«Bem-Vindo Bob»
Caricatura do Escritor Juan Carlos Onetti
826- «BEM-VINDO BOB»
É certo que a cada dia estará mais velho, mais distante do
tempo em que se chamava Bob, dos cabelos loiros caindo na têmpora, do sorriso e
dos olhos luzidios de quando entrava silencioso na sala, murmurando um
cumprimento ou movendo um pouco a mão perto da orelha, e ia sentar-se sob a
lâmpada, perto do piano, com um livro ou simplesmente quieto e a parte,
abstraído, olhando-nos durante uma hora sem nenhuma expressão no rosto, movendo
os dedos de vez em quando para segurar o cigarro e sacudir as cinzas da lapela
de seus ternos claros.
Igualmente distante — agora que se chama Roberto e se
embriaga com qualquer coisa, protegendo a boca com a mão suja quando tosse — do
Bob que tomava cerveja, apenas dois copos na mais longa das noites, com uma
pilha de moedas de dez sobre sua mesa da cantina do clube, para gastar na
jukebox. Quase sempre sozinho, ouvindo jazz, o rosto sonolento, contente e
pálido, movendo apenas a cabeça para cumprimentar-me quando eu passava,
seguindo-me com os olhos pelo tempo que eu ali permanecesse, pelo tempo que me
fosse possível suportar seu olhar azul incansavelmente fixo em mim, mantendo
sem esforço o desprezo intenso e a ironia mais suave. Mas também com algum
outro rapaz, aos sábados, alguém tão raivosamente jovem quanto ele, com quem
conversava sobre solos, trompetes e coros e sobre a cidade infinita que Bob
construiria na costa quando fosse arquiteto. Ao me ver passar ele parava para
fazer-me o breve cumprimento sem tirar os olhos de meu rosto, derramando
palavras apagadas e sorrisos por um canto da boca para o companheiro que, por
fim, também me olhava, duplicando em silêncio o desprezo e a ironia.
Às vezes eu me sentia forte e tentava mira-lo: apoiava o
rosto na mão e fumava sobre meu copo olhando-o sem pestanejar, sem descuidar de
meu rosto, que devia manter-se frio, um pouco melancólico. Naquela época, Bob
era muito parecido com Inês; podia ver algo dela em seu rosto através do salão
do clube, e talvez numa dessas noites eu o tenha olhado como olhava para ela.
Mas quase sempre preferia esquecer os olhos de Bob e me sentava de costas para
ele e ficava observando as bocas dos que falavam em minha mesa, as vezes calado
e triste para que ele soubesse que havia em mim algo mais do que aquilo que
imaginara, algo próximo dele; as vezes me ajudava com uns copos e pensava
"meu caro Bob, vá contar a sua irmãzinha”, enquanto acariciava as mãos das
garotas que estavam sentadas a mesa comigo ou puxava um assunto qualquer, para
que elas rissem e Bob ouvisse.
Mas, não importa o que eu fizesse, nem a atitude nem o olhar
de Bob mostravam, naquela época, qualquer alteração. Só recordo isso como prova
de que ele registrava minhas comédias na cantina. Uma noite, em sua casa, eu
estava esperando Inês na sala, junto do piano, quando ele entrou. Usava um impermeável
fechado até o pescoço, as mãos nos bolsos. Cumprimentou-me com um meneio de
cabeça, olhou em torno e depois avançou pelo aposento como se, com o breve
gesto, me tivesse eliminado: vi-o mover-se, girando em redor da mesa, sobre o
tapete, andando sobre ele com seus sapatos amarelos de borracha. Tocou uma flor
com o dedo, sentou-se na beira da mesa e pôs-se a fumar olhando para a
floreira, o perfil sereno voltado para mim, um pouco inclinado, frouxo e
pensativo. Imprudentemente — eu estava de pé, recostado no piano —, bati com a
mão esquerda numa tecla grave e então fui obrigado a repetir o som a cada três
segundos, olhando para ele.
