sábado, 31 de outubro de 2015

GAIOLA ABERTA/ SÁTIRA...

Humor Negro
José Vilhena

HUMOR NEGRO

- O frete são 50 euróis
Pago a pronto, sem prestações…
Já vazaste esses ´balões´,
Agora solta os cascanhóis!
- Até a pelagem corróis!...
Não fazes isso por menos?
Os preços são obscenos...
- Lubrificantes a óleo
São ao preço do petróleo,
Sejam grandes ou pequenos!!!

POETA

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

LED ZEPPELIN - «In The Evening»

Poet'anarquista

NA NOITE, QUANDO O DIA ACABOU

Eu procuro uma mulher, mas ela não vem
Então, não a deixes fazer-te de parvo
Ela não mostra piedade, querida, ela não faz as regras

Oh! Oh! Eu preciso do seu amor
Preciso do seu amor
Oh! Eu preciso do seu amor
Eu preciso ter

Então, não a deixe ficar em baixo da sua pele
Será apenas má sorte e problemas, desde o começo
Eu já ouço você chorando na escuridão,
Pedindo pela ajuda de ninguém
Sem sorte, querida, porque você só pode se culpar

Oh! Oh! Eu preciso do seu amor
Preciso do seu amor
Oh! Eu preciso ter

Oh! É simples: Por toda a dor que você passa
Você pode desviar-se da fortuna, fortuna,
Porque isso é tudo que a deixa sozinha no fundo.
Amigo, isso me deixa extremamente tonto
Mas se você está em pé, no centro, não tem jeito de você parar

Oh! Oh! Eu preciso do seu amor
Preciso do seu amor
Oh! Eu preciso do seu amor
Eu preciso ter

Oh! Tudo o que seus dias possam trazer
Não se esconda no canto porque isso não mudará as coisas
Se você está dançando no tédio, e um dia - não tão longe-, isso parará,
Quando você for o chefe dos ''improváveis'', quando você não esperar muito..

Led Zeppelin
Banda Britânica

OUTROS CONTOS

«Esta Mão Viva», conto poético por John Keats.

«Esta Mão Viva»
Conto Poético de John Keats

654- «ESTA MÃO VIVA»

Esta mão viva, agora quente e pronta
Para um sincero aperto, se estivesse fria
E no silêncio gélido da tumba,
Viria de tal forma te obsedar os dias
E esfriar-te as noites sonhadoras
Que quererias esgotar o sangue de teu coração
Para que em minhas veias -
Pudesse inda uma vez correr a vida rubra
E tranquila tivesses a consciência:
- Vê-a, aqui está, estendendo-a para ti. 

John Keats

sexta-feira, 30 de outubro de 2015

DÉCIMAS/ «A RAZÃO»

Foi através do blogue Altejo, do amigo Chico Manel, que nasceram estas décimas. Uma troca de impressões amistosa sobre uma quadra de António Aleixo, transcrita para a caixa de comentários e referente à publicação com título, «DUQUES E CENAS - Rubrica do Dr J.L.N», deu origem às IV glosas em mais uma homenagem do Poet'anarquista ao maior poeta popular de todos os tempos. Para quem aí comentou, um abraço fraterno irmanado em poesia!
Poet'anarquista 
«A RAZÃO»
Décimas de Matias José

Mote

Há no mundo pão a rôdos
E há fome sem precisão
Pois o pão chegava a todos
Dividido pela razão.

António Aleixo

Glosas

I
Os celeiros no Alentejo
Rasos com trigo oiro...
Tempo de bom agoiro
Nas terras a sul do Tejo.
Boas searas almejo
E gente de bons modos,
Na planície são êxodos
Usando força de braços…
Digo sem embaraços,
Há no mundo pão a rôdos!

II
Há quem viva na fartura,
Outros sem ter de comer…
Como pode acontecer
Este mal que inda perdura?
No mundo se prefigura
Tamanha separação,
É triste a condenação
De tantas bocas famintas…
Há quem se esteja nas tintas,
E há fome sem precisão!

III
Cega a pérfida ganância,
Tudo pra si a maldita quer…
«- Só reparto se eu quiser»,
Diz com toda a jactância!
Vive na abundância
Farta de iscos gordos,
Usa todos os engodos
Pra só ela se alimentar…
Não era preciso usurpar,
Pois o pão chegava a todos!!

IV
Tudo podia ser diferente
Com um espécime racional,
O bem venceria o mal
Se a carne fosse inteligente.
Embora às vezes doente
Bate forte o coração,
Há quem partilhe o pão
Sem pedir nada em troca…
O amor ainda nos toca
Dividido pela razão.

Matias José

OUTROS CONTOS

«PC ASUS X552M», conto poético por Matias José.

«PC ASUS X552M»
Décima de Matias José

Obrigado pela ajuda, amigo Nuno Mendes!

653- «PC ASUS X552M»

Tenho máquina nova
Comecei agora a explorar...
De novo posso versar,
Está a pôr-me à prova.
O velhinho levou sova
Durante dez longos anos,
Sofreu quedas e danos
A muito ele resistiu...
De mim se despediu
Cansado dos humanos!

Matias José

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

CARTOON versus QUADRAS

Por um Fio
HenriCartoon

«POR UM FIO»

- Fedelho, evita essa cara de pau,
O governo tem morte prematura…
Sabes que nem um dia ele dura,
Se era ruim, agora é muito mau!

