sexta-feira, 1 de julho de 2016

OUTROS CONTOS

«Bem-Vindo Bob», por Juan Carlos Onetti.

«Bem-Vindo Bob»
Caricatura do Escritor Juan Carlos Onetti

826- «BEM-VINDO BOB»

É certo que a cada dia estará mais velho, mais distante do tempo em que se chamava Bob, dos cabelos loiros caindo na têmpora, do sorriso e dos olhos luzidios de quando entrava silencioso na sala, murmurando um cumprimento ou movendo um pouco a mão perto da orelha, e ia sentar-se sob a lâmpada, perto do piano, com um livro ou simplesmente quieto e a parte, abstraído, olhando-nos durante uma hora sem nenhuma expressão no rosto, movendo os dedos de vez em quando para segurar o cigarro e sacudir as cinzas da lapela de seus ternos claros.

Igualmente distante — agora que se chama Roberto e se embriaga com qualquer coisa, protegendo a boca com a mão suja quando tosse — do Bob que tomava cerveja, apenas dois copos na mais longa das noites, com uma pilha de moedas de dez sobre sua mesa da cantina do clube, para gastar na jukebox. Quase sempre sozinho, ouvindo jazz, o rosto sonolento, contente e pálido, moven­do apenas a cabeça para cumprimentar-me quando eu passava, seguindo-me com os olhos pelo tempo que eu ali permanecesse, pelo tempo que me fosse possível suportar seu olhar azul incansavelmente fixo em mim, mantendo sem esforço o desprezo intenso e a ironia mais suave. Mas também com algum outro rapaz, aos sábados, alguém tão raivosamente jovem quanto ele, com quem conversava sobre solos, trompetes e coros e sobre a cidade infinita que Bob construiria na costa quando fosse arquiteto. Ao me ver passar ele parava para fazer-me o breve cumprimento sem tirar os olhos de meu rosto, derramando palavras apagadas e sorrisos por um canto da boca para o companheiro que, por fim, também me olhava, duplicando em silêncio o desprezo e a ironia.

Às vezes eu me sentia forte e tentava mira-lo: apoiava o rosto na mão e fumava sobre meu copo olhando-o sem pestanejar, sem descuidar de meu rosto, que devia manter-se frio, um pouco melancólico. Naquela época, Bob era muito parecido com Inês; podia ver algo dela em seu rosto através do salão do clube, e talvez numa dessas noites eu o tenha olhado como olhava para ela. Mas quase sempre preferia esquecer os olhos de Bob e me sentava de costas para ele e ficava observando as bocas dos que falavam em minha mesa, as vezes calado e triste para que ele soubesse que havia em mim algo mais do que aquilo que imaginara, algo próximo dele; as vezes me ajudava com uns copos e pensava "meu caro Bob, vá contar a sua irmãzinha”, enquanto acariciava as mãos das garotas que estavam sentadas a mesa comigo ou puxava um assunto qualquer, para que elas rissem e Bob ouvisse.

Mas, não importa o que eu fizesse, nem a atitude nem o olhar de Bob mostravam, naquela época, qualquer alteração. Só recordo isso como prova de que ele registrava minhas comédias na cantina. Uma noite, em sua casa, eu estava esperando Inês na sala, junto do piano, quando ele entrou. Usava um impermeável fechado até o pescoço, as mãos nos bolsos. Cumprimentou-me com um meneio de cabeça, olhou em torno e depois avançou pelo aposento como se, com o breve gesto, me tivesse eliminado: vi-o mover-se, girando em redor da mesa, sobre o tapete, andando sobre ele com seus sapatos amarelos de borracha. Tocou uma flor com o dedo, sentou-se na beira da mesa e pôs-se a fumar olhando para a floreira, o perfil sereno voltado para mim, um pouco inclinado, frouxo e pensativo. Imprudentemente — eu estava de pé, recostado no piano —, bati com a mão esquerda numa tecla grave e então fui obrigado a repetir o som a cada três segundos, olhando para ele.

