«História de um Muro Branco e uma Neve Preta»
Conto de Natal de José Saramago
575- «HISTÓRIA DE UM MURO BRANCO E UMA NEVE PRETA»
A terra, àquela hora, cobria-se de uma noite tão escura que
parecia impossível que dela pudesse nascer o Sol. Não tem chovido, as
tempestades andam por longe, o rio descansa da sua primeira cheia de Inverno,
os charcos são de mercúrio. O ar está frio, parado, e estala quando respiramos,
como se nele se suspendesse uma ténue rede de cristais de gelo. Há uma casa e
luz lá dentro. E gente: a Família. Na lareira ardem grossos troncos de lenha de
donde se desprendem, lentas, as brasas. Quando à fogueira se lhes juntam
gravetos, ramos secos, um punhado de palha, a labareda cresce, divide-se em
trémulas línguas, sobe pela chaminé encarvoada de fuligem, ilumina os rostos da
família e logo volta a quebrar-se. Ouve-se o ferver das panelas, o frigir do
azeite onde bóiam as formas redondas das filhós, entre o fumo espesso e
gorduroso que vai entranhar-se nas traves baixas do telhado e nas roupas
húmidas. São talvez nove horas, a modesta mesa está posta, o momento é de paz e
de conciliação, e a Família anda pela casa, confusamente ocupada em pequenos
trabalhos, como um formigueiro.
Não tarda que saiam todos para o quintal. Vai ser lançado ao ar o foguete de
três respostas, esse que, cumprindo a tradição, anunciará aos vizinhos que
naquela casa já a última filhó saiu do tacho, a escorrer, e foi cair no
alguidar profundo onde aguardará o retoque final da canela e da calda de
açúcar. Entre portas, a Criança vê a Família a sorrir fazendo e desfazendo
grupos em torno do avô, que sopra um tição trazido da lareira e o aproxima do
cartucho de pólvora amarrado ao caniço. Tinha pedido que o deixassem ajudar,
mas responderam-lhe como das outras vezes: “Ainda és muito pequeno, para o ano
que vem”. A Família tem razão: é preciso ter cuidado com as crianças.
A pólvora inflama-se bruscamente, lança um jacto de fagulhas vivíssimas, silva
como uma serpente, e logo é um dragão rugindo que sobe para o ar gelado,
corta-o como uma espada de fogo, e lá muito no alto, quase tocando as primeiras
estrelas, estala, estraleja, cobrindo os ecos de outro foguete distante. O
caniço desce com uma luz mortiça que desmaia, e vai cair longe, nos olivais que
rodeiam a casa, sobre as ervas cobertas de geada. Com este tempo não há perigo
de que pegue fogo às árvores. De súbito, a Família diz que está frio e volta
para casa, levando entre os braços, entre os anéis, entre os tentáculos, a
Criança a quem não deixaram ajudar a lançar o foguete. Tinham deixado a porta
aberta, o interior da cozinha arrefecera. A Avó acode a espalhar na fogueira
uma mão-cheia de aparas, desgalha um ramo seco de oliveira, parte-o com as mãos
calejadas, mas é com suavidade que depois chega os troços à chama, como se
estivesse a alimentá-la. O lume hesita, escolhe o lado mais acessível da lenha,
e depois, indiferente, alheado, a pensar noutra coisa, recomeça o seu eterno
ofício de fabricante de cinzas.
A Família gira em redor da mesa, arruma-se nas poucas cadeiras que há, trazidas
algumas de outras casas, uns quantos escabelos pouco firmes, um caixote velho
posto em pé. Os rostos estão sorridentes e corados, e têm nomes e apelidos,
mas, para a Criança, são, antes de tudo, os Pais, os Avós, os Tios, os Primos,
um enorme e complicado corpo de animal que lhe lembra a história da
Bicha-de-Sete-Cabeças ou o Dragão-Que-Não-Dorme. Sobre a mesa trava-se uma
gesticulação ruidosa de facas e garfos, de mãos, de dentes, uma contínua
mastigação que deforma os rostos e engordura as bocas. Contam-se casos,
anedotas, todos riem. O frio está lá fora, e a geada, e a noite impenetrável. A
Criança anima-se, já esqueceu a decepção, para o ano talvez a deixem lançar o
foguete sozinha. Também tem uma história para contar, só está à espera duma
pausa, dum momento mágico em que todos se calem, acaso emudecidos por um anjo
que passou deixando apenas a imagem de um dedo imperioso sobre os lábios
cerrados. O momento está a chegar por fim, uma a uma calam-se as bocas da
Família, é agora ou nunca, a Criança inspira fundo, rompe o silêncio, começa a
falar. A Família olha surpreendida, dá alguma atenção, mas não muita nem por
muito tempo, não dura, não pode durar, as vozes regressam do silêncio, e é o
Pai que lhe corta a narrativa com uma frase que faz rir toda a gente. Uma frase
que vai fazer chorar a Criança. Porque o Menino, a Criança é um menino,
levanta-se da mesa, abre a porta, separa-se da Família e desce os três degraus
de pedra que conduzem ao mundo. Ali adiante há um muro caiado, baixo, com uma
varanda dando para terras ignotas. A Criança vai debruçar-se sobre o muro,
deixa cair a cabeça sobre os braços cruzados, e o terrível nó das lágrimas
desata-se dentro de si. Da casa vêm risos e vozes, alguém fala muito alto, e
depois ressoam gargalhadas. Ninguém está pensando na Criança.