- Eu sei, Zé… mas que vou fazer
Depois de quatro anos perdidos?
- Em alternativa tens os enchidos...
Carne vermelha se queres comer!!

 POETA

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

OUTROS CONTOS

«Pirotecnia», por Adriana Lisboa.

«Pirotecnia»
Conto de Adriana Lisboa

652- «PIROTECNIA»

Um menino sonhou com fogos de artifício.

Anos mais tarde, ele descobriu que as palavras às vezes formavam versos. Tornou-se poeta e durante toda a vida quis relatar o itinerário daquele sonho de infância.

Remexeu nos dicionários e encontrou a possibilidade de criar imagens híbridas como sereias ou manticórias (animal fabuloso com corpo de leão e cabeça de homem).

Versos que soavam como café fresco, que corrompiam como aguardente pura, que salvavam como um lírio branco.

Anos mais tarde, publicou sua colectânea de poemas. O último deles se chamava «Os fogos paralelos» e era seu projeto de vida levado a cabo: fogos de artifícios transformados em versos.

Anos mais tarde, certa leitora comprou a colectânea. Ao enveredar pelo último poema, percebeu que as palavras assumiam cores diferentes e brilhavam sobre o fundo negro da página branca, ofuscando as estrelas, e impregnavam todo o livro com um discreto cheiro de pólvora.

Adriana Lisboa

terça-feira, 27 de outubro de 2015

SÁTIRA/ QUADRA SOLTA

«A Proposta»
Sátira/ Quadra Solta

A PROPOSTA

- Chegaste a oferecer tacho ao Bosta?
Claro, Tortas… ele é bem melhor que tu!
- E o que disse o monhé da tua proposta?
Que te faça bom proveito no olho do cu!!

POETA

CARTOON versus DÉCIMA

É tão Bom, não Foi?
HenriCartoon

«É TÃO BOM, NÃO FOI?»

- Ora, temos governo…
É tão bom, não foi?
- Não ouço um boi
Do meu ouvido externo.
- Disse nada ser eterno,
E que o governo caiu!
- Muito pouco resistiu...
- Morreu logo à nascença!
- Acabou-se a doença
Que tanto nos afligiu!!

POETA

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

NICCOLÒ PAGANINI - «Cantabile»

Poet'anarquista

Niccolò Paganini
Compositor e Violinista Italiano

OUTROS CONTOS

«Canção de Amor da Jovem Louca», conto poético por Sylvia Plath.

«Canção de Amor da Jovem Louca»
Conto Poético de Sylvia Plath

651- «CANÇÃO DE AMOR DA JOVEM LOUCA»

Cerro os olhos e cai morto o mundo inteiro
Ergo as pálpebras e tudo volta a renascer
(Acho que te criei no interior da minha mente)

Saem valsando as estrelas, vermelhas e azuis,
Entra a galope a arbitrária escuridão:
Cerro os olhos e cai morto o mundo inteiro.
Enfeitiçaste-me, em sonhos, para a cama,
Cantaste-me para a loucura; beijaste-me para a insanidade.
(Acho que te criei no interior de minha mente)

Tomba Deus das alturas; abranda-se o fogo do inferno:
Retiram-se os serafins e os homens de Satã:
Cerro os olhos e cai morto o mundo inteiro.
Imaginei que voltarias como prometeste .
Envelheço, porém, e esqueço-me do teu nome.
(Acho que te criei no interior de minha mente)

Deveria, em teu lugar, ter amado um falcão
Pelo menos, com a primavera, retornam com estrondo .
Cerro os olhos e cai morto o mundo inteiro:
(Acho que te criei no interior de minha mente)

Sylvia Plath

domingo, 25 de outubro de 2015

CARTOON versus DÉCIMA

Digam-me uma coisa...
digam1.gif
Poet'anarquista

«DIGAM-ME UMA COISA...»

- Porreiro, pá!... ora digam…
Como viveram sem mim?
- Com muito pouco pilim,
Alguns até mendigam…
Outros há que emigram
Por não haver trabalho,
Deixaste a manta de retalho
Nas mãos do Ali-Babá…
Com tanto ladrão que há
O país está num frangalho!

POETA

CARTOON versus SONETO

Eu Indigito
HenriCartoon

«EU INDIGITO»

II

Eu indigito: abaixo os antieuropeístas,
Baixemos as calças à União Europeia...
Estou com uma magana duma cefaleia,
Já não distingo quem são os parasitas.

Pedro Passos Coelho, tu és o homem
Que arrasou com esta merda toda...
Como eu, queres que o resto se foda!
As mentes brilhantes não dormem (?)

Quanto a ti, amigo António Costa
Derivas à esquerda é muito perigoso…
Vê lá se pões ordem nesse tal Bosta!

Sobre o assunto, está dada a resposta…
Goste-se ou não do discurso asqueroso,
Prá esquerda radical fechou-se a porta!

POETA

sábado, 24 de outubro de 2015

OUTROS CONTOS

«Ele e Ela», por Ramalho Ortigão.
«Ele e Ela»
Esboço/ Gustave Caillebotte

650- «ELE E ELA»  

A Júlio César Machado

Meu velho amigo: - Aqui tens a história que ontem me contou, ao separarmo-nos de ti depois de jantarmos juntos, aquele sujeito que tu conheces.

