576- «O MORRO DOS VENTOS UIVANTES»
(...)
“Era tarde da noite, e o bebé chorou, E o sapo na lagoa bem
que escutou, quando Cathy, que ouvira toda a cena, passou a cabeça pela porta e
perguntou, num murmúrio:
— Nelly, você está sozinha?
— Estou, sim — respondi.
Ela entrou e aproximou-se da lareira. Supondo que fosse
dizer algo, levantei a cabeça para olhá-la. A sua expressão era de preocupação
e ansiedade. Tinha os lábios semi-abertos, como se fosse dizer alguma coisa,
mas limitou-se a suspirar. Recomecei a cantar, pois não esquecera ainda o seu
recente comportamento.
— Onde está Heathcliff? — perguntou, interrompendo-me.
— Trabalhando na cavalariça — repliquei.
Ele não me contradisse; talvez tivesse adormecido. Seguiu-se
outra longa pausa, durante a qual vi uma ou duas lágrimas escorrerem pelas
faces de Catherine. "Será que está arrependida da sua vergonhosa
conduta?", pensei.
"Isso seria novidade; mas não vou ajudá-la, ela que se
arranje!" Enganava-me: ela não se preocupava senão com os seus próprios
problemas.
— Oh, meu Deus! — exclamou, finalmente. — Sinto-me tão
infeliz!
— Que pena! — observei. — Mas você é mesmo difícil de
contentar: tem tantos amigos e tão poucas preocupações, e nem assim se sente
satisfeita!
— Nelly, será que você é capaz de guardar um segredo? —
continuou ela, ajoelhando-se ao meu lado e erguendo para mim os seus belos
olhos, que tinham a propriedade de acabar com qualquer ressentimento, mesmo que
fosse absolutamente legítimo.
— É um segredo que vale a pena guardar? — perguntei, com voz
menos seca.
— É, e está me preocupando, preciso desabafar! Quero saber o
que devo fazer. O caso é o seguinte: Edgar Linton pediu-me hoje em casamento, e
eu lhe dei uma resposta.
Agora, antes que eu lhe diga se a resposta foi afirmativa ou
negativa, diga-me qual deveria ter sido.
— Ora, Srta. Catherine, como é que eu posso saber? —
retruquei. — Para dizer a verdade, depois da cena que fez na presença dele,
esta tarde, acho que seria acertado recusar-lhe a proposta; se ele a pediu em
casamento depois daquilo, deve ser ou completamente estúpido ou insensato.
— Se você falar assim não lhe conto mais nada — replicou ela
em tom caprichoso, pondo-se de pé. — Respondi que sim, Nelly. Agora, diga
depressa se eu errei!
— Você já lhe respondeu que sim? Então, para que discutir o
assunto? Você já deu a sua palavra, não pode mais voltar atrás.
— Mas diga se eu fiz bem. . . diga! — exclamou ela, já
irritada, esfregando as mãos e franzindo a testa.
— Há muitas coisas a considerar antes de se poder responder
a essa pergunta — respondi. — Antes de mais nada, você ama o Sr. Edgar?
— Como poderia deixar de amar? Claro que amo — respondeu.
Resolvi passá-la, então, por uma espécie de interrogatório,
o que, para uma moça de vinte e dois anos, não deixava de ser razoável.
— Por que é que o ama, Sra. Cathy?
— Ora, porque sim. . . e isso basta.
— Absolutamente; você precisa dizer por quê.
— Bem, porque ele é belo e uma companhia muito agradável.
— Mau! — exclamei.
— E porque ele é jovem e alegre.
— Mau, outra vez.
— E porque ele me ama.
— Isso não interessa.
— E porque ele vai ser rico, e eu serei a mulher mais
importante destas bandas e sentirei orgulho em tê-lo por marido.
— Pior ainda. Agora, diga-me, de que maneira você o ama?
— Como todo o mundo. . . oh, você parece boba, Nelly.
— Não sou, não. Responda.
— Bem, amo o chão que ele pisa e o ar que o rodeia e tudo
quanto ele toca e tudo o que ele diz. Gosto da figura dele e de todas as suas
ações; gosto dele todo. Pronto!
— E por quê?
— Não, você está caçoando de mim, e isso é de muito mau
gosto. Para mim não é brincadeira! — exclamou a jovem, franzindo o sobrolho e
voltando o rosto para o fogo.
— Não estou caçoando, Sra. Catherine — repliquei. — Você ama
o Sr. Edgar porque ele é belo, jovem, alegre, rico e a ama. Essa última razão
não interessa: você o amaria mesmo que ele não a amasse, acho eu; mas não o
amaria se ele não possuísse as outras quatro atrações.
— Não, claro que não; apenas teria dó dele. . . ou o
detestaria, se ele fosse feio e pateta.
