quarta-feira, 16 de setembro de 2015

OUTROS CONTOS

«A Abóbada», por Alexandre Herculano.

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«A Abóbada»
Mosteiro da Batalha

616- «A ABÓBADA»

[IV Capítulo/ Um Rei Cavaleiro]

Em uma quadra das que serviam de aposentos reais no Mosteiro da Batalha, à roda de um bufete de carvalho de lavor antigo, cujos pés, torneados em linha espiral, eram travados por uma espécie de escabelo, que pelos topos se embebia neles, estavam assentadas várias personagens daquelas com quem o leitor já tratou nos antecedentes capítulos. Eram estas D. João I, Frei Lourenço Lampreia e o procurador Frei Joane. El-rei estava à cabeceira da mesa, e no topo fronteiro o prior, tendo à sua esquerda Frei Joane. Além destes, outros indivíduos aí estavam, que as pessoas lidas nas crónicas deste reino também conhecerão: tais eram os doutores João das Regras e Martim de Océm, do conselho de el-rei, cavaleiros mui graves e autorizados, e, afora eles, mais alguns fidalgos que D. João I particularmente estimavam. Atrás da cadeira de el-rei, um pajem esperava, em pé, as ordens de seu real senhor. O quadrante do terrado contíguo apontava meio-dia.

Em cima do bufete estava estendido um grande rolo de pergaminho, no qual todos os olhos dos circunstantes se fitavam: era a traça ou desenho do mosteiro que delineara mestre Afonso Domingues, onde, além dos prospectos gerais do edifício, iluminados primorosamente, se viam todos os cortes e alçados de cada uma das partes dessa complicada e maravilhosa fábrica. El-rei tinha a mão estendida e os dedos sobre o risco da casa capitular, ao passo que falava com o prior:

– Parece impossível isso; porque natural desejo é de todos os homens alcançarem repouso e pão na velhice, e não vejo razão para mestre Afonso se doer da mercê que lhe fiz.

– Pois a conversação que vos relatei, tive-a com ele ainda ontem, pouco antes de vossa mercê aqui chegar.

– E como vai David Ouguet? – perguntou el-rei.

– Com grande melhoria – respondeu o prior. – Dormiu bom espaço e acordou em seu juízo. Contou-me que, entrando ontem após nós na Casa do Capítulo e afirmando a vista na abóbada, conhecera que tinha gemido e estava a ponto de desabar; que sentira apertar-se-lhe o coração e que, com a sua aflição, correra pela crasta fora, como doido; que no céu se lhe afigurava um relampaguear incessante e medonho; que via... nem ele sabe o que via, o pobre homem. Depois disso, diz que perdera o tino, e de nada mais se recorda.

– Nem dos exorcismos? – perguntou em meia voz Martim de Océm, com um sorriso malicioso.

– Nem dos exorcismos – retrucou Frei Lourenço no mesmo tom, mas subindo-lhe ao rosto a vermelhidão da cólera. – A propósito, doutor. Dizem-me que Anequim é morto, e que el-rei proveu o cargo em um dos de seu conselho. Seria verdadeira esta mercê singular?

E o frade media o letrado de alto a baixo, com os olhos irritados. Este preparava-se para vibrar ao prior uma nova injúria indirecta, naquele jogo de alusões que era as delícias do tempo, quando el-rei acenou ao pajem, dizendo-lhe:

– Álvaro Vaz de Almada, ide depressa à morada de Afonso Domingues, dizei-lhe que eu quero falar-lhe e guiai-o para aqui. Fazei isso com tento: lembrai-vos de que ele é um antigo cavaleiro, que militou com vosso mui esforçado pai.

O pajem saiu a cumprir o mandado de el-rei.

– Dizeis vós – prosseguiu este, dirigindo-se a João das Regras e a Martim de Océm – que talvez Afonso Domingues se enganasse em supor que era possível fazer uma abóbada tão pouco erguida, como é a que ele traçou para o Capítulo. Não creio eu que tão entendido arquitecto assim se enganasse: mais inclinado estou a persuadir-me de que o lastimoso sucesso de ontem à noite procedesse da grave falta cometida por mestre Ouguet nesta edificação.

– E que falta foi essa, se a vossa mercê apraz dizer-mo? – replicou João das Regras.