* * *

Eu tinha chegado de um porto de França em companhia de uma alemã, que entrevira em Paris, e com quem me encontrei depois a bordo do paquete que tinha de nos trazer ao Tejo. Era uma senhora de maneiras muito graves e de fisionomia perfeitamente distinta, sincera e despresumida, como quase toda a gente dessa bela raça germânica, que floresce em todos os climas como na sua pátria, e aceita toda a convivência como a da sua família.

Desembarcámos no Terreiro do Paço. Ela vinha tão abatida e alquebrada pelos efeitos de uma viagem tempestuosa no grosso mar da Gasconha e da Mancha, que eu determinei-me, contra os usos do país a que me recolhia, a oferecer-lhe o meu braço para passearmos por um momento à réstia vivificadora do sol de Lisboa no mês de Janeiro.

Soube então que a minha simpática dama se encontrava só na capital, e tinha de partir para o Porto, assim como eu, no dia imediato. Falámos por algum tempo, ela das suas saudades, eu das minhas recordações, até que a acompanhei numa carruagem ao hotel de Bragança, onde ficámos de reunir-nos na manhã seguinte, para seguir no caminho de ferro para a cidade das camélias.

À hora aprazada fui encontrar-me efectivamente com ela e achei-a pronta para partir, radiante de saúde, vestida com um trajo de primavera, tendo um ramo de flores junto do rolo do seu édredon, e mostrando-se maravilhada da suave brandura do clima e da engenhosa convenção que levava os habitantes a usarem paletot, com o fim de fazerem acreditar uns aos outros e a quem viesse de fora que também por cá se tinha inverno.

Saímos a pé pelo braço um do outro, e fomos almoçar a um café, fazendo horas para chegar a Santa Apolónia a tempo de entrar no trem e partir.

Achámo-nos no vagão, acompanhados unicamente de um respeitável ancião, o sr. S. M., que lia filosoficamente um número do Diário de Notícias no canto do compartimento oposto àquele em que nós ficámos um defronte do outro.

Estava com efeito uma bela e donosa manhã sem calor nem frio, sem nuvens no céu, sem lama na terra e sem pó no ar.

De um lado a frescura das laranjeiras e o reluzente viço das hortas que bordam a estrada até o Carregado, e do outro o límpido cristal do Tejo em plena majestade iam-nos acompanhando como um sorriso e um afago da natureza em hora de bom humor.

A minha companheira de viagem tinha remoçado cinco anos com este brando acolhimento do amorável país do seu exílio. Estava buliçosa como um estudantinho, tinha demolhado o seu ramalhete à força de o respirar com frenesi, até deixar ver toda a alvura dos seus pequeninos dentes com a infantil alegria de uma felicidade inteiramente desanuviada, e era muito bonita, assim contente e alegre.

Pelas quatro horas da tarde estávamos perto de Aveiro e principiava a desenrolar-se aos nossos olhos a esplêndida paisagem do norte de Portugal. As campinas estavam virentes e viçosas como em plena primavera, o sol inclinava-se para o ocaso entre uns ténues vapores de opala e de ouro, respirava-se a brisa fragrante das ondas e havia no ar como um fluido de melancolia e de saudade. Era a plácida morbidez de uma tela de Correggio.

A jovem alemã, que eu tinha defronte de mim, havia tirado o chapéu e recostado para trás a sua bela cabeça, aureolada por uma espécie de vaga irradiação proveniente do azul dos seus olhos e da expressão dos seus lábios arqueados num sorriso triste como o dos sonhadores, dos namorados e dos poetas.

Eu atirei fora um charuto que ela me permitira acender, e perguntei-lhe como lhe parecia a paisagem que íamos vendo.

- Ideal murmurou ela, quase num suspiro.

Este laconismo deixou-me entender que estava com uma verdadeira apreciadora do belo, uma dessas criaturas privilegiadas em quem a contemplação dos grandes espectáculos da natureza entumece o coração e supita a palavra fazendo bailar as lágrimas nos olhos. Entendi que não devia perturbar o seu pensamento, a sua ilusão talvez, ou por ventura o seu êxtase, e pus-me a olhar silenciosamente para ela.

Ao cabo porém de meia hora não pude resistir à tentação de lhe dizer:

- Que horas estas para dois entes que se amassem!

- É verdade, confirmou ela.

- Como deve ser bom, nestes momentos em que a saudade vaga e indefinida nos inunda como um banho de recordações, de esperanças e de afectos, ter junto de nós um honrado e leal coração que nos entenda e nos ame, e poder a gente casar ternamente com o hino do crepúsculo, o hino da sua alma! 

Dá-me licença que a ame...

Ela fitou-me com um olhar penetrante. - ... por cinco minutos? terminei eu - ou por um quarto de hora?... daqui até se pôr o sol? No fim desse prazo recebe cada um os protestos que adiantou, retira as juras que fez, e fica senhor de si como dantes. É como quem joga a tentos.

- Assim, pode ser, disse-me ela rindo, mas verá que se aborrece antes de chegar ao meio da partida...

- Porquê?

- Porque não faz uma vasa.

- Quem sabe? Conforme o lado para que ficarem os trunfos.

- Demos então as cartas.

