quinta-feira, 30 de abril de 2015

OUTROS CONTOS

«A Esquina», por Ondjaki.
«A Esquina»
Conte de Ondjaki

491- «A ESQUINA»

Em [...], numa data social em que a vida por si só se tornou difícil e azeda, um homem de meia-idade inventou uma profissão para si mesmo. No sorriso da sua descoberta, pintou de verde-escuro um banco pequenino, passou a manhã esperando que o sol ausente o secasse com a temperatura possível. Engomou o fato castanho e escolheu aleatoriamente uma das muitas esquinas da cidade. Num cartão pequeno escreveu à máquina: "tiram-se dúvidas".

Resistiu pacientemente aos primeiros vinte e três dias em que ninguém caiu na tentação de lhe fazer uma pergunta que fosse. É sabido que as pessoas paravam para ler o cartão, e que sorriam ou  acenavam, cumprimentando-o. Está escrito que ele ripostava com a agradabilidade do seu sorriso curto, cordial, calmo.  No vigésimo quarto dia uma criança sentou-se no chão ao pé dele. Ao fim de algum tempo, sorriu. O homem também sorriu. A criança, miopemente, soletrou com a boca e os olhos: ti-ram-se dú-vi-das... Fechou o seu sorrisinho e olhou-o intrigada. Quando se preparava para murmurar algo, ou quando o homem se preparava para murmurar algo de volta, um senhor prostrou-se em frente ao banquinho, à mesinha, à criança, aos seus sorrisos parecidos.

Não havia preços. O certo é que a criança todos os dias sentava ali, o homem todos dias lá ia, as pessoas apareciam com mais frequência. A esquina ficou conhecida como esquina da dúvida, onde ainda hoje todos os cafés tem pinturas ou esculturas do homem, o banco, a mesa, o cartaz e a criança ao lado - no chão.

Se chovia retiravam-se para um parapeito. Se fazia vento aconchegavam as pernas um no outro. De longe, o que se via era o sorriso calmo, cordial, curto do homem intercalado com palavras poucas, mansas. As pessoas sorrindo se afastavam.

Numa tarde fria, bela, chegaram a acumular-se três pessoas para tirarem dúvidas. Quando o homem disso se apercebeu, enternecido, olhou a criança. A criança, supreendida com aquele olhar extenso, olhou o cartaz. Soletrou mais alto do que da primeira vez, para que todos na fila ouvissem: ti-ram-se dú-vi-das...

O tirador de dúvidas afagou o menino. Disse-lhe um segredo: dúvida é quando não sabemos bem alguma coisa. O menino enxugou o ranho transparente do seu lábio, sorriu, procurou a orelha peluda do homem:dúvida é amanhã?

Mãos dadas, dúvida virou nome de esquina.

Ondjaki

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