Faz muito frio. Visto daqui, o céu parece estar feito de veludo negro. E há as
estrelas. Duras, nítidas, implacáveis, quase ferozes. A Criança levanta os
olhos. Lá estão elas a brilhar. Olhadas através das lágrimas, as estrelas são
diferentes. Mundo estranho, estranho mundo, este. Sob os passos da criança, o
chão duro e gelado range, E, em frente, as árvores negras, misteriosas, onde à
noite os grandes medos se vão esconder, tomam o ar confidencial de quem conhece
todos os segredos futuros, a hora e o lugar onde acontecerá o terceiro
nascimento e o quarto, e o quinto, todos os aqueles que ainda esperam a esta
Criança, até mesmo quando de havê-lo sido já não lhe restar memória.
As Crianças estão sempre a nascer. Às vezes nascem de explosivas alegrias, de
achados incríveis, de deslumbramentos únicos, mas o mais frequente, uma vez
após outra, é nascerem de cada tristeza sofrida em silêncio, de cada desgosto
padecido, de cada frustração imerecida. Há que ter muito cuidado com as
Crianças, nunca me cansarei de o dizer. Um dia uma Professora teve uma ideia de
Professora e mandou os seus alunos que fizessem uma composição plástica sobre o
Natal. Claro está que não empregou esta linguagem, o que disse foi: “Façam um
desenho sobre o Natal. Usem lápis de cores, ou aguarelas, ou papel de lustro, o
que quiserem. E tragam na segunda-feira”. Uns com lápis, outros com aguarelas,
outros com papel recortado, alguns pintando com os dedos, todos cumpriram o
melhor que puderam. Apareceu tudo quanto é costume nestes casos: o presépio, os
reis magos, os pastores, São José, a Virgem e, inevitavelmente, o Menino Jesus.
Bem feitos uns, mal feitos outros, toscos ou esmerados, os desenhos caíram na
segunda-feira em cima da secretária da Professora. Ali mesmo ela os viu e lhes
pôs nota. Ia marcando “bom”, “mau”, “suficiente”, como se com esses juízos os
marcasse para a eternidade. De repente. Ah, quantas vezes ainda teremos de
dizer que é preciso muito cuidado com as crianças! A Professora segura um
desenho nas mãos, um desenho que não é melhor nem pior que os outros. Mas ela
tem os olhos fixos, está confusa, perturbada: o desenho mostra a invariável
manjedoura, a vaca e o burrinho, e toda a restante figuração. Sobre esta cena
já sem mistério cai a neve, e esta neve é preta. Porquê?
“Porquê?”, pergunta a Professora à Menina que fez o desenho.
A Menina não responde. Talvez mais nervosa do que quereria mostrar, a
Professora insiste. Há na sala os risos cruéis e os murmúrios de troça que
sempre aparecem em ocasiões destas. A Menina está de pé, muito séria, um pouco
trémula. E responde, por fim: “Pintei a neve preta porque foi nesse Natal que a
minha mãe morreu”. Fez-se silêncio e a Professora pensou, assim o veio a contar
mais tarde: “À Lua já chegámos, mas quando e como conseguiremos chegar ao
espírito duma criança que pintou a neve preta porque a mãe lhe morreu?”.
Muitos anos depois destas histórias terem acontecido, contei-as a uma outra
Menina, que me perguntou: “E eles ainda estão tristes?”. Nessa altura disse-lhe
que sim, que há tristezas que o tempo não consegue apagar, mas hoje conforta-me
a ideia de que talvez o Menino do Muro Branco e a Menina da Neve Negra se
tenham encontrado na vida, e que talvez por causa deles o mundo já esteja a
mudar sem que nós tenhamos dado por isso.
José Saramago
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