- Eu principio. Conto trinta anos de idade, sou pobre e tenho o coração ocupado, mas deu-me Deus um génio apaixonado. . . sincero! Entendo eu que uns dedos fininhos, cor-de-rosa, elegantemente tratados e perfumados são feitos para receber de quando em quando um beijo; que um olhar inteligente e suave deve descer ao fundo da nossa alma, se nós temos uma alma pura, e dessedentar- se nela como uma pomba em um lago; que a elegância, o espírito e a educação de uma mulher amável devem em todo o tempo receber o culto da admiração e do reconhecimento de um homem de bem, porque é certamente para os homens de bem que Deus permitiu a amabilidade às mulheres honestas...

- Mas é amizade o que me está dizendo e o que eu mais prezo! E a única pessoa que conheço em Portugal, e já ninguém poderá agora evitar que seja o meu primeiro amigo... Vou-lhe fazer também as minhas confidências. Tenho contraído grandes encargos de coração. Acredita que seja possível amar-se por cartas muito tempo?

- O amor em cartas, objectei-lhe eu, é como um jantar de que não nos oferecem senão a lista. Nada obsta a que seja o mais sumptuoso, mas não é por certo o mais nutriente ... No entanto como em tais banquetes dizem que é a imaginação quem prepara as iguarias mais delicadas...

- Eu creio que sou amada...

- Por alguém que está longe! a quem escreveu esta manhã uma carta de consolação, de resignação e de esperança... uma carta que dentro de oito dias o há-de fazer chorar, e que ele há-de trazer por muito tempo junto do coração como uma santa relíquia... E em troca desta carta há-de mandar-lhe outra escrita ardentemente com as lágrimas do coração e com o sangue das veias, a qual, antes e depois de se saber de cor, será lida e relida todos os dias entre a oração da manhã e o piedoso beijo deposto no retrato de sua mãe. Veja que ideal ventura! o prazer de amar sem ter do amor o que há nele mais impertinente e mais prosaico: as imperfeições que a convivência descobre e multiplica! E, depois, dentro de um ou dois anos, o prazer de tornarem a ver-se! Aparecer-lhe mais bela, porque a saudade e a esperança poetizam, melancolizam, tresdobram a beleza; e encontrá-lo mais velho, e portanto mais expressivamente homem e mais expressivamente simpático! tê-lo finalmente ao seu lado...

(E, nisto, passei para o lado dela, e sentei-me no mesmo sofá em que ela se achava.)

- Ouvi-lo, continuei eu, ouvi-lo falar-lhe da ausência e do futuro comum, pondo-lhe aos pés o seu amor, o seu nome e a sua liberdade! Possa Deus reuni-los cedo e não o matar a ele de felicidade na hora suprema em que a vir, sendo-lhe permitido, em paga do seu amor constante, beijá-la na fronte longamente e inebriar-se com a certeza de ser amado pela mulher mais adoravelmente meiga, mais terna e mais simpática!

Chegado a este ponto, e falando-lhe já, insensivelmente, com muito mais veemência e afogo do que se emprega para conversar, peguei-lhe nas pontas dos dedos, levantei a mão que ela tinha caída no regaço e pousei os lábios no debrum da luva.

Ela então levantou o cabazinho de viagem, que estava colocado entre nós ambos, segurou-o nos joelhos, desafivelou a correia que lhe segurava a tampa, e dando-me uma laranja que tirou de dentro, disse-me com a gravidade indulgente e bondosa de um enfermeiro ou de um médico:

- Prescrevo-lhe o regime refrigerante.

- Por Deus, me parece que estava precisando da receita! tornei-lhe eu, pondo-me a rir.

E, voltando para o lugar que primeiramente ocupava defronte dela, principiei a descascar a laranja e a morder com apetite nesse fruto, que não era por certo o fruto proibido.

- Sim, senhor… ia-me dizendo no entanto a minha graciosa companheira, baralhou bem as cartas e arranjou bom jogo!

- Ah! então confessa . . .

- Confesso-lhe que sim.

- Posso oferecer-lhe da minha dieta? preguntei eu, dando-lhe metade da laranja.

Ela separou um gomo.

- Quando acabar, podemos continuar.

- Continuo imediatamente, cortei eu logo, debruçando-me na portinhola para cuspir uma pevide que tinha nos beiços.

Senão quando a corrente do ar cortado pela locomotiva levou-me da cabeça o meu chapéu.

Preciso abrir para este objecto perdido um parêntese, de cuja substância Deus me livre que se soubesse! Tinha sido feito em Paris por - Pinaud & Amour - esse bonito chapéu tão flexível, que se meteria dentro de um sobrescrito! Era de casimira azul como a minha jaqueta de viagem, forrado de azul-claro com debrum pespontado de seda preta. O próprio Amour me tinha dito ao vender-mo por vinte francos - Cela vous coiffc à merveille - e eu tinha tido a criminosa fraqueza de o acreditar! Aquele chapéu não era para mim somente um chapéu, era um elmo e um arnês. Não me considerava simplesmente coberto quando o punha, considerava-me também armado. Queres que te confesse a verdade? Eu não me teria nunca atrevido a apertar os dedos da minha alemã, nem a beijar-lhe apaixonadamente a luva, se o não trouxesse na cabeça, e era realmente muito mais com o talento dos srs. Pinaud & Arnour, do que com o meu próprio, que eu contava para me fazer passar junto dela por um homem de espírito !

