«Teia de Aranha»
Miguel Torga, Escritor Português
(Prémio Camões 1989)
735- «TEIA DE ARANHA»
O tempo em S. Cristóvão anda devagar. As terras são cascalho
puro, de maneira que é preciso dar prazo às raízes para roerem o granito até
fazerem de uma areia um grão de cevada ou de centeio. Um ano, ali, são
trezentos e sessenta e cinco dias bem medidos. E as pessoas que lá moram,
afeitas a horas longas, têm uma paciência de relojoeiro, cheia de mil cálculos
e de mil ponderações. Exactamente como nas leiras, onde a gente vê semanas a
fio o mesmo pé de milho parado, meditativo, enigmático, a aloirar
encobertamente a sua espiga, assim nos homens mais pasmados, mais lentos e mais
metidos consigo, anda às vezes uma resolução secreta a criar e a amadurecer. E
saem obras tão perfeitas destas meditações, tão acabadas na concepção e na
forma, que só o dedo da providência, porque aponta do céu, é capaz de lhes
evidenciar os defeitos de fabrico. Mas mesmo assim são às vezes precisos anos
para que Deus descubra a fenda do cântaro. Tal é a perfeição dos artífices de
S. Cristóvão!
No caso do tio do Artur, a façanha foi de pura
prestidigitação. Na altura exacta em que o rapaz, trabalhador e zeloso como
sempre., murava o lameiro da ribeira, o velho sumiu-se como por encanto.
Viram-no à noitinha ir buscar a jumenta ao monte da relva e trazer-lhe depois
feno do palheiro da Chá, mas daí por diante os seus passos apagaram-se sem
deixar rasto. Essa noite, embora de Agosto, foi escura e comprida, a condizer
com a manha e a perseverança do lugarejo. E nela nem se ouviram gemidos., nem
passos suspeitos, nem uivo de cão, nem pio de coruja. Nada. Ao cantar do galo,
quando a aldeia acordou, havia no ambiente a mesma calma serenidade do dia
anterior. As mulheres acenderam o lume e fizeram o caldo, os pedreiros, na obra
do Arturj, assentaram os alicerces do novo troço de parede, e só tarde, quase à
hora do almoço, é que a jerica, cansada do esquecimento em que o dono a deixara
na loja, deu de lá um impaciente sinal de enfado. E foi através desse riso que
S. Cristóvão compreendeu que o Bento Caniço., habitualmente tão madrugador., não acordara
ainda e que o melhor seria bater-lhe à porta.
Bateram, realmente., entraram., e não há dúvida que durante
o sono lhe acontecera qualquer desgraça. De que natureza, é que ninguém sabia.
A casa não estava roubada, não havia vestígios de luta nem
de violência, reinava uma tal melancolia no sepulcro vazio, que o dono parecia
ter subido ao céu.
De busca em busca, de suspeita em suspeita, de
interrogatório em interrogatório, o mistério cada vez se adensava mais. O
Caniço, nem mau nem bom, como era de regra no lugar, se não tinha amigos,
também não tinha inimigos. Solteirão, o que lhe pertencia, embora de tentar,
fizera-o de há muito por escritura ao Artur, seu único sobrinho. De forma que
ninguém descortinava maneira de encontrar o fio à meada.
Ora, por mais absurdo que seja o mundo, uma criatura não
desaparece da noite para o dia sem fazer pensar. O homem necessita de sentir
uma segurança vital a longo prazo. A morte é aceite por todos como senhora de
baraço e cutelo, mas a esperar pelo freguês lá muito longe, numa encruzilhada
que tem vários desvios. Por isso, o caso do Bento Caniço, evaporado da terra
por obra e graça, desencadeou em S. Cristóvão um vendaval de suspeitas e de
investigações. Tudo inútil. Os dias passaram, as raízes de várias sementeiras
digeriram os carolos de várias colheitas, e o problema cada vez mais
intrincado.