Por ele eu só sentia ódio e um vergonhoso respeito, e continuei afundando a tecla, cravando-a com covarde ferocidade no silencio da casa, ate que repentinamente vi-me de fora, observando a cena como se estivesse no alto da escada ou na porta, vendo e sentindo Bob, silencioso e ausente junto ao fio de fumaça de seu cigarro que subia tremendo; sentindo-me, alto e rígido, meio patético, meio ridículo ali na penumbra, batendo a cada exatos três segundos na tecla gra­ve com o dedo indicador. Pensei, então, que não estava fazendo o piano soar por uma bravata incompreensível, mas que o estava chamando; que a nota profun­da que meu dedo fazia renascer obstinadamente a beira de cada ultima vibração era, por fim encontrada, a única palavra mendicante com que poderia pedir tolerância e compreensão a sua juventude implacável. Ele continuou imóvel até que Inês bateu a porta do quarto antes de descer para reunir-se comigo. Então Bob empertigou-se e veio caminhando com preguiça até o outro extremo do piano, apoiou um cotovelo, olhou-me por um momento e depois disse com um belo sorriso: "Esta noite é uma noite de cama ou de uísque? Ímpeto de salvação ou salto no abismo?”.

Eu não podia responder nada, não podia arrebentar sua cara com um soco; parei de tocar e fui retirando a mão do piano lentamente. Inês estava no meio da escada quando ele me disse, enquanto se afastava: “Bem, pode ser que você improvise”.

O duelo durou três ou quatro meses, e eu não podia deixar de ir ao clube durante as noites — lembro-me, a propósito, que havia campeonato de tênis naquela época —, pois quando eu ficava algum tempo sem aparecer por ali Bob cumprimentava meu regresso aumentando o desdém e a ironia em seus olhos e se acomodava no assento com um esgar feliz.

Quando chegou o momento em que eu não poderia desejar outra solução senão casar-me com Inês quanto antes, Bob e sua tática mudaram. Não sei como soube de minha necessidade de casar-me com sua irmã e de como eu abraçara aquela necessidade com todas as forças que me restavam. Meu amor por aquela necessidade abolira o passado e toda ligação com o presente. Não reparava, então, em Bob; mas pouco tempo depois lembrei-me de como ele havia mudado naquela época, e um dia permaneci imóvel, de pé numa esquina, insultando-o entre os dentes, compreendendo que seu rosto deixara de ser irônico e agora me enfrentava com seriedade e intenso calculo, como quem encara um perigo ou uma tarefa complexa, como quem tenta pesar o obstáculo e medi-lo com as próprias forças. Mas eu já não lhe dava importância e cheguei mesmo a pensar que em seu rosto imóvel e fixo nascia a compreensão do que era fundamental em mim, de um velho passado de limpeza que a adorada necessidade de casar-me com Inês sacava do fundo de anos e de episódios para aproximar-me dele.

Depois vi que estava esperando a noite; mas só vi isso quando, naquela noite, Bob chegou e veio sentar-se a mesa onde eu estava sozinho e dispensou o garçom com um sinal. Esperei um momento, observando-o, era tão parecido com ela quando movia as sobrancelhas; e a ponta do nariz, como em Inês, achatava-se um pouco quando falava. “Você não vai se casar com Inês”, disse depois. Olhei-o, sorri, afastei o olhar. "Não, não vai se casar com ela porque uma coisa dessas pode ser evitada se há alguém realmente disposto a fazer isso.” Voltei a sorrir. “Há alguns anos”, disse-lhe, “isso me deixaria com muita vontade de me casar com Inês. Agora tanto faz. Mas posso ouvi-lo; se quiser me explicar...” Endireitou a cabeça e continuou a me olhar em silêncio; talvez tivesse as frases prontas e esperasse que eu completasse a minha para dize-las. “Se me quiser ex­plicar por que não quer que eu me case com ela”, perguntei lentamente e recostei-me na parede. Vi em seguida que eu nunca suspeitara quanto e com quanta resolução ele me odiava; seu rosto estava pálido, com um sorriso preso e apertado com lábios e dentes. “Seria preciso dividir em capítulos”, disse, "e uma noite não seria suficiente.”