Os cabelos despenteados pelo vento tinham-me caído para cima dos olhos; compreendi que estava ridículo, não podendo esconder este ar sumamente tolo de todo o homem a quem de repente desaparece o chapéu na asa de um tufão.

Ela ria às gargalhadas, as quais me caíam na cabeça... na cabeça não - pelas costas abaixo! - como torrentes de água nevada.

O sr. S. M., de quem confesso que me tinha completamente esquecido, e que continuava sempre a sua viagem no nosso compartimento, apiedou-se de mim, e, lançando generosamente a mão à rede da carruagem, baixou nos seus braços uma caixa de chapéu do tamanho de um gasómetro, e disse-me assim:

- Tenho aqui com que lhe valer!...

Entendi que rabearia um castor inteiro para fora daquela toca ambulante, e ia conter com um gesto a benevolência do meu delicado companheiro, quando ele me observou, rebatendo o meu susto com um sorriso:

- Não é o que cuida! Está cá dentro o objecto que lhe convém.

E dizendo isto, sacou da chapeleira, suspenso por uma aparatosa borla de retrós preto, um barrete de veludo ornado de amores-perfeitos bordados a matiz.

Hesitei por um instante entre aceitar o barrete, o que era hediondo, e confessar-lhe medo, o que era pueril. Revesti-me finalmente de todo o meu valor e estendi a dextra para o inocente carapuço, que estava sendo na mão do sr. S. M. gládio da suprema justiça, alfange exterminador da minha pecadora vaidade. Fechei em seguida os olhos como quem vai lançar-se em um abismo, peguei no barrete com ambas as mãos, levantei-o à altura do rosto, deixando-lhe a borla pendente, entreabri os olhos e vi o monstro boquiaberto... Tornei logo a cerrar as pálpebras, e meti a minha infeliz cabeça no seu novo invólucro!

Estava consumado.

A minha gentil companheira deu-me o golpe de misericórdia inclinando-se para mim, pegando-me em ambas as mãos e dizendo-me entre duas gargalhadas:

Valor! acredite... que o amo. Respondeu-lhe o silêncio da morte. O barrete de veludo, circundado do matiz dos amores-perfeitos, cuja borla me caía como o crepe funerário de uma lança ao longo da orelha esquerda, era o túmulo e o epitáfio das minhas ilusões dêsse formoso dia!

Ser amado, tendo na cabeça um barretinho de veludo com sua borlazinha ao lado, pedindo para cima da outra orelha a pena de pato ramalhuda e majestosa, insígnia burocrática do guarda-mor pontual e do tabelião zeloso! Ser amado, e ouvi-lo assim dizer nessa hora tremenda pela boca mais engraçadamente zombeteira a que Deus permitiu a momice da provocação! Que havia de retorquir eu em tão horrorosa conjuntura? Mover-me para fazer bambolear sobranceira ao meu coração aquela borla fatal como o espanador dos meus afectos juvenis? ajoelhar-me aos pés dela e pôr-lhe nojosamente no regaço aquela cabeça do feitio e da fazenda de uma afrontosa almofada de costura, ou de uma ignóbil pregadeira de alfinetes?!…

Assim os perdi pois, para todo sempre, a ambos: a ela e a ele; a mais encantadora alemã que meus olhos têm visto e o mais bonito chapéu que em minha cabeça tenho posto!

* * *

Encerra esta pequena história a imagem da felicidade e por isso ta dedico a ti, meu querido Júlio, a quem a desejo mais completa e mais perfeita. O que é desgraçadamente a fortuna senão esse chapéu que um pé-de-vento arrebata, e esse amor que a presença de um barrete extingue?

Ramalho Ortigão

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

NINA HAGEN
«All You Fascists Bound To Lose»

Poet'anarquista

TODOS OS FASCISTAS OBRIGADOS A PERDER

Eu vou te dizer fascista
Você pode ser surpreendido
As pessoas neste mundo
Estão se organizando
Você está prestes a perder
Vocês fascistas ligados a perder ...

O ódio racial não pode nos parar
Esta única coisa que sabemos
O imposto de votação em Jim Crow
E a ganância tem que acabar
Você está prestes a perder
Vocês fascistas ligados a perder ...

Todos vocês fascistas ligados a perder
Eu disse, todos vocês fascistas ligados a perder
Sim senhor, todos vocês, fascistas obrigados a perder
Você é obrigado a perder! Vocês fascistas
Obrigados a perder!

Pessoas de todas as cores
Marchando lado a lado
A atravessar esses campos
Quando morre um milhão de fascistas
Você está prestes a perder
Vocês fascistas ligados a perder!

Eu estou indo para essa batalha
Com a minha arma em união
Vamos acabar com esse mundo de escravidão
Antes desta batalha estar ganha
Você está prestes a perder
Vocês fascistas ligados a perder!

Nina Hagen 
Cantora Germânica

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

CARTOON versus DÉCIMA

Eu Indigito
HenriCartoon

«EU INDIGITO»

Abaixo a Depública!
Viva a União-Eudopeia
E o Peddo diaddeia…
Toca o baile, siga a música.
Eis então a única
Solução de cudtas vistas:
Incham os Anti-Eudopeístas
Com o que desolvi indigitad,
O poded é pda continuad
Na mão dos fascistas!!!