– A de não seguir de todo o ponto o desenho de mestre Afonso – tornou el-rei.

– E se a execução de sua traça fosse impossível? – acudiu o doutor.

– Impossível?! – atalhou el-rei. – E não contava ele com levá-la a efeito, se Deus o não tolhesse dos olhos?

– E é disso que mais se dói mestre Afonso – interrompeu o prior. – A sua grande canseira é que ninguém saberá continuar a edificação do mosteiro ou, como ele diz, prosseguir a escritura do seu livro de pedra, porque ninguém é capaz de entender o pensamento que o dirigiu na concepção dele.

– Roncarias e feros são esses próprios de quem foi homem de armas de Nun’Álvares – disse o chanceler João das Regras. – Todos os de sua bandeira são como ele. Porque sabem jogar boas lançadas, têm-se em conta de príncipes dos discretos; e o cego não se esqueceu ainda de que comeu da caldeira do Condestável.

João das Regras, émulo de Nun’Álvares, não perdeu este ensejo de lhe pôr pecha; mas D. João I, que conhecia serem esses dois homens as pedras angulares de seu trono, escutava-os sempre com respeito, salvo quando falavam um do outro; posto que o Condestável, homem mais de obras que de palavras, raras vezes menoscabava os méritos do chanceler, contentando-se com lançar na balança em que João das Regras mostrava o grande peso da sua pena o montante com que ele Nun’Álvares tinha, em cem combates, salvado a pátria do domínio estranho e a cabeça do chanceler das mãos do carrasco, de que não o livrariam nem os graus de doutor de Bolonha, nem os textos das leis romanas.

– Deixai lá o Condestável, que não vem ao intento – disse el-rei –; o que me importa é ouvir mestre Afonso sobre este caso. Quisera antes perder um recontro com castelhanos do que cuidar que o Capítulo de Santa Maria da Vitória ficará em ruínas. Mestre Ouguet com sua arte deixou-lhe vir ao chão a abóbada: se Afonso Domingues for capaz de a tornar a erguer e deixá-la firme, concluirei daí que vale mais o cego que o limpo de vista: e digo-vos que o restituirei ao antigo cargo, ainda que esteja, além de cego, zopo e mouco.

Neste momento entrava o velho arquitecto, agarrado ao braço de Álvaro Vaz de Almada, que o veio guiando para o topo da desmesurada banca de carvalho, à roda da qual se travara o diálogo que acima transcrevemos.

– Dom donzel, onde é que está el-rei? – dizia Afonso Domingues ao pajem, caminhando com passos incertos ao longo do vasto aposento.

D. João I, que ouvira a pergunta, respondeu em vez do pajem:

– Agora nenhum rei está aqui, mas sim o Mestre de Avis, o vosso antigo capitão, nobre cavaleiro de Aljubarrota.

– Beijo-vos as mãos, senhor rei, por vos lembrardes ainda de um velho homem de armas que para nada presta hoje. Vede o que de mim mandais; porque, de vossa ordem, aqui me trouxe este bom donzel.

– Queria ver-vos e falar-vos; que do coração vos estimo, honrado e sabedor arquitecto do Mosteiro de Santa Maria.

– Arquitecto do Mosteiro de Santa Maria, já o não sou: vossa mercê me tirou esse encargo; sabedor, nunca o fui, pelo menos muitos assim o crêem, e alguns o dizem. Dos títulos que me dais só me cabe hoje o de honrado; que esse, mercê de Deus, é meu, e fora infâmia roubá-lo a quem já não pode pegar em montante para defendê-lo.

– Sei, meu bom cavaleiro, que estais mui torvado comigo por dar a outrem o cargo de mestre das obras do mosteiro: nisso cria eu fazer-vos assinalada mercê. Mas, venhamos ao ponto: sabeis que a abóbada do Capítulo desabou ontem à noite?

– Sabia-o, senhor, antes do caso suceder.

– Como é isso possível?

