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CONTOS/ [I Capítulo/ O Cego]
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CONTOS/ [II Capítulo/ Mestre Ouguet]
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CONTOS/ [III Capítulo/ O Auto]
«A Abóbada»
Mosteiro da Batalha
616- «A ABÓBADA»
[IV Capítulo/ Um Rei Cavaleiro]
Em uma quadra das que serviam de aposentos reais no Mosteiro da Batalha, à roda
de um bufete de carvalho de lavor antigo, cujos pés, torneados em linha
espiral, eram travados por uma espécie de escabelo, que pelos topos se embebia
neles, estavam assentadas várias personagens daquelas com quem o leitor já
tratou nos antecedentes capítulos. Eram estas D. João I, Frei Lourenço Lampreia
e o procurador Frei Joane. El-rei estava à cabeceira da mesa, e no topo
fronteiro o prior, tendo à sua esquerda Frei Joane. Além destes, outros
indivíduos aí estavam, que as pessoas lidas nas crónicas deste reino também
conhecerão: tais eram os doutores João das Regras e Martim de Océm, do conselho
de el-rei, cavaleiros mui graves e autorizados, e, afora eles, mais alguns
fidalgos que D. João I particularmente estimavam. Atrás da cadeira de el-rei,
um pajem esperava, em pé, as ordens de seu real senhor. O quadrante do terrado
contíguo apontava meio-dia.
Em cima do bufete estava estendido um grande rolo de pergaminho, no qual todos
os olhos dos circunstantes se fitavam: era a traça ou desenho do mosteiro que
delineara mestre Afonso Domingues, onde, além dos prospectos gerais do
edifício, iluminados primorosamente, se viam todos os cortes e alçados de cada
uma das partes dessa complicada e maravilhosa fábrica. El-rei tinha a mão
estendida e os dedos sobre o risco da casa capitular, ao passo que falava com o
prior:
– Parece impossível isso; porque natural desejo é de todos os homens alcançarem
repouso e pão na velhice, e não vejo razão para mestre Afonso se doer da mercê
que lhe fiz.
– Pois a conversação que vos relatei, tive-a com ele ainda ontem, pouco antes
de vossa mercê aqui chegar.
– E como vai David Ouguet? – perguntou el-rei.
– Com grande melhoria – respondeu o prior. – Dormiu bom espaço e acordou em seu
juízo. Contou-me que, entrando ontem após nós na Casa do Capítulo e afirmando a
vista na abóbada, conhecera que tinha gemido e estava a ponto de desabar; que
sentira apertar-se-lhe o coração e que, com a sua aflição, correra pela crasta
fora, como doido; que no céu se lhe afigurava um relampaguear incessante e
medonho; que via... nem ele sabe o que via, o pobre homem. Depois disso, diz
que perdera o tino, e de nada mais se recorda.
– Nem dos exorcismos? – perguntou em meia voz Martim de Océm, com um sorriso
malicioso.
– Nem dos exorcismos – retrucou Frei Lourenço no mesmo tom, mas subindo-lhe ao
rosto a vermelhidão da cólera. – A propósito, doutor. Dizem-me que Anequim é
morto, e que el-rei proveu o cargo em um dos de seu conselho. Seria verdadeira
esta mercê singular?
E o frade media o letrado de alto a baixo, com os olhos irritados. Este
preparava-se para vibrar ao prior uma nova injúria indirecta, naquele jogo de
alusões que era as delícias do tempo, quando el-rei acenou ao pajem,
dizendo-lhe:
– Álvaro Vaz de Almada, ide depressa à morada de Afonso Domingues, dizei-lhe
que eu quero falar-lhe e guiai-o para aqui. Fazei isso com tento: lembrai-vos
de que ele é um antigo cavaleiro, que militou com vosso mui esforçado pai.
O pajem saiu a cumprir o mandado de el-rei.
– Dizeis vós – prosseguiu este, dirigindo-se a João das Regras e a Martim de
Océm – que talvez Afonso Domingues se enganasse em supor que era possível fazer
uma abóbada tão pouco erguida, como é a que ele traçou para o Capítulo. Não
creio eu que tão entendido arquitecto assim se enganasse: mais inclinado estou
a persuadir-me de que o lastimoso sucesso de ontem à noite procedesse da grave
falta cometida por mestre Ouguet nesta edificação.