Traduzindo a múmia…

Abaixo a República!
Viva a União-Europeia
E o Pedro diarreia…
Toca o baile, siga a música!!
Eis então a única
Solução de curtas vistas:
Incham os Anti-Europeístas
Com o que resolvi indigitar,
O poder é pra continuar
Na mão dos fascistas!!!

POETA

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

NINA HAGEN - «African Reggae»

Poet'anarquista

REGGAE AFRICANO

Ele cheira tão bem
Certifique-se de que você não é agarrado em flagrante!
Pois eles estão atrás de você,
Tu maconheiro velho
Este é o teu mundo e é baseada em alcoolismo,
Mas eles vão perseguir-te!

Haxixe
O melhor de caxemira
Os melhores Afegãos
Um lugar para minha querida
Cannabis na Holanda
Bob Marley em Vénus

Eu quero ir para África «Jah Rastaman»
Para a cultura negra (céu, o que quer dizer?)
Eu quero fazer coisas como os meus amigos negros
Qui delaomgi ... holaotrihi cucou ....
Saudações da Alemanha

Haxixe
O melhor de caxemira
Os melhores Afegãos
Um lugar para a minha querida
Cannabis na Floresta Negra
Bob Marley em Vénus

Porque vou eu a África como uma mulher
Se o negro castra a mulher negra
Au... Au... Castração

Levanta-te, levanta-te para a revolução negra
Para a revolução da revolução
levanta-te, levanta-te!

Nina Hagen
Cantora e Compositora Germânica

OUTROS CONTOS

«A Morte Amorosa», por Théophile Gautier.

«A Morte Amorosa»
O Pesadelo/ Henri Fuseli

649- «A MORTE AMOROSA»

[Excerto]

Você me pergunta, irmão, se amei; respondo que sim. É uma história singular e terrível, e, embora tenha sessenta e seis anos, mal ouso tocar nas cinzas dessa lembrança. Não quero lhe negar nada, mas não contaria tal história a alguém menos experiente. São acontecimentos tão estranhos que custo a acreditar que tenham ocorrido. Durante mais de três anos fui vítima de uma ilusão singular e diabólica. Eu, pobre pároco de aldeia, vivi em sonhos (Deus queira que tenha sido um sonho!), durante todas as noites, uma vida de danado, uma vida de mundano, de Saradanapalo. Um único olhar demasiado complacente lançado sobre uma mulher quase me custou a perda da minha alma; mas, finalmente, com a ajuda de Deus e do meu santo padroeiro, consegui expulsar o espírito maligno que havia se apossado de mim. Minha vida confundira-se com uma existência nocturna completamente diferente. De dia, eu era um sacerdote do Senhor, casto, ocupado com a oração e com as coisas santas; à noite, mal fechava os olhos, transformava-me num jovem senhor, grande conhecedor de mulheres, vinhos, cães e cavalos, que jogava dados e blasfemava; e quando me acordava, ao nascer do sol, parecia ao contrário que adormecia, e que sonhava ser padre.

Dessa vida sonâmbula restou-me a lembrança de objectos e palavras contra as quais não posso me defender, e, apesar de jamais ter transposto as paredes do meu presbitério, quem me ouvisse, diria que sou um homem que experimentou de tudo e que, voltando do mundo, tomou o hábito para terminar uma existência demasiado agitada no seio de Deus, e não um humilde seminarista que envelheceu numa paróquia ignorada, escondida no fundo de um bosque, sem nenhum contacto com as coisas do mundo.

Sim, amei como ninguém amou neste mundo, com um amor insensato e furioso, tão violento que me espantei que o meu coração não tenha explodido. Ah! Que noites! Que noites!

Théophile Gautier

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

CARTOON versus QUADRA

O Jogo da Palhinha
HenriCarrtoon

«O JOGO DA PALHINHA»

- A política é uma questão de sodte…
Pod isso uso este método infalível
Que é de todos o mais cdedível…
Pdestem atenção!... vou dad o mote:

 Quem tirad a palha mais pequena
Destas duas que tenho na mão…
- Foi a mim que calhou essa cena!
- Sedá o novo líded da oposição.

Traduzindo...

- A política é uma questão de sorte…
Por isso uso este método infalível
Que é de todos o mais credível…
Prestem atenção!... vou dar o mote:

 Quem tirar a palha mais pequena
Destas duas que tenho na mão…
- Foi a mim que calhou essa cena!
- Será o novo líder da oposição.

POETA

CARTOON versus QUADRAS

Os Nobres
HenriCartoon

«OS NOBRES»

- Tortas, cederes o número dois
No governo ao Bosta,
É uma óptima proposta…
A nobreza é própria dos bois!

- Obrigado, Fedelho… conto
Ser o número um da realeza
Que me cederás com nobreza…
Acredita que estou pronto!

POETA

OUTROS CONTOS

«Bem-Vindo aos Anos Zero», conto poético por David Teles Pereira.

«Bem-Vindo aos Anos Zero»
Conto Poético de David Teles Pereira

648- «BEM-VINDO AOS ANOS ZERO»

Com a minha idade, o meu pai já era um homem honrado,
o meu avô trabalhava na marinha mercante,
disparava ocasionalmente um ou dois foguetes
em direcção a terra seca, em homenagem ao amor de uma mulher
que conheceu antes da minha avó e que me teria dado
olhos azuis e muito menos problemas.
Aos dezoito anos os meus pais participaram na Revolução.
O meu avô também. Tinha quarenta e cinco.
Depois os meus pais casaram, desculparam-se com o ciclo da vida,
o país parecia estar no bom caminho, a casa ainda não.
Quis ser actor o meu avô, depois de ter passado
cinco dias e quatro noites a traduzir uma peça de Brecht
num quarto da pensão Rosa com vista para o rio Sado.