“Mas pode-se dizer em duas ou três palavras. Você não vai se casar com ela porque você e velho e ela e jovem. Não sei se tem trinta ou quarenta anos, não importa. Mas você é um homem feito, quer dizer, desfeito, como todos os homens de sua idade, quando não são extraordinários.” Chupou o cigarro apaga- do, olhou para a rua e voltou a olhar-me; minha cabeça estava apoiada na pare­de e continuava esperando. "Claro que você tem motivos para pensar que e extraordinário. Pensar que salvou muitas coisas do naufrágio. Mas não e verdade.” Comecei a fumar, de perfil para ele; aborrecia-me, mas não acreditava nele; provocava-me um ódio morno, mas eu tinha certeza de que nada me faria duvidar de mim mesmo depois de ter conhecido a necessidade de casar-me com Inês. Não; estávamos na mesma mesa e eu era tão limpo e tão jovem quanto ele. “Você pode estar enganado”, disse-lhe. “Se quiser citar algo do que esta des­feito em mim...” "Não, não”, falou rapidamente, “não sou tão criança. Não entro nesse jogo. Você é egoísta; e sensual de um modo sujo. Esta amarrado a coi­sas miseráveis, e são as coisas que o arrastam. Não vai a lugar nenhum, não quer isso realmente. E isso, mais nada; você é velho e ela é jovem. Não devo nem pen­sar nela diante de você. E você pretende...” Também agora eu não podia partir- lhe a cara, então resolvi prescindir dele, fui ate a jukebox, marquei qualquer coi­sa e pus uma moeda. Voltei devagar ao assento e fiquei ouvindo. A música não era muito forte; alguém cantava docemente no interior de grandes pausas. A meu lado, Bob estava dizendo que nem mesmo ele, alguém como ele, era digno de olhar Inês nos olhos. Pobre menino, pensei, admirado. Ficou dizendo que naquilo que ele chamava de velhice a coisa mais repugnante, o que determinava a decomposição ou o que talvez fosse símbolo de decomposição era pensar por conceitos, englobar as mulheres na palavra mulher, pressiona-las sem cuidado para que pudessem moldar-se ao conceito formado por uma pobre experiência. Mas — dizia ainda — a palavra experiência tampouco era exata. Já não havia experiências, apenas costumes e repetições, nomes murchos para ir pondo nas coisas e, um pouco, para cria-las. Ficou dizendo mais ou menos isso. Eu pensava mansamente se ele cairia morto ou se daria um jeito de matar-me, ali mes­mo e no ato, se eu lhe contasse as imagens que ele me suscitava ao dizer que nem mesmo ele merecia tocar Inês com a ponta de um dedo, o pobre menino, ou beijar a barra de seus vestidos, o rastro de seus passos ou coisas do género. Apôs uma pausa — a música terminara e o aparelho apagou as luzes aumentando o silêncio —, Bob disse “só isso”, e saiu com o andar de sempre, seguro, nem rápido nem lento.

Se naquela noite o rosto de Inês se revelou nas feições de Bob, se em algum momento a fraternal semelhança aproveitou a armadilha de um gesto para dar-me Inês em vez de Bob, foi aquela, então, a última vez que vi a garota. E verdade que duas noites depois do encontro habitual estive com ela novamente, e ao meio-dia, em novo encontro imposto por meu desespero, inútil, sabendo de antemão que todo recurso de palavra e presença seria inútil, que todas as minhas torturantes suplicas morreriam de maneira espantosa, como se nunca tivessem existido, dissolvidas no enorme ar azul da praga, sob a folhagem de um verde aprazível nos meados da boa estação.

As pequenas e rápidas partes do rosto de Inês que Bob me mostrara naque­la noite, ainda que dirigidas contra mim, ligadas a agressão, participavam do entusiasmo e da inocência da garota. Mas como falar com Inês, como toca-la, co­mo convence-la através da repentina mulher apática dos dois últimos encontros? Como reconhece-la ou, ao menos, evoca-la olhando a mulher de longo corpo rígido na poltrona de sua casa e no banco da praça, com a mesma rigidez resoluta mantida em dois horários diferentes e nas duas paragens? A mulher de pescoço tenso, os olhos perdidos na distância, a boca morta, as mãos plantadas no regaço. Eu a olhava e era “não”, sabia que era “não” todo o ar que a esteve rodeando.

Nunca soube qual foi a história que Bob escolheu para fazer aquilo; em todo caso, tenho certeza de que não mentiu, de que então nada — nem Inês — podia faze-lo mentir. Não vi mais Inês, nem sua forma vazia e enrijecida; soube que se casou e que não mora mais em Buenos Aires. Na época, em meio ao ódio e ao sofrimento eu gostava de imaginar Bob imaginando meus feitos e escolhendo a coisa exata ou o conjunto de coisas que foi capaz de matar-me em Inês e mata-la para mim.

