«As Suspeitas dum Bravo Capitão»
Escritor Português José Martins Garcia
657- “AS SUSPEITAS DUM BRAVO CAPITÃO”
Com a chegada do mês de Dezembro, a situação melhorara a
olhos vistos. Os tornados rodopiantes e lamacentos haviam cedido o lugar a uma
viração seca, quase apetitosa, que parecia limpar da planura guineense aquele
fedor alagado onde se misturava à erosão um subtil, talvez moral, cheiro a
cadáver.
Na vila de Catió, lá para o Sul, onde a mosquitagem crescia delirante na
estação das chuvas, o batalhão de caçadores tinha agora um novo comandante, o
tenente-coronel Galvão, um ser tratável, quase bondoso, um tanto sentimental,
um tudo-nada neurasténico antes de se lançar nos uísques. O antigo comandante,
o insuportável tenente-coronel Barradas, cuja paranóia crescera na proporção
directa do entupimento dos tímpanos, havia sido afastado do activo,
finalmente.
Para aboletar todo este pessoal belicoso,
o quartel expandiu-se pelo povoado. Os militares ocuparam tudo o que possuísse
tecto, desde casas meio arruinadas até às moradias de comerciantes que,
alertados pelos primeiros rumores do invencível terrorismo, rapidamente se
haviam transferido para regiões de mais densa população branca, nomeadamente
Bissau e Bafatá.
O ataque à ilha de Como, onde posteriormente se instalaria a chamada companhia
do Cachil, nunca foi registado pelos cronistas, talvez porque estes, sempre tão
eloquentes em casos de vitória, se desgostam das estrondosas derrocadas... a
Força Aérea cumpriu o seu dever, descarregando sobre os objectivos o arsenal
estipulado. Para nada! Os abrigos subterrâneos da ilha do Como, construídos,
dizia-se pelos soldados do Hitler, em certa fase da Segunda Guerra Mundial,
resistiam bem a qualquer bombardeamento, não só devido à cortina natural da
vegetação como pela consistência do material, coisa alemã, coisa inexpugnável,
ali mandada cavar pelo Hitler... Depois da Força Aérea, coube a vez à
Artilharia, ali classicamente postada para cobrir o avanço da Cavalaria. A
Artilharia cumpriu a sua missão, despejando sobre a ilha sinistra a quantidade
estipulada de material ardente, sem grande precisão, aliás, pois o alvo
flutuava nessa latitude onde as marés esticam e encurtam a terra em vários
milhares de quilómetros quadrados. A Cavalaria entrou nas lanchas da Marinha e,
sob a protecção da Artilharia, escorregou para o lamaçal desconhecido. A
Infantaria, finalmente chamada a reconquistar com seu pé clássico o terreno
rebelde, saltou no vazio, atolou-se, afundou-se, emaranhou-se e alguns dos
nossos mais bravos soldados crucificaram-se a si mesmo no matagal.
E então o inimigo invisível foi abatendo misericordiosamente os feridos,
enquanto a Marinha dava por cumprida a delicada missão, a Artilharia cessava a
actuação segunda bem conhecidas regras e a Cavalaria jazia em veículos
inoperantes. Havia muito que a Força Aérea despejara seus inócuos carregamentos,
pois a noite caíra, repentina, e só os moribundos, sem cronista de serviço, se
esvaiam sobre a lama que o tempo não guardou.
Foi quando chegou a Catió, em escala para Bissau o doente capitão Lourenço,
ex-comandante efectivo do Cachil. As suas faces chupadas não excluíam de forma alguma
a hipótese de doença ruim... o comandante Galvão apressou-se a enviar para
Bissau o hóspede impertinente, “para ele se curar”. Do Cachil não vinham nem
bons ventos nem bons hóspedes, nem sequer boas notícias. A última
irregularidade cometida por essas bandas rezava da alquimia operada no interior
de um barril, cujo conteúdo vínico se revelara água. O comandante Galvão
abominava as pequenas trapaças tão frequentes na carreira que escolhera. E, por
pensar em reabastecimentos, fez-lhe espécie, pela primeira vez, o facto de o
capitão Clemente, oficial de Cavalaria, se ter enconchado na manutenção,
superintendendo na batata, no vinho, no arroz, no bacalhau, como se fosse um
desses da Administração, um “padeiro”. O capitão Clemente empalideceu quando
soube da decisão do tenente-coronel Galvão: mandá-lo para o Cachil, na
qualidade de comandante interino, encarregando-o, mui honrosamente, de apurar a
verdade acerca da transformação do vinho em água, alquimia tanto mais
escandalosa quanto invertia a regra dos Evangelhos.
– Mas, meu comandante – gaguejou o capitão Clemente – logo agora, que a minha
mulher veio para cá...
– Mas você fica lá só uns dias, homem! Há meses que não se ouve um tiro para
aquelas bandas... a situação melhorou é o que toda a gente diz.
O capitão Clemente partiu desmoralizado e começou a portar-se mal diante da
escolta que o acompanhou ao cais, chegando ao ponto de gemer de voz embargada:
– Agora é que não torno a ver a minha mulher nem os meus filhos...
Ao cair brusco da noite, encontrava-se no seu novo e miserável posto de
comando, enclausurado pelo arame farpado, remoendo angústias, ao centro do
improvisado quartel: um abrigo subterrâneo com duas toscas divisões, uma saleta
quase desmobilada, separada do quarto por uma vedação de bambu mal
entrançado... Mais tarde quando deu as boas noites aos alferes e se fechou no
quarto, voltaram-lhe à memória as fábulas incertas, tão incertas quanto
divulgadas em terras da Guiné: dezenas de mortos e feridos: a Cavalaria a
atolar-se, a Artilharia a esquivar-se, a Infantaria a imolar-se. Às duas da
manhã, porque era preciso poupar combustível, as lâmpadas extinguiram-se e a
geradora deixou de arquejar. O capitão Clemente chamou a sentinela e
recomendou-lhe vigilância; que não abandonasse a porta da tabanca. A sentinela
limitou-se a acenar afirmativamente. Que imbecis! E as latrinas haviam
mergulhado no escuro, lá para o outro extremo. Que criminosos! Nem havia uma
privada para uso privado do comandante.
O capitão Clemente começou a sentir dores de barriga. Tinha medo, é certo; mas
a causa daquelas cólicas devia ser o mau estão do jantar: uns feijões
embrulhados em farrapos de carne duvidosa... o capitão Clemente dormiu
pessimamente, revolvendo-se na cama dura, sentir atolar na água negra do canal.
Muito cedo, a passarada desatou a chilrear. O Sol, finalmente, viria trazer-lhe
um pouco de alento, depois do horrível negrume daquela noite memorável.
O capitão espreitou por uma nesga da porta e avistou a sentinela. Com um berro
indignado, onde perpassavam a aspereza e o peso do comando, mandou que o
militar se aproximasse:
– Entra, que temos de conversar!
O soldado mal abria os olhos atordoados, pois acabara de render um camarada:
– Estás a ver aquilo, pá?
Hirto, solene, o capitão Clemente apontava um canto do quarto, onde alguns
cagalhões se cavalgavam.
– Põe-te em sentido! – uivou a indignação do bravo capitão Clemente.
O soldado obedeceu, boquiaberto.
– E agora – rematou o bravo capitão, mais que fera – responde! Quem foi o filho
da puta que fez uma coisa destas?
José Martins Garcia
Sem comentários:
Enviar um comentário