Então nasceu o meu irmão com os olhos que - toda a gente
confirmava - eram iguaizinhos aos da minha mãe.
Depois nasci eu e depois a minha irmã, com olhos de Varsóvia,
não tão honrados quanto belos.
Eu ainda nasci em Portugal, a minha irmã já não, nasceu na CEE,

que entretanto tinha ensinado a minha mãe e o meu pai a serem
ainda mais perfeccionistas nisso de serem honrados.
O meu avô continuava a traduzir Brecht e desconfiava
da PAC e de tudo aquilo que pudesse ser formulado
apenas em três letras.
Para ele, no mínimo, eram necessárias quatro.

Foderam-me a vida, o meu pai e a minha mãe,
e o pior é que o fizeram para que eu pudesse chegar
aos vinte e três anos e dizer que já sou um homem honrado,
tal como o meu pai tem sido, ao contrário do meu avô,
que prefere Brecht à linear organização comercial
do novíssimo amor português.

E pior ainda é que tenho vinte e três anos
e corro o risco de já ser um homem honrado.

David Teles Pereira

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

CARTOON versus DÉCIMA

Avante, Camarada!
HenriCartoon

«AVANTE, CAMARADA!»

O Bosta surpreende
A direita na jogada…
Avante, camarada,
Prá esquerda pende.
A direita entende
Que deve governar,
A esquerda a reclamar
Pra si todo o poder...
O que vai acontecer
Pode-se adivinhar!

POETA

CARTOON versus SONETO

A Perda de Tempo
HenriCartoon

«A PERDA DE TEMPO»

- Senhor Presidente sem República:
A indigitação da direita radical
É uma má opção governamental…
Perder tempo agora, só complica!

- A esquerda radical está preparada
Pra tomar as rédeas do poder?
- Basta o senhor presidente querer!...
Estranho o silêncio… não diz nada?

- Também sobre essa matéria nada direi…
Como é costume, deixo pra mais tarde
E de momento não me pronunciarei.

- Convém que o presidente salvaguarde
A decisão. - O fim da reunião esperarei…
Por ora, a esquerda radical que aguarde!

POETA

OUTROS CONTOS

«Inconfidência», conto poético por Matias José.

«Inconfidência»
Décima de Matias José

647- «INCONFIDÊNCIA»

Vou cometer uma inconfidência:
Nada que escrevo está guardado…
Como dar conta do riscado
Se não há qualquer referência?
Desconheço a sua existência
Nos trilhos da literatura,
Ninguém sabe onde tal figura
Esconde o segredo da escrita…
Diz o poeta: - não me palpita
O coração nesta amargura!

Matias José

terça-feira, 20 de outubro de 2015

OUTROS CONTOS

«Tudo tem um Fim», conto poético por Matias José.

«Tudo tem um Fim»
Décima de Matias José

646- «TUDO TEM UM FIM»

Na mesa de operação
Com as tripas de fora…
Parece que chegou a hora,
Não se vislumbra solução.
Dez anos de duração
Não é pra qualquer um,
O meu amigo comum
Cansou-se de mim…
Tudo tem um fim,
Não há segredo algum!

Matias José 

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

OUTROS CONTOS

«PC em Coma», conto poético por Matias José.

«PC em Coma»
Décima de Matias José

645- «PC EM COMA»

Com o PC avariado
Faz mais duma semana...
A doença não engana,
Tem o motor cansado!
Dou assim por terminado
O trabalho de escrita,
A minha vontade gravita
Entre fazer ou não fazer...
Tudo pode acontecer
Quando a alma se agita!

Matias José

domingo, 18 de outubro de 2015

OUTROS CONTOS

«Viva a Boa-Disposição», conto poético por Matias José.

«Viva a Boa-Disposição»
Décima de Matias José

644- «VIVA A BOA-DISPOSIÇÃO»

Sorriso d’ olho aberto
Com ar bonacheirão,
Viva a boa-disposição
Do André, meu rico neto!
Tens pinta de esperto
Esse olhar não engana,
O avô todo se ufana
Da mascote da plebe...
À tua saúde hoje bebe
Desta taça alentejana!

Matias José

sábado, 17 de outubro de 2015

OUTROS CONTOS

«A Mendiga de Locarno», por Heinrich von Kleist.

«A Mendiga de Locarno»
A Mendiga/ Almeida Júnior

643- «A MENDIGA DE LOCARNO»

Ao pé dos Alpes, nas proximidades de Locarno, no norte da Itália, encontra-se um antigo castelo, que se vê quando se chega de São Gotardo, ele pertenceu a um marquês, e agora se encontra em escombros e ruínas: um castelo com altos e espaçosos cômodos, num dos quais, outrora, estava sobre a palha para ela ali colocada, por compaixão da dona-de-casa, uma velha mulher doente, que chegara à porta para pedir esmolas. O marquês que, no retorno da caçada, por acaso entrou neste quarto, onde ele costumava colocar sua espingarda, ordenou, contrariado, à mulher, que se levantasse do canto no qual estava deitada e fosse para trás da estufa. A mulher, que se levantou, resvalou com a muleta no chão escorregadiço e machucou a coluna de maneira crítica; de tal modo que ela, na verdade com indizível esforço, levantou-se e atravessou o quarto como foi prescrito, porém atrás da estufa, sob gemidos e suspiros, caiu no chão e faleceu.