– E que falta foi essa, se a vossa mercê apraz dizer-mo? – replicou João das
Regras.
– A de não seguir de todo o ponto o desenho de mestre Afonso – tornou el-rei.
– E se a execução de sua traça fosse impossível? – acudiu o doutor.
– Impossível?! – atalhou el-rei. – E não contava ele com levá-la a efeito, se
Deus o não tolhesse dos olhos?
– E é disso que mais se dói mestre Afonso – interrompeu o prior. – A sua grande
canseira é que ninguém saberá continuar a edificação do mosteiro ou, como ele
diz, prosseguir a escritura do seu livro de pedra, porque ninguém é capaz de
entender o pensamento que o dirigiu na concepção dele.
– Roncarias e feros são esses próprios de quem foi homem de armas de
Nun’Álvares – disse o chanceler João das Regras. – Todos os de sua bandeira são
como ele. Porque sabem jogar boas lançadas, têm-se em conta de príncipes dos
discretos; e o cego não se esqueceu ainda de que comeu da caldeira do
Condestável.
João das Regras, émulo de Nun’Álvares, não perdeu este ensejo de lhe pôr pecha;
mas D. João I, que conhecia serem esses dois homens as pedras angulares de seu
trono, escutava-os sempre com respeito, salvo quando falavam um do outro; posto
que o Condestável, homem mais de obras que de palavras, raras vezes menoscabava
os méritos do chanceler, contentando-se com lançar na balança em que João das
Regras mostrava o grande peso da sua pena o montante com que ele Nun’Álvares
tinha, em cem combates, salvado a pátria do domínio estranho e a cabeça do
chanceler das mãos do carrasco, de que não o livrariam nem os graus de doutor
de Bolonha, nem os textos das leis romanas.
– Deixai lá o Condestável, que não vem ao intento – disse el-rei –; o que me
importa é ouvir mestre Afonso sobre este caso. Quisera antes perder um recontro
com castelhanos do que cuidar que o Capítulo de Santa Maria da Vitória ficará
em ruínas. Mestre Ouguet com sua arte deixou-lhe vir ao chão a abóbada: se
Afonso Domingues for capaz de a tornar a erguer e deixá-la firme, concluirei
daí que vale mais o cego que o limpo de vista: e digo-vos que o restituirei ao
antigo cargo, ainda que esteja, além de cego, zopo e mouco.
Neste momento entrava o velho arquitecto, agarrado ao braço de Álvaro Vaz de
Almada, que o veio guiando para o topo da desmesurada banca de carvalho, à roda
da qual se travara o diálogo que acima transcrevemos.
– Dom donzel, onde é que está el-rei? – dizia Afonso Domingues ao pajem,
caminhando com passos incertos ao longo do vasto aposento.
D. João I, que ouvira a pergunta, respondeu em vez do pajem:
– Agora nenhum rei está aqui, mas sim o Mestre de Avis, o vosso antigo capitão,
nobre cavaleiro de Aljubarrota.
– Beijo-vos as mãos, senhor rei, por vos lembrardes ainda de um velho homem de
armas que para nada presta hoje. Vede o que de mim mandais; porque, de vossa
ordem, aqui me trouxe este bom donzel.
– Queria ver-vos e falar-vos; que do coração vos estimo, honrado e sabedor
arquitecto do Mosteiro de Santa Maria.
– Arquitecto do Mosteiro de Santa Maria, já o não sou: vossa mercê me tirou
esse encargo; sabedor, nunca o fui, pelo menos muitos assim o crêem, e alguns o
dizem. Dos títulos que me dais só me cabe hoje o de honrado; que esse, mercê de
Deus, é meu, e fora infâmia roubá-lo a quem já não pode pegar em montante para
defendê-lo.
– Sei, meu bom cavaleiro, que estais mui torvado comigo por dar a outrem o
cargo de mestre das obras do mosteiro: nisso cria eu fazer-vos assinalada
mercê. Mas, venhamos ao ponto: sabeis que a abóbada do Capítulo desabou ontem à
noite?
– Sabia-o, senhor, antes do caso suceder.
– Como é isso possível?