Por ele eu só sentia ódio e um vergonhoso respeito, e
continuei afundando a tecla, cravando-a com covarde ferocidade no silencio da
casa, ate que repentinamente vi-me de fora, observando a cena como se estivesse
no alto da escada ou na porta, vendo e sentindo Bob, silencioso e ausente
junto ao fio de fumaça de seu cigarro que subia tremendo; sentindo-me, alto e
rígido, meio patético, meio ridículo ali na penumbra, batendo a cada
exatos três segundos na tecla grave com o dedo indicador. Pensei, então, que
não estava fazendo o piano soar por uma bravata incompreensível, mas que o
estava chamando; que a nota profunda que meu dedo fazia renascer
obstinadamente a beira de cada ultima vibração era, por fim encontrada, a única
palavra mendicante com que poderia pedir tolerância e compreensão a sua
juventude implacável. Ele continuou imóvel até que Inês bateu a porta do quarto
antes de descer para reunir-se comigo. Então Bob empertigou-se e veio
caminhando com preguiça até o outro extremo do piano, apoiou um cotovelo,
olhou-me por um momento e depois disse com um belo sorriso: "Esta noite é
uma noite de cama ou de uísque? Ímpeto de salvação ou salto no abismo?”.
Eu não podia responder nada, não podia arrebentar sua cara
com um soco; parei de tocar e fui retirando a mão do piano lentamente. Inês
estava no meio da escada quando ele me disse, enquanto se afastava: “Bem, pode
ser que você improvise”.
O duelo durou três ou quatro meses, e eu não podia deixar de
ir ao clube durante as noites — lembro-me, a propósito, que havia campeonato de
tênis naquela época —, pois quando eu ficava algum tempo sem aparecer por ali
Bob cumprimentava meu regresso aumentando o desdém e a ironia em seus olhos e
se acomodava no assento com um esgar feliz.
Quando chegou o momento em que eu não poderia desejar outra
solução senão casar-me com Inês quanto antes, Bob e sua tática mudaram. Não sei
como soube de minha necessidade de casar-me com sua irmã e de como eu abraçara
aquela necessidade com todas as forças que me restavam. Meu amor por aquela
necessidade abolira o passado e toda ligação com o presente. Não reparava,
então, em Bob; mas pouco tempo depois lembrei-me de como ele havia mudado
naquela época, e um dia permaneci imóvel, de pé numa esquina, insultando-o
entre os dentes, compreendendo que seu rosto deixara de ser irônico e agora me
enfrentava com seriedade e intenso calculo, como quem encara um perigo ou uma
tarefa complexa, como quem tenta pesar o obstáculo e medi-lo com as próprias
forças. Mas eu já não lhe dava importância e cheguei mesmo a pensar que em seu
rosto imóvel e fixo nascia a compreensão do que era fundamental em mim, de um
velho passado de limpeza que a adorada necessidade de casar-me com Inês sacava
do fundo de anos e de episódios para aproximar-me dele.
Depois vi que estava esperando a noite; mas só vi isso
quando, naquela noite, Bob chegou e veio sentar-se a mesa onde eu estava
sozinho e dispensou o garçom com um sinal. Esperei um momento, observando-o,
era tão parecido com ela quando movia as sobrancelhas; e a ponta do nariz, como
em Inês, achatava-se um pouco quando falava. “Você não vai se casar com Inês”,
disse depois. Olhei-o, sorri, afastei o olhar. "Não, não vai se casar com
ela porque uma coisa dessas pode ser evitada se há alguém realmente disposto a
fazer isso.” Voltei a sorrir. “Há alguns anos”, disse-lhe, “isso me deixaria
com muita vontade de me casar com Inês. Agora tanto faz. Mas posso ouvi-lo; se
quiser me explicar...” Endireitou a cabeça e continuou a me olhar em silêncio;
talvez tivesse as frases prontas e esperasse que eu completasse a minha para
dize-las. “Se me quiser explicar por que não quer que eu me case com ela”,
perguntei lentamente e recostei-me na parede. Vi em seguida que eu nunca
suspeitara quanto e com quanta resolução ele me odiava; seu rosto estava
pálido, com um sorriso preso e apertado com lábios e dentes. “Seria preciso
dividir em capítulos”, disse, "e uma noite não seria suficiente.”