– Porque todos os dias perguntava a alguns desses poucos obreiros portugueses que aí restam como ia a feitura da casa capitular. No desenho dela pusera eu todo o cabedal de meu fraco engenho, e este aposento era a obra-prima da minha imaginação. Por eles soube que a traça primitiva fora alterada e que a juntura das pedras era feita por modo diverso do que eu tinha apontado. Profetizei-lhes então o que havia de acontecer. E – acrescentou o velho, com um sorriso amargo – muito fez já o meu sucessor em por tal arte lhe pôr o remate que não desabasse antes das vinte e quatro horas.

– E tínheis vós por certo que, se vossa traça se houvera seguido, essa desmesurada abóbada não viria a terra?

– Se estes olhos não tivessem feito com que eu fosse posto de banda como uma carta de testamento antiga, que se atira, por inútil, para o fundo de uma arca, a pedra de fecho dessa abóbada não teria de vir esmigalhar-se no pavimento antes de sobre ela pesarem muito séculos; mas os de vosso conselho julgaram que um cego para nada podia prestar.

– Pois, se ousais levar a cabo vosso desenho, eu ordeno que o façais, e desde já vos nomeio de novo mestre das obras do mosteiro, e David Ouguet vos obedecerá.

– Senhor rei – disse o cego, erguendo a fronte, que até ali tivera curvada –, vós tendes um ceptro e uma espada; tendes cavaleiros e besteiros; tendes ouro e poder: Portugal é vosso, e tudo quanto ele contém, salvo a liberdade de vossos vassalos: nesta nada mandais. Não!... vos digo eu: não serei quem torne a erguer essa derrocada abóbada! Os vossos conselheiros julgaram-me incapaz disso: agora eles que a alevantem.

As faces de D. João I tingiram-se do rubor do despeito.

– Lembrai-vos, cavaleiro – disse-lhe –, de que falais com D. João I.

– Cuja coroa – acudiu o cego – lhe foi posta na cabeça por lanças, entre as quais reluzia o ferro da que eu brandia. D. João I é assaz nobre e generoso, para não se esquecer de que nessas lanças estava escrito: os vassalos portugueses são livres.

– Mas – tornou el-rei – os vassalos que desobedecem aos mandados daquele em cuja casa têm acostamento, podem ser privados de sua moradia...

– Se dizeis isso pela que me destes, tirai-ma; que não vo-la pedi eu. Não morrerei de fome; que um velho soldado de Aljubarrota achará sempre quem lhe esmole uma mealha; e quando haja de morrer à míngua de todo humano socorro, bem pouco importa isso a quem vê arrancarem-lhe, nas bordas da sepultura, aquilo por que trabalhou toda a vida: um nome honrado e glorioso.

Dizendo isto, o velho levou a manga do gibão aos olhos baços e embebeu nela uma lágrima mal sustida. El-rei sentiu a piedade coar-lhe no coração comprimido de despeito e dilatar-lho suavemente. Umas das dores de alma que, em vez de a lacerar, a consolam, é sem dúvida a compaixão.

– Vamos, bom cavaleiro – disse el-rei pondo-se em pé –, não haja entre nós doestos. O arquitecto do Mosteiro de Santa Maria vale bem o seu fundador! Houve um dia em que nós ambos fomos pelejadores: eu tornei célebre o meu nome, a consciência mo diz, entre os príncipes do Mundo, porque segui avante por campos de batalha; ela vos dirá, também, que a vossa fama será perpétua, havendo trocado a espada pela pena com que traçastes o desenho do grande monumento da independência e da glória desta terra. Rei dos homens do aceso imaginar, não desprezeis o rei dos melhores cavaleiros, os cavaleiros portugueses! Também vós fostes um deles; e negar-vos-ei a prosseguir na edificação desta memória, desta tradição de mármore, que há-de recordar aos vindouros a história de nossos feitos? Mestre Afonso Domingues, escutai os ossos de tantos valentes que vos acusam de trairdes a boa e antiga amizade. Vem de todos os vales e montanhas de Portugal o soído desse queixume de mortos; porque, nas contendas da liberdade, por toda a parte se verteu sangue e foram semeados cadáveres de cavaleiros! Eis, pois: se não perdoais a D. João I uma suposta afronta, perdoai-a ao Mestre de Avis, ao vosso antigo capitão, que, em nome da gente portuguesa, vos cita para o tribunal da posteridade, se refusais consagrar outra vez à pátria vosso maravilhoso engenho, e que vos abraça, como antigo irmão nos combates, porque, certo, crê que não querereis perder na vossa velhice o nome de bom e honrado português.