– Porque todos os dias perguntava a alguns desses poucos obreiros portugueses
que aí restam como ia a feitura da casa capitular. No desenho dela pusera eu
todo o cabedal de meu fraco engenho, e este aposento era a obra-prima da minha
imaginação. Por eles soube que a traça primitiva fora alterada e que a juntura
das pedras era feita por modo diverso do que eu tinha apontado. Profetizei-lhes
então o que havia de acontecer. E – acrescentou o velho, com um sorriso amargo
– muito fez já o meu sucessor em por tal arte lhe pôr o remate que não
desabasse antes das vinte e quatro horas.
– E tínheis vós por certo que, se vossa traça se houvera seguido, essa
desmesurada abóbada não viria a terra?
– Se estes olhos não tivessem feito com que eu fosse posto de banda como uma
carta de testamento antiga, que se atira, por inútil, para o fundo de uma arca,
a pedra de fecho dessa abóbada não teria de vir esmigalhar-se no pavimento
antes de sobre ela pesarem muito séculos; mas os de vosso conselho julgaram que
um cego para nada podia prestar.
– Pois, se ousais levar a cabo vosso desenho, eu ordeno que o façais, e desde
já vos nomeio de novo mestre das obras do mosteiro, e David Ouguet vos
obedecerá.
– Senhor rei – disse o cego, erguendo a fronte, que até ali tivera curvada –,
vós tendes um ceptro e uma espada; tendes cavaleiros e besteiros; tendes ouro e
poder: Portugal é vosso, e tudo quanto ele contém, salvo a liberdade de vossos
vassalos: nesta nada mandais. Não!... vos digo eu: não serei quem torne a
erguer essa derrocada abóbada! Os vossos conselheiros julgaram-me incapaz
disso: agora eles que a alevantem.
As faces de D. João I tingiram-se do rubor do despeito.
– Lembrai-vos, cavaleiro – disse-lhe –, de que falais com D. João I.
– Cuja coroa – acudiu o cego – lhe foi posta na cabeça por lanças, entre as
quais reluzia o ferro da que eu brandia. D. João I é assaz nobre e generoso,
para não se esquecer de que nessas lanças estava escrito: os vassalos
portugueses são livres.
– Mas – tornou el-rei – os vassalos que desobedecem aos mandados daquele em
cuja casa têm acostamento, podem ser privados de sua moradia...
– Se dizeis isso pela que me destes, tirai-ma; que não vo-la pedi eu. Não
morrerei de fome; que um velho soldado de Aljubarrota achará sempre quem lhe
esmole uma mealha; e quando haja de morrer à míngua de todo humano socorro, bem
pouco importa isso a quem vê arrancarem-lhe, nas bordas da sepultura, aquilo
por que trabalhou toda a vida: um nome honrado e glorioso.
Dizendo isto, o velho levou a manga do gibão aos olhos baços e embebeu nela uma
lágrima mal sustida. El-rei sentiu a piedade coar-lhe no coração comprimido de
despeito e dilatar-lho suavemente. Umas das dores de alma que, em vez de a
lacerar, a consolam, é sem dúvida a compaixão.
– Vamos, bom cavaleiro – disse el-rei pondo-se em pé –, não haja entre nós
doestos. O arquitecto do Mosteiro de Santa Maria vale bem o seu fundador! Houve
um dia em que nós ambos fomos pelejadores: eu tornei célebre o meu nome, a
consciência mo diz, entre os príncipes do Mundo, porque segui avante por campos
de batalha; ela vos dirá, também, que a vossa fama será perpétua, havendo
trocado a espada pela pena com que traçastes o desenho do grande monumento da
independência e da glória desta terra. Rei dos homens do aceso imaginar, não
desprezeis o rei dos melhores cavaleiros, os cavaleiros portugueses! Também vós
fostes um deles; e negar-vos-ei a prosseguir na edificação desta memória, desta
tradição de mármore, que há-de recordar aos vindouros a história de nossos
feitos? Mestre Afonso Domingues, escutai os ossos de tantos valentes que vos
acusam de trairdes a boa e antiga amizade. Vem de todos os vales e montanhas de
Portugal o soído desse queixume de mortos; porque, nas contendas da liberdade,
por toda a parte se verteu sangue e foram semeados cadáveres de cavaleiros!
Eis, pois: se não perdoais a D. João I uma suposta afronta, perdoai-a ao Mestre
de Avis, ao vosso antigo capitão, que, em nome da gente portuguesa, vos cita
para o tribunal da posteridade, se refusais consagrar outra vez à pátria vosso
maravilhoso engenho, e que vos abraça, como antigo irmão nos combates, porque,
certo, crê que não querereis perder na vossa velhice o nome de bom e honrado
português.
