«A Esquina»
Conte de Ondjaki
491- «A ESQUINA»
Em [...], numa data social em que a vida por si só se tornou
difícil e azeda, um homem de meia-idade inventou uma profissão para si mesmo.
No sorriso da sua descoberta, pintou de verde-escuro um banco pequenino, passou
a manhã esperando que o sol ausente o secasse com a temperatura possível.
Engomou o fato castanho e escolheu aleatoriamente uma das muitas esquinas da
cidade. Num cartão pequeno escreveu à máquina: "tiram-se dúvidas".
Resistiu pacientemente aos primeiros vinte e três dias em
que ninguém caiu na tentação de lhe fazer uma pergunta que fosse. É sabido
que as pessoas paravam para ler o cartão, e que sorriam ou acenavam,
cumprimentando-o. Está escrito que ele ripostava com a agradabilidade do seu
sorriso curto, cordial, calmo. No vigésimo quarto dia uma criança
sentou-se no chão ao pé dele. Ao fim de algum tempo, sorriu. O homem também
sorriu. A criança, miopemente, soletrou com a boca e os olhos: ti-ram-se
dú-vi-das... Fechou o seu sorrisinho e olhou-o intrigada. Quando se preparava
para murmurar algo, ou quando o homem se preparava para murmurar algo de volta,
um senhor prostrou-se em frente ao banquinho, à mesinha, à criança, aos seus
sorrisos parecidos.
Não havia preços. O certo é que a criança todos os dias
sentava ali, o homem todos dias lá ia, as pessoas apareciam com mais
frequência. A esquina ficou conhecida como esquina da dúvida, onde ainda hoje
todos os cafés tem pinturas ou esculturas do homem, o banco, a mesa, o cartaz e
a criança ao lado - no chão.
Se chovia retiravam-se para um parapeito. Se fazia vento
aconchegavam as pernas um no outro. De longe, o que se via era o sorriso calmo,
cordial, curto do homem intercalado com palavras poucas, mansas. As pessoas
sorrindo se afastavam.
Numa tarde fria, bela, chegaram a acumular-se três pessoas
para tirarem dúvidas. Quando o homem disso se apercebeu, enternecido, olhou a
criança. A criança, supreendida com aquele olhar extenso, olhou o cartaz.
Soletrou mais alto do que da primeira vez, para que todos na fila
ouvissem: ti-ram-se dú-vi-das...
O tirador de dúvidas afagou o menino. Disse-lhe um
segredo: dúvida é quando não sabemos bem alguma coisa. O menino enxugou o
ranho transparente do seu lábio, sorriu, procurou a orelha peluda do
homem:dúvida é amanhã?
Mãos dadas, dúvida virou nome de esquina.
Ondjaki
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