Agora faz mais ou menos um ano que vejo Bob quase todos os dias, no mesmo café, cercado pelas mesmas pessoas. Quando nos apresentaram — hoje se chama Roberto —, compreendi que o passado não tem tempo e que o ontem se junta ali com a data de dez anos atrás. Perduravam em seu rosto gastos vestígios de Inês, e um movimento da boca de Bob bastou para que eu visse outra vez o alongado corpo da garota, seus passos calmos e desenvoltos, e para que os próprios inalterados olhos azuis voltassem a fitar-me sob um frouxo penteado cruzado e preso por uma fita vermelha. Ausente e perdida para sempre, po­dia conservar-se viva e intacta, definitivamente inconfundível, idêntica ao que lhe era essencial. Mas era trabalhoso esmiuçar o rosto, as palavras e os gestos de Roberto para encontrar Bob e poder odiá-lo. Na tarde do primeiro encontro esperei durante horas que ficasse sozinho ou saísse para falar com ele e esmurra-lo. Quieto e silencioso, espiando, as vezes, seu rosto ou evocando Inês nas janelas brilhantes do café, compus ardilosamente as frases de insulto e encontrei o tom paciente em que iria dize-las, escolhi o local de seu corpo onde dar o pri­meiro golpe. Mas ele foi embora ao anoitecer na companhia dos três amigos, e resolvi esperar, como ele esperara anos atrás, a noite propícia em que estivesse sozinho.

Quando voltei a vê-lo, quando iniciamos esta segunda amizade que agora espero que nunca termine, deixei de pensar em toda forma de ataque. Ficou decidido que nunca lhe falaria de Inês nem do passado e que, em silêncio, eu manteria tudo aquilo vivo dentro de mim. E só o que faço, quase todas as tardes, diante de Roberto e dos rostos familiares do café. Meu ódio se conservara aceso e novo enquanto eu puder continuar vendo e ouvindo Roberto; ninguém sabe de minha vingança, mas eu a vivo, gozosa e enfurecida, dia apos dia. Falo com ele, sorrio, fumo, tomo café. Todo o tempo pensando em Bob, em sua pureza, sua fé, na audácia de seus sonhos passados. Pensando no Bob que amava a música, no Bob que planejava enobrecer a vida dos homens construindo uma cidade de ofuscante beleza para cinco milhões de habitantes, ao longo da costa do rio; o Bob que não conseguia mentir nunca; o Bob que proclamava a luta de jovens contra velhos; o Bob dono do futuro e do mundo. Pensava, minucioso e plácido, em tudo isso diante do homem de dedos sujos de tabaco chamado Roberto, que leva uma vida grotesca, trabalhando em algum escritório hediondo, casado com uma mulher a quem chama de “minha senhora”; o homem que passa estes longos domingos afundado na poltrona do café, espiando jornais e apostando em corridas por telefone.

Ninguém jamais amou uma mulher com a força com que amo sua ruindade, sua maneira definitiva de estar afundado na vida suja dos homens. Ninguém ficou arrebatado de amor como eu diante de seus fugazes sobressaltos, dos projetos sem convicção que um destruído e distante Bob lhe dita algumas vezes e que só servem para que meça com precisão até onde está emporcalhado para sempre.

Não sei se algum dia, no passado, dei as boas-vindas a Inês com tanta alegria e amor como hoje dou diariamente as boas-vindas a Bob no tenebroso e fedorento mundo dos adultos. É ainda um recém-chegado e de vez em quando sofre suas crises de nostalgia. Eu o vi choroso e bêbado, insultando-se e jurando o iminente regresso aos dias de Bob. Posso garantir que então meu coração transborda de amor e se torna sensível e carinhoso como o de uma mãe. No fundo sei que ele nunca ira embora porque não tem para onde ir; mas me torno delicado e paciente e tento consola-lo. Como esse punhado de terra natal, ou essas fotografias de ruas e monumentos, ou as canções que gostam de trazer consigo os imigrantes, vou construindo para ele pianos, crenças e manhãs diferentes que tem luz e o sabor dos pais de juventude de onde ele chegou há algum tempo. E ele aceita; protesta, sempre, para que eu redobre minhas promessas, depois acaba dizendo que sim, com um sorriso crispado e acreditando que algum dia ira regressar ao mundo das horas de Bob e fica em paz no meio de seus trinta anos, movendo-se sem desgosto nem tropeço entre os cadáveres pavorosos das anti­gas ambições, das formas repulsivas de sonhos que se foram gastando sob a pressão distraída e constante de tantos milhares de pés inevitáveis.

Juan Carlos Onetti

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