El-rei parecia grandemente comovido, e, talvez involuntariamente, lançou um braço ao redor do pescoço do cego, que soluçava e tremia sem soltar uma só palavra.

Houve uma longa pausa. Todos se tinham posto em pé quando el-rei se erguera e esperavam ansiosos o que diria o velho. Finalmente este rompeu o silêncio.

– Vencestes, senhor rei, vencestes!... A abóbada da casa capitular não ficará por terra. Oh meu Mosteiro da Batalha, sonho querido de quinze anos de vida entregues a cogitações, a mais formosa das tuas imagens será realizada, será duradoura, como a pedra em que vou estampá-la! Senhor rei, as nossas almas entendem-se: as únicas palavras harmoniosas e inteiramente suaves que tenho ouvido há muitos anos, são as que vos saíram da boca: só D. João I compreende Afonso Domingues; porque só ele compreende a valia destas duas palavras formosíssimas, palavras de anjos: pátria e glória. A passada injúria, a vossos conselheiros a atribuí sempre, que não a vós, posto que de vós, que éreis rei, me queixasse; varrê-la-ei da memória, como o entalhador varre as lascas e a pedra moída pelo cinzel de cima do vulto que entalhou em gárgula de cimalha rendada. Que me restituam os meus oficiais e obreiros portugueses; que português sou eu, portuguesa a minha obra! De hoje a quatro meses podeis voltar aqui, senhor rei, e ou eu morrerei ou a casa capitular da Batalha estará firme, como é firme a minha crença na imortalidade e na glória.

El-rei apertou então entre os braços o bom do cego, que procurava ajoelhar a seus pés. Era a atracção de duas almas sublimes, que voavam uma para a outra. Por fim, D. João I fez um sinal ao pajem, que se aproximou:

– Álvaro Vaz, acompanhai este nobre cavaleiro a sua pousada. E vós, mestre mui sabedor, ide repousar: dentro de quinze dias vossos antigos oficiais terão voltado de Guimarães para cumprirem o que mandardes. Mui devoto padre-prior – continuou el-rei, voltando-se para Frei Lourenço –, entendei que de ora avante Afonso Domingues, cavaleiro de minha casa, torna a ser mestre das obras do Mosteiro de Santa Maria da Vitória, enquanto assim lhe aprouver.

O prior fez uma profunda reverência.

A alegria tinha tolhido a voz do arquitecto: diante de toda a corte el-rei o havia desafrontado, e já, sem desdouro, podia aceitar o encargo de que o tinham despojado. Com passos incertos, e seguro ao braço do pajem, saiu do aposento, feita vénia a el-rei.

Este deu imediatamente ordem para a partida. Quando todos iam saindo, o prior chegou-se ao velho chanceler e disse-lhe em tom submisso:

– Doutor Johannes a Regulis, espero que narreis fielmente à rainha o que sucedeu e a certifiqueis de quanto me custa ver tirada a régua magistral a mestre Ouguet...

– Foi – tornou o político discípulo de Bártolo – mais uma façanha de D. João I: começou por brigar com um louco, e acabou abraçando-o, por lhe ver derramar uma lágrima. Bem trabalho por fazer do Mestre de Avis um rei; mas sai-me sempre cavaleiro andante. Não lhe sucedera isto, se, em vez de passar a mocidade em pelejas, a houvera passado a estudar em Bolonha. Tenho-lhe dito mil vezes que é preciso lisonjear os ingleses porque carecemos deles: a tudo me responde com dizer que, com Deus e o próprio montante, tem em nada Castela; todavia a gente inglesa ufanava-se de ser David Ouguet o mestre desta edificação. E que importava que ela fosse mais ou menos primorosa, a troco de contentarmos os que connosco estão liados? Quanto a vós, reverendo prior, ficai descansado; tudo fia a rainha de vossa prudência, que é muita, posto que não vistes Bolonha. Vamos, reverendíssimo.

A Corte já tinha saído: os dois velhos seguiram-na ao longo daquelas arcadas, conversando um com o outro em voz baixa.

Alexandre Herculano

(Amanhã V e Último Capítulo/ O Voto Fatal)
Poet'anarquista

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