“Mas pode-se dizer em duas ou três palavras. Você não vai se
casar com ela porque você e velho e ela e jovem. Não sei se tem trinta ou
quarenta anos, não importa. Mas você é um homem feito, quer dizer, desfeito,
como todos os homens de sua idade, quando não são extraordinários.” Chupou o
cigarro apaga- do, olhou para a rua e voltou a olhar-me; minha cabeça estava
apoiada na parede e continuava esperando. "Claro que você tem motivos
para pensar que e extraordinário. Pensar que salvou muitas coisas do naufrágio.
Mas não e verdade.” Comecei a fumar, de perfil para ele; aborrecia-me, mas não
acreditava nele; provocava-me um ódio morno, mas eu tinha certeza de que nada
me faria duvidar de mim mesmo depois de ter conhecido a necessidade de casar-me
com Inês. Não; estávamos na mesma mesa e eu era tão limpo e tão jovem quanto
ele. “Você pode estar enganado”, disse-lhe. “Se quiser citar algo do que esta
desfeito em mim...” "Não, não”, falou rapidamente, “não sou tão criança.
Não entro nesse jogo. Você é egoísta; e sensual de um modo sujo. Esta amarrado
a coisas miseráveis, e são as coisas que o arrastam. Não vai a lugar nenhum,
não quer isso realmente. E isso, mais nada; você é velho e ela é jovem. Não
devo nem pensar nela diante de você. E você pretende...” Também agora eu não
podia partir- lhe a cara, então resolvi prescindir dele, fui ate a jukebox,
marquei qualquer coisa e pus uma moeda. Voltei devagar ao assento e fiquei
ouvindo. A música não era muito forte; alguém cantava docemente no interior de
grandes pausas. A meu lado, Bob estava dizendo que nem mesmo ele, alguém
como ele, era digno de olhar Inês nos olhos. Pobre menino, pensei, admirado.
Ficou dizendo que naquilo que ele chamava de velhice a coisa mais repugnante, o
que determinava a decomposição ou o que talvez fosse símbolo de decomposição
era pensar por conceitos, englobar as mulheres na palavra mulher, pressiona-las
sem cuidado para que pudessem moldar-se ao conceito formado por uma pobre
experiência. Mas — dizia ainda — a palavra experiência tampouco era exata. Já
não havia experiências, apenas costumes e repetições, nomes murchos para ir
pondo nas coisas e, um pouco, para cria-las. Ficou dizendo mais ou menos isso.
Eu pensava mansamente se ele cairia morto ou se daria um jeito de matar-me, ali
mesmo e no ato, se eu lhe contasse as imagens que ele me suscitava ao dizer
que nem mesmo ele merecia tocar Inês com a ponta de um dedo, o pobre menino, ou
beijar a barra de seus vestidos, o rastro de seus passos ou coisas do género.
Apôs uma pausa — a música terminara e o aparelho apagou as luzes aumentando o
silêncio —, Bob disse “só isso”, e saiu com o andar de sempre, seguro, nem
rápido nem lento.
Se naquela noite o rosto de Inês se revelou nas feições de
Bob, se em algum momento a fraternal semelhança aproveitou a armadilha de um
gesto para dar-me Inês em vez de Bob, foi aquela, então, a última vez que vi a
garota. E verdade que duas noites depois do encontro habitual estive com ela
novamente, e ao meio-dia, em novo encontro imposto por meu desespero, inútil,
sabendo de antemão que todo recurso de palavra e presença seria inútil, que
todas as minhas torturantes suplicas morreriam de maneira espantosa, como se
nunca tivessem existido, dissolvidas no enorme ar azul da praga, sob a folhagem
de um verde aprazível nos meados da boa estação.
As pequenas e rápidas partes do rosto de Inês que Bob me
mostrara naquela noite, ainda que dirigidas contra mim, ligadas a agressão,
participavam do entusiasmo e da inocência da garota. Mas como falar com Inês,
como toca-la, como convence-la através da repentina mulher apática dos dois
últimos encontros? Como reconhece-la ou, ao menos, evoca-la olhando a mulher de
longo corpo rígido na poltrona de sua casa e no banco da praça, com a mesma
rigidez resoluta mantida em dois horários diferentes e nas duas paragens? A
mulher de pescoço tenso, os olhos perdidos na distância, a boca morta, as mãos
plantadas no regaço. Eu a olhava e era “não”, sabia que era “não” todo o ar que
a esteve rodeando.