El-rei parecia grandemente comovido, e, talvez involuntariamente, lançou um
braço ao redor do pescoço do cego, que soluçava e tremia sem soltar uma só
palavra.
Houve uma longa pausa. Todos se tinham posto em pé quando el-rei se erguera e
esperavam ansiosos o que diria o velho. Finalmente este rompeu o silêncio.
– Vencestes, senhor rei, vencestes!... A abóbada da casa capitular não ficará
por terra. Oh meu Mosteiro da Batalha, sonho querido de quinze anos de vida
entregues a cogitações, a mais formosa das tuas imagens será realizada, será
duradoura, como a pedra em que vou estampá-la! Senhor rei, as nossas almas
entendem-se: as únicas palavras harmoniosas e inteiramente suaves que tenho
ouvido há muitos anos, são as que vos saíram da boca: só D. João I compreende
Afonso Domingues; porque só ele compreende a valia destas duas palavras
formosíssimas, palavras de anjos: pátria e glória. A passada injúria, a vossos
conselheiros a atribuí sempre, que não a vós, posto que de vós, que éreis rei,
me queixasse; varrê-la-ei da memória, como o entalhador varre as lascas e a
pedra moída pelo cinzel de cima do vulto que entalhou em gárgula de cimalha
rendada. Que me restituam os meus oficiais e obreiros portugueses; que
português sou eu, portuguesa a minha obra! De hoje a quatro meses podeis voltar
aqui, senhor rei, e ou eu morrerei ou a casa capitular da Batalha estará firme,
como é firme a minha crença na imortalidade e na glória.
El-rei apertou então entre os braços o bom do cego, que procurava ajoelhar a
seus pés. Era a atracção de duas almas sublimes, que voavam uma para a outra.
Por fim, D. João I fez um sinal ao pajem, que se aproximou:
– Álvaro Vaz, acompanhai este nobre cavaleiro a sua pousada. E vós, mestre mui
sabedor, ide repousar: dentro de quinze dias vossos antigos oficiais terão
voltado de Guimarães para cumprirem o que mandardes. Mui devoto padre-prior –
continuou el-rei, voltando-se para Frei Lourenço –, entendei que de ora avante
Afonso Domingues, cavaleiro de minha casa, torna a ser mestre das obras do
Mosteiro de Santa Maria da Vitória, enquanto assim lhe aprouver.
O prior fez uma profunda reverência.
A alegria tinha tolhido a voz do arquitecto: diante de toda a corte el-rei o
havia desafrontado, e já, sem desdouro, podia aceitar o encargo de que o tinham
despojado. Com passos incertos, e seguro ao braço do pajem, saiu do aposento,
feita vénia a el-rei.
Este deu imediatamente ordem para a partida. Quando todos iam saindo, o prior
chegou-se ao velho chanceler e disse-lhe em tom submisso:
– Doutor Johannes a Regulis, espero que narreis fielmente à rainha o que
sucedeu e a certifiqueis de quanto me custa ver tirada a régua magistral a
mestre Ouguet...
– Foi – tornou o político discípulo de Bártolo – mais uma façanha de D. João I:
começou por brigar com um louco, e acabou abraçando-o, por lhe ver derramar uma
lágrima. Bem trabalho por fazer do Mestre de Avis um rei; mas sai-me sempre
cavaleiro andante. Não lhe sucedera isto, se, em vez de passar a mocidade em
pelejas, a houvera passado a estudar em Bolonha. Tenho-lhe dito mil vezes que é
preciso lisonjear os ingleses porque carecemos deles: a tudo me responde com
dizer que, com Deus e o próprio montante, tem em nada Castela; todavia a gente
inglesa ufanava-se de ser David Ouguet o mestre desta edificação. E que
importava que ela fosse mais ou menos primorosa, a troco de contentarmos os que
connosco estão liados? Quanto a vós, reverendo prior, ficai descansado; tudo
fia a rainha de vossa prudência, que é muita, posto que não vistes Bolonha.
Vamos, reverendíssimo.
A Corte já tinha saído: os dois velhos seguiram-na ao longo daquelas arcadas,
conversando um com o outro em voz baixa.
Alexandre Herculano
(Amanhã V e Último Capítulo/ O Voto Fatal)
Poet'anarquista
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