«Difícil Poema de Amor»
Conto Poético de Luiza Neto Jorge
740- «DIFÍCIL POEMA DE AMOR»
Separo-me de ti nos solstícios de verão, diante da mesa do
juiz supremo
dos amantes. Para que os juízes me possam julgar, conhecerão
primeiro o
amor desonesto infinito feito de marés ambulantes de
espinhos nas pálpebras
onde as ruas são os pontos únicos do furor erótico e onde
todos os pontos
únicos do amor são ruas estreitíssimas velocíssimas
que se percorrem como um fio de prumo sem oscilação.
Ontem antes de
ontem antes de amanhã antes de hoje antes deste
número-tempo deste número-espaço uma boca feita de lábios
alheios beijou.
Precipício
aberto: ele nada revela que tu já não saibas.
Porque este
contágio de precipícios foste tu que mo comunicaste
maléfico como um pássaro sem bico.
Num silêncio
breve vestiu-se a cidade. Muito bom-dia
querido
moribundo. Sozinho declaraste a terceira grande paz mundial
quando abrindo
os olhos me deste de comer cronometricamente às mil e tantas
horas da
manhã de hoje.
Deito-me cedo
contigo o meu sono é leve para a liberdade
acordas-
-me só de pensares nela. As casas e os bichos apoiam-se em
ti. Não fujas não
te mexas: vou fixar-te para sempre nessa posição.
Que há? Abrem-se
fendas no ar que respiro vejo-lhe o
fundo. Tens os
olhos vasados. Qual de nós os dois "quero-Te"
gritou?
Bebe-me
espaçadamente encostada aos muros. Se és poeta que fazes tu?
Comes crianças jogas ases sentado és uma estátua de pé a
cauda de um cometa.
Mães entretanto
vão parindo. Os filhos morrerão ainda? Entregas-te a
cálculos. Amas-me demais.
Confesso: não sei
se sou amada por ti.
Virás quando houver uma fala indestrutível devolvida à boca dos
mais vivos.
Então virás vivo também. Sempre esperei ver-te ressuscitado.
Desiludiste-me.
E iremos com o
plural de nós nos leitos menores onde o riso, onde o
leito do rio é um filho entre os dois. Que farei de teus
braços de meus cabelos
benignos que faremos?
Nasci-te da minha
pele com algumas fêmeas te deitei por vezes.
Conheces-me. Não me tens amor
Grave esta corda
cortada agudo seixo me ataste aos olhos para me
afundar.
Só por grande
angústia me condenas à morte se de mim te veio a cidade
e os minúsculos objectos que já amaste ou que irás amar um
dia espero.
Ah a cratera o
abismo eléctrico!
Por isso o teu
novo amor será comigo mais perigoso que este imaculado
com mais visco de amor cópula mortal.
Calo-me.
Reparei de
repente que não estavas aqui. Pus-me a falar a falar. Coisas
de mulher desabitada. Sei que um dia desviarei sem ti os
passeios rectos
esvaziarei os gordos manequins falantes. A razão é uma chapa
de ferro
ao rubro: se acredito na tua morte começo o suicídio.
Enquanto
penetrantemente te espero a luz coalhou. Os pássaros
coalharam enquanto te espero. O leite enquanto te espero
coalhou. Haverá
outro verbo?
Submersa, muito
distante de qualquer inferno de um paraíso qualquer existo
eu. Existirão tais palavras?
É a altura de
escrever sobre a espera. A espera tem unhas de fome, bico
calado, pernas para que as quer. Senta-se de frente e de
lado em qualquer
assento. Descai com o sono a cabeça de animal exótico
enquanto os olhos se
fixam sobre a ponta do meu pé e principiam um movimento de
rotação em
volta de mim em volta de mim de ti.
Nunca te conheci
- assim explico o teu desaparecimento. Ou antes:
separei-me de ti no solstício de um verão ultrapassado. As
mulheres viajavam
pela cidade completamente nuas de corpo e espírito. Os
homens mordiam-se
com cio. Imperturbável pertenceste-me. Assim nos
separámos.
Não calhasse
morrer um de nós primeiro que o outro porque ambos ao
mesmo tempo será impossível enquanto não houver relógios que
meçam
este tempo e as horas fielmente se adiantarem e atrasarem.
Alguma vez
pretendi dizer-te o que quer que fosse? Falava por paixão
por tibieza por desgosto por claridade por frio por cansaço
nunca por
pretender dizer o que quer que fosse.
Não me desculpo.
Se já me cai o cabelo se já não sinto os ombros é
porque o amor é difícil ou a minha cabeça uma pedra escura
que carrego
sobre o corpo a horas e desoras ostentando-a como objecto
público sagrado
purulento. O odor que as pedras têm quando corpos. O
apocalipse de tudo
quando amamos. O nosso sangue em pó tornado entornado.
O teu amor
espreita o meu corpo de longe. De longe por gestos
lhe respondo. Tenho raízes nos vulcões ternuras íntimas medos reclusos
beijos nos
dentes.
A pobreza surge
dentro de nós embora cautelosos deitados de manhã e
de tarde ou simplesmente de noite despertos. Ambos meu amigo
estamos
sentados neste momento perfeitamente incautos já.
Contemplamos um país
e sentamo-nos e vestimo-nos e comemos e admiramos os
monumentos e
morremos.
Inventei a
nossa morte em toda a impossível
extensão das palavras.
Aterrorizei-me segundos a fio enquanto em corpo nu ouvindo-me
adormecias devagar.
Com a precaução
de quem tem flores fechadas no peito passeei de noite
pela casa. Um fantasma forçou uma porta atrás de mim. Gemendo
como um
animal estrangulado acordei-te.
Enterro o meu
terror como um alfange na terra. Porque é preciso ter
medo bastante para correr bastante toda a casa celebrar
bastantes missas negras
atravessar bastante todas as ruas com demónios privados nas
esquinas.
Só o amor tem uma
voz e um gesto mesmo no rosto da ideia que me
impus da morte.
És tu tão único
como a noite é um astro.
nome profissão morada telefone.
Disse-te: Eis-me.
E decepei-te a
cabeça de um só golpe.
Não queria
matar-te. Choro. Eis-me! Eis-me!
Luiza Neto Jorge
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