quarta-feira, 4 de novembro de 2015

OUTROS CONTOS

«As Suspeitas dum Bravo Capitão», por José Martins Garcia.

«As Suspeitas dum Bravo Capitão»
Escritor Português José Martins Garcia

657- “AS SUSPEITAS DUM BRAVO CAPITÃO”

Com a chegada do mês de Dezembro, a situação melhorara a olhos vistos. Os tornados rodopiantes e lamacentos haviam cedido o lugar a uma viração seca, quase apetitosa, que parecia limpar da planura guineense aquele fedor alagado onde se misturava à erosão um subtil, talvez moral, cheiro a cadáver.

Na vila de Catió, lá para o Sul, onde a mosquitagem crescia delirante na estação das chuvas, o batalhão de caçadores tinha agora um novo comandante, o tenente-coronel Galvão, um ser tratável, quase bondoso, um tanto sentimental, um tudo-nada neurasténico antes de se lançar nos uísques. O antigo comandante, o insuportável tenente-coronel Barradas, cuja paranóia crescera na proporção directa do entupimento dos tímpanos, havia sido afastado do activo, finalmente.

 Para aboletar todo este pessoal belicoso, o quartel expandiu-se pelo povoado. Os militares ocuparam tudo o que possuísse tecto, desde casas meio arruinadas até às moradias de comerciantes que, alertados pelos primeiros rumores do invencível terrorismo, rapidamente se haviam transferido para regiões de mais densa população branca, nomeadamente Bissau e Bafatá.

O ataque à ilha de Como, onde posteriormente se instalaria a chamada companhia do Cachil, nunca foi registado pelos cronistas, talvez porque estes, sempre tão eloquentes em casos de vitória, se desgostam das estrondosas derrocadas... a Força Aérea cumpriu o seu dever, descarregando sobre os objectivos o arsenal estipulado. Para nada! Os abrigos subterrâneos da ilha do Como, construídos, dizia-se pelos soldados do Hitler, em certa fase da Segunda Guerra Mundial, resistiam bem a qualquer bombardeamento, não só devido à cortina natural da vegetação como pela consistência do material, coisa alemã, coisa inexpugnável, ali mandada cavar pelo Hitler... Depois da Força Aérea, coube a vez à Artilharia, ali classicamente postada para cobrir o avanço da Cavalaria. A Artilharia cumpriu a sua missão, despejando sobre a ilha sinistra a quantidade estipulada de material ardente, sem grande precisão, aliás, pois o alvo flutuava nessa latitude onde as marés esticam e encurtam a terra em vários milhares de quilómetros quadrados. A Cavalaria entrou nas lanchas da Marinha e, sob a protecção da Artilharia, escorregou para o lamaçal desconhecido. A Infantaria, finalmente chamada a reconquistar com seu pé clássico o terreno rebelde, saltou no vazio, atolou-se, afundou-se, emaranhou-se e alguns dos nossos mais bravos soldados crucificaram-se a si mesmo no matagal.

E então o inimigo invisível foi abatendo misericordiosamente os feridos, enquanto a Marinha dava por cumprida a delicada missão, a Artilharia cessava a actuação segunda bem conhecidas regras e a Cavalaria jazia em veículos inoperantes. Havia muito que a Força Aérea despejara seus inócuos carregamentos, pois a noite caíra, repentina, e só os moribundos, sem cronista de serviço, se esvaiam sobre a lama que o tempo não guardou.

Foi quando chegou a Catió, em escala para Bissau o doente capitão Lourenço, ex-comandante efectivo do Cachil. As suas faces chupadas não excluíam de forma alguma a hipótese de doença ruim... o comandante Galvão apressou-se a enviar para Bissau o hóspede impertinente, “para ele se curar”. Do Cachil não vinham nem bons ventos nem bons hóspedes, nem sequer boas notícias. A última irregularidade cometida por essas bandas rezava da alquimia operada no interior de um barril, cujo conteúdo vínico se revelara água. O comandante Galvão abominava as pequenas trapaças tão frequentes na carreira que escolhera. E, por pensar em reabastecimentos, fez-lhe espécie, pela primeira vez, o facto de o capitão Clemente, oficial de Cavalaria, se ter enconchado na manutenção, superintendendo na batata, no vinho, no arroz, no bacalhau, como se fosse um desses da Administração, um “padeiro”. O capitão Clemente empalideceu quando soube da decisão do tenente-coronel Galvão: mandá-lo para o Cachil, na qualidade de comandante interino, encarregando-o, mui honrosamente, de apurar a verdade acerca da transformação do vinho em água, alquimia tanto mais escandalosa quanto invertia a regra dos Evangelhos.

– Mas, meu comandante – gaguejou o capitão Clemente – logo agora, que a minha mulher veio para cá...

– Mas você fica lá só uns dias, homem! Há meses que não se ouve um tiro para aquelas bandas... a situação melhorou é o que toda a gente diz.

O capitão Clemente partiu desmoralizado e começou a portar-se mal diante da escolta que o acompanhou ao cais, chegando ao ponto de gemer de voz embargada:

– Agora é que não torno a ver a minha mulher nem os meus filhos...

Ao cair brusco da noite, encontrava-se no seu novo e miserável posto de comando, enclausurado pelo arame farpado, remoendo angústias, ao centro do improvisado quartel: um abrigo subterrâneo com duas toscas divisões, uma saleta quase desmobilada, separada do quarto por uma vedação de bambu mal entrançado... Mais tarde quando deu as boas noites aos alferes e se fechou no quarto, voltaram-lhe à memória as fábulas incertas, tão incertas quanto divulgadas em terras da Guiné: dezenas de mortos e feridos: a Cavalaria a atolar-se, a Artilharia a esquivar-se, a Infantaria a imolar-se. Às duas da manhã, porque era preciso poupar combustível, as lâmpadas extinguiram-se e a geradora deixou de arquejar. O capitão Clemente chamou a sentinela e recomendou-lhe vigilância; que não abandonasse a porta da tabanca. A sentinela limitou-se a acenar afirmativamente. Que imbecis! E as latrinas haviam mergulhado no escuro, lá para o outro extremo. Que criminosos! Nem havia uma privada para uso privado do comandante.

O capitão Clemente começou a sentir dores de barriga. Tinha medo, é certo; mas a causa daquelas cólicas devia ser o mau estão do jantar: uns feijões embrulhados em farrapos de carne duvidosa... o capitão Clemente dormiu pessimamente, revolvendo-se na cama dura, sentir atolar na água negra do canal. Muito cedo, a passarada desatou a chilrear. O Sol, finalmente, viria trazer-lhe um pouco de alento, depois do horrível negrume daquela noite memorável.

O capitão espreitou por uma nesga da porta e avistou a sentinela. Com um berro indignado, onde perpassavam a aspereza e o peso do comando, mandou que o militar se aproximasse:

– Entra, que temos de conversar!

O soldado mal abria os olhos atordoados, pois acabara de render um camarada:

– Estás a ver aquilo, pá?

Hirto, solene, o capitão Clemente apontava um canto do quarto, onde alguns cagalhões se cavalgavam.

– Põe-te em sentido! – uivou a indignação do bravo capitão Clemente.

O soldado obedeceu, boquiaberto.

– E agora – rematou o bravo capitão, mais que fera – responde! Quem foi o filho da puta que fez uma coisa destas?

José Martins Garcia

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