— Mas há muitos outros jovens belos e ricos no mundo; até mais
belos e mais ricos do que ele. Por que você não haveria de amá-los?
— Se há, não os conheço. Não conheço ninguém como Edgar.
— Mas talvez ainda vá conhecer; e ele não será sempre belo,
nem jovem, nem, talvez, rico.
— É, agora, e só me interessa o presente. Gostaria que você
falasse mais racionalmente.
— Bom, se só lhe interessa o presente, case-se com o Sr.
Linton.
— Não preciso da sua permissão. . . eu vou casar com ele.
Mas você ainda não me disse se eu faço bem.
— Muito bem, se é que as pessoas fazem bem em casar pensando
apenas no presente.
Agora, gostaria de saber por que é que está tão infeliz. Seu
irmão vai ficar muito satisfeito; os pais do Sr. Edgar decerto não porão
obstáculos; você sairá de uma casa desordenada e sem conforto para um lar farto
e respeitável; e vocês se amam. Tudo me parece um céu aberto. Onde está a
infelicidade?
— Aqui! e aqui! — respondeu Catherine, batendo com uma mão
na testa e a outra no peito. — Onde quer que a alma resida. No fundo da minha
alma e do meu coração, estou convencida de estar errada!
— Isso é muito estranho! Não entendo!
— É esse o meu segredo. Mas, se você não caçoar de mim, eu
lhe explicarei. Não posso fazê-lo muito bem; apenas vou dar-lhe uma ideia do
que eu sinto. Sentou-se novamente a meu lado. O seu rosto tornou-se mais triste
e mais grave ainda, e as suas mãos tremiam.
— Nelly, você nunca tem sonhos esquisitos? — perguntou de
repente, após alguns minutos de reflexão.
— Tenho, de vez em quando — respondi.
— Eu também. Já tive sonhos que nunca consegui esquecer e
que mudaram a minha maneira de pensar: alteraram a cor da minha mente, assim
como o vinho altera a cor da água. Vou lhe contar um desses sonhos. . . mas
tenha o cuidado de não rir.
— Oh, por favor, Sita. Catherine! — exclamei. — Para que
conjurar fantasmas e visões? Vamos, seja alegre como costuma ser. Olhe para o
pequenino Hareton! Ele não está sonhando sonhos esquisitos. Veja como ele sorri
docemente!
— Sim, e com o pai dele pragueja! Entretanto, você deve se
lembrar dele mais ou menos assim: quase tão pequeno e tão inocente. De qualquer
maneira, Nelly, vou obrigá-la a escutar o meu sonho. Não é comprido, e eu não
posso estar alegre esta noite.
— Não quero ouvir, não quero ouvir! — repeti.
Eu era supersticiosa a respeito de sonhos, e ainda sou.
Catherine tinha, naquela noite, um aspecto sombrio e nada comum, que me fazia
temer e profetizar algo terrível. Ficou irritada comigo, mas não insistiu.
Aparentemente mudando de assunto, continuou:
— Se eu estivesse no céu, Nelly, sentir-me-ia muito mal.
— É porque você não o merece — respondi. — Todos os
pecadores se sentiriam mal no céu.
— Mas não é por isso. Uma vez sonhei que estava lá.
— Já lhe disse que não quero saber dos seus sonhos, Srta.
Catherine! Vou para a cama
— ameacei.
Ela riu e segurou-me, pois fiz menção de me levantar.
— Não é nada — disse ela. — Só lhe ia contar que para mim
não parecia ser o céu e que eu chorava desesperadamente, querendo voltar para a
terra. Os anjos ficaram tão zangados comigo, que me jogaram bem em cima do
Morro dos Ventos Uivantes, onde eu acordei soluçando de alegria. Isso me
servirá para explicar o meu segredo. Não tenho mais razão para casar com Edgar
Linton do que para estar no céu e, se esse homem perverso que é o meu irmão não
tivesse feito Heathcliff descer tanto, eu nem teria pensado nisso. Mas agora eu
me degradaria se casasse com Heathcliff, por isso ele nunca há de saber o
quanto o amo: e não porque ele seja belo, Nelly, mas por ele ser mais eu do que
eu própria. Não sei de que são feitas as nossas almas, mas elas são iguais; e a
de Linton é tão diferente da minha quanto um raio de lua é diferente de um
relâmpago, ou o fogo da geada.
Antes que ela tivesse acabado de falar, apercebi-me da
presença de Heathcliff. Tendo notado um ligeiro movimento, virei a cabeça e
vi-o erguer-se do banco e sair sem fazer barulho. Ouvira Catherine dizer que
casar com ele a degradaria, e não quisera escutar mais. Sentada no chão, atrás
do encosto do banco, ela não havia reparado na sua presença nem dera conta da
sua partida; mas eu estremeci e fiz-lhe sinal para que se calasse.”
Emily Bronte
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