De todos os zelos pela claridade daquele sumiço, o maior
era, como de justiça, o do Artur. Honrado homem no conceito da aldeia, bom
cristão nos anais da igreja, dedicado à família, não houve passo que não desse,
esforço a que se poupasse, a ver se conseguia decifrar o enigma. E, quando
verificou que de maneira nenhuma podia valer ao corpo do tio, tentou ao menos
salvar-lhe a alma. Nesse capítulo, até o padre Maurício reconheceu que a
piedade do Artur roçara pelo exagero. Vinte missas em S. Cristóvão, já são
missas! Juntando ainda o ofício a sete vozes, com que mandou encomendar a
sombra do defunto, subiu-lhe a coisa a conto e pico, maquia de considerar.
E foi assim, dignificada na diligência vã dos estranhos e no
amor devotado do sobrinho, que a memória do Bento Caniço desbotou. Outras
mortes vieram, desta vez mais claras e menos perturbadoras, outros interesses
ocuparam a atenção lenta e ruminadora de S. Cristóvão., e outras missas de
sufrágio fizeram esquecer as vinte do Artur. Apenas as não rezou o padre
Maurício. Chegara também no céu a sua vez. E da terceira indigestão do ano,
rebentou. Venceu a dos pepinos e a dos pimentos, mas na dos melões; o fígado
não pôde mais.
Era um homem bonacheirão e aberto, da boca de quem saíam, de
vez em quando, confidências indiscretas que criavam o pânico no pequeno mundo de silêncio que pastoreava. Talvez para
compensar a mudez colectiva, falava ele. E cada paroquiano ou arrostava o ano
inteiro com o pesadelo de se não ter descosido na desobriga, ou escarolava a
alma publicamente através daquele alto falante. Mas morreu e foi substituído
por um colega que infelizmente não lia pela mesma cartilha. Muito mais comedido
nas refeições e na língua, o novo prior tinha ideias unificadoras do animal com
o meio e punha-as em prática. Seco de carnes, depressa compreendeu que a
voracidade palreira do antecessor não estava de acordo com a magreza sisuda do
chão de S. Cristóvão. De maneira que fartava o corpo no confessionário dos
pecados da aldeia e do que ouvia nessas horas intermináveis de cochicho não
vinha, nunca sinal ao mundo. Fechado na batina negra, que o amortalhava do
pescoço aos pés, acabava de descarregar as consciências da povoação enigmático
como um cipreste. Até parecia que nascera ali e mamara a soma germinação da
terra!
No apogeu do seu reinado, chegou a vida do Artur ao fim.
Apesar de moroso, o tempo vai batendo à porta de todos em S. Cristóvão. E,
quando o Artur menos esperava, soou-lhe também a hora, e foi preciso prepará-lo
para a grande viagem com a extrema-unção.
Morreu lúcido e é de crer que despejou o saco, na confissão
demorada que fez. Pelo menos o padre Lobato, no fim, deu-lhe a absolvição.,
ungiu-o -, e acompanhou-o depois à última morada.
- Descanse em paz...
- Ámen. Honrada, a mão do Paivoto deixou então cair sobre o
caixão as pazadas de terra gorda do cemitério, na comoção devida a uma alma
lavada.
- Que lhe seja leve... - choramingou a Ester.
- Se fosse no inverno, era pior.. gracejou o jacinto.
Choravam e riam como faz a vida. Mas havia neles o
sentimento pungente da negrura do momento, porque ao cabo e ao rabo o defunto
fora um homem, e urdira a sua teia de mortal em tudo de acordo com os usos e
costumes de S. Cristóvão.
A prova disso é que o próprio Criador, se lhe quis descobrir
as malhas caídas, teve de arranjar na serra uma trovoada desmedida e fazer
crescer as águas da ribeira como no dilúvio. Só assim a corrente pôde levar o
muro do lameiro e mostrar sob os alicerces o esqueleto branco do Bento Caniço -
o que restava do corpo inteiro que o sobrinho ali enterrara na noite do crime,
e sobre o qual os pedreiros, no dia seguinte, acamaram pedras inocentes.
Miguel Torga
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