. Espada ainda possuo; o resto, Deus remediará.
Miguel de Cervantes