Alguns anos depois, quando o marquês ficou em grave situação patrimonial devido à guerra e à má colheita, chegou-lhe um cavaleiro florentino que desejava comprar o castelo graças à sua bela localização. O marquês, para quem o negócio era muito oportuno, encarregou a esposa de acomodar o visitante no quarto, anteriormente vazio, que fora bela e luxuosamente mobilado. Quão confuso ficou o casal, quando o cavaleiro, transtornado e pálido, voltou no meio da noite, assegurando alta e valorosamente, que o quarto era assombrado, que nele havia algo invisível ao olhar, que fazia um ruído como se estivesse sobre palha, se levantava no canto do quarto, atravessava-o lenta e fragilmente com passos claramente perceptíveis, e atrás da estufa, sob gemidos e suspiros, caía no chão.

O marquês assustado, ele mesmo não sabia direito por quê, zombou do cavaleiro com artificial satisfação, e disse que, para sua tranquilidade, se levantaria imediatamente e passaria a noite com ele no quarto. Mas o cavaleiro pediu o obséquio de que lhe permitissem pernoitar na poltrona do seu quarto de dormir, e assim que a manhã chegou, mandou atrelar os cavalos, despediu-se e partiu.

Este acontecimento, que produziu muita agitação, espantou vários compradores para supremo desagrado do marquês; de tal modo que entre sua própria criadagem se levantou o estranho e incompreensível rumor de que no quarto algo transitava à meia-noite; para resolver a situação, decidiu examinar o assunto na noite seguinte. Assim, ao entardecer, deixou sua cama montada no dito quarto e permaneceu sem dormir até a meia-noite. Mas quão consternado ficou, quando, de fato, com a batida da meia-noite, percebeu o incompreensível ruído; era como se um ser humano se levantasse da palha, que sob ele estalava, atravessasse o quarto e caísse atrás da estufa entre lamúrias e queixumes. A marquesa lhe perguntou, na manhã seguinte, quando ele voltou, como terminara a investigação; e ele, então, mirou ao seu redor com assustadiço e duvidoso olhar, e depois de trancar a porta, assegurou que havia veracidade na história da aparição: ela se assustou como nunca lhe acontecera em sua vida, e pediu-lhe que, antes de falar sobre o caso, se sujeitasse com sangue frio, novamente, a uma prova, desta vez em sua companhia. Na noite seguinte, de fato, eles ouviram, juntamente com um leal criado que os acompanhava, o mesmo incompreensível, fantasmagórico ruído; e apenas o urgente desejo de se ver livre do castelo a qualquer preço lhes deu ânimo para reprimir, perante o empregado, o pavor que se apoderou deles, e justificar o acontecimento com um despreocupado e casual motivo, que tiveram de inventar. Na noite do terceiro dia, como ambos queriam descobrir a verdade do caso, subiram, com nervosismo, novamente a escada que levava ao estranho quarto; por acaso, chegou, frente à mesma porta, o cachorro da casa, que alguém tinha soltado da corrente; de tal modo que ambos, sem se comunicarem verbalmente, levaram o cachorro para o quarto, talvez com o objetivo instintivo de ter, além deles mesmo, ainda um terceiro ser vivo. 

O casal, em torno das onze horas, se sentou cada um em sua cama: duas luminárias sobre a mesa, a marquesa não-despida, o marquês com espada e pistolas que ele pegou do armário perto de si; e enquanto eles procuravam, tão bem quanto conseguiam, se entreter com conversas, o cachorro deitou-se no chão no meio do quarto, encolheu-se juntando cabeça e pernas e adormeceu. Depois, no instante da meia-noite, pôde novamente ser ouvido o terrível ruído; alguém, que nenhum ser humano pode ver com os olhos, ergueu-se com muletas no canto do quarto; ouviu-se a palha, que sob si farfalhava; e com o primeiro passo: tap! tap! o cachorro acordou, ergueu-se do chão de repente, aguçou as orelhas, e rosnando e latindo, foi se esquivando para trás em direcção da estufa, como se um ser humano caminhasse em sua direção. Neste momento, a marquesa, com os cabelos arrepiados, saiu correndo do quarto; e, enquanto o marquês, que agitava a espada, gritou: quem lá?, sem obter resposta, o vento, de repente, pareceu vir de todos os lados, e a marquesa partiu, ágil, resoluta e instantaneamente, em direção da cidade. Mas antes que empacotasse algumas coisas e se colocasse para além do portão, viu o castelo à sua volta arder em chamas. O marquês, tomado pelo pavor, pegara uma vela, e lá mesmo, ateara fogo nos quatro cantos, por tudo que era revestido de madeira, já cansado de sua vida. Em vão, ela enviou pessoas para salvar o infeliz; ele perecera do modo mais terrível, e ainda hoje se encontram, recolhidos pela gente do lugar, seus brancos ossos no canto do quarto, do qual ele ordenou que a mendiga de Locarno se levantasse.

Heinrich von Kleist