Nunca soube qual foi a história que Bob escolheu para fazer
aquilo; em todo caso, tenho certeza de que não mentiu, de que então nada — nem
Inês — podia faze-lo mentir. Não vi mais Inês, nem sua forma vazia e
enrijecida; soube que se casou e que não mora mais em Buenos Aires. Na época,
em meio ao ódio e ao sofrimento eu gostava de imaginar Bob imaginando meus
feitos e escolhendo a coisa exata ou o conjunto de coisas que foi capaz de
matar-me em Inês e mata-la para mim.
Agora faz mais ou menos um ano que vejo Bob quase todos os
dias, no mesmo café, cercado pelas mesmas pessoas. Quando nos apresentaram —
hoje se chama Roberto —, compreendi que o passado não tem tempo e que o ontem
se junta ali com a data de dez anos atrás. Perduravam em seu rosto gastos
vestígios de Inês, e um movimento da boca de Bob bastou para que eu visse outra
vez o alongado corpo da garota, seus passos calmos e desenvoltos, e para que os
próprios inalterados olhos azuis voltassem a fitar-me sob um frouxo penteado
cruzado e preso por uma fita vermelha. Ausente e perdida para sempre, podia
conservar-se viva e intacta, definitivamente inconfundível, idêntica ao que lhe
era essencial. Mas era trabalhoso esmiuçar o rosto, as palavras e os gestos de
Roberto para encontrar Bob e poder odiá-lo. Na tarde do primeiro encontro
esperei durante horas que ficasse sozinho ou saísse para falar com ele e
esmurra-lo. Quieto e silencioso, espiando, as vezes, seu rosto ou evocando Inês
nas janelas brilhantes do café, compus ardilosamente as frases de insulto e
encontrei o tom paciente em que iria dize-las, escolhi o local de seu corpo
onde dar o primeiro golpe. Mas ele foi embora ao anoitecer na companhia dos
três amigos, e resolvi esperar, como ele esperara anos atrás, a noite propícia
em que estivesse sozinho.
Quando voltei a vê-lo, quando iniciamos esta segunda amizade
que agora espero que nunca termine, deixei de pensar em toda forma de ataque.
Ficou decidido que nunca lhe falaria de Inês nem do passado e que, em silêncio,
eu manteria tudo aquilo vivo dentro de mim. E só o que faço, quase todas as
tardes, diante de Roberto e dos rostos familiares do café. Meu ódio se
conservara aceso e novo enquanto eu puder continuar vendo e ouvindo Roberto;
ninguém sabe de minha vingança, mas eu a vivo, gozosa e enfurecida, dia apos
dia. Falo com ele, sorrio, fumo, tomo café. Todo o tempo pensando em Bob, em
sua pureza, sua fé, na audácia de seus sonhos passados. Pensando no Bob que
amava a música, no Bob que planejava enobrecer a vida dos homens construindo
uma cidade de ofuscante beleza para cinco milhões de habitantes, ao longo da
costa do rio; o Bob que não conseguia mentir nunca; o Bob que proclamava a luta
de jovens contra velhos; o Bob dono do futuro e do mundo. Pensava, minucioso e
plácido, em tudo isso diante do homem de dedos sujos de tabaco chamado Roberto,
que leva uma vida grotesca, trabalhando em algum escritório hediondo, casado
com uma mulher a quem chama de “minha senhora”; o homem que passa estes longos
domingos afundado na poltrona do café, espiando jornais e apostando em corridas
por telefone.
Ninguém jamais amou uma mulher com a força com que amo sua
ruindade, sua maneira definitiva de estar afundado na vida suja dos homens.
Ninguém ficou arrebatado de amor como eu diante de seus fugazes sobressaltos,
dos projetos sem convicção que um destruído e distante Bob lhe dita algumas
vezes e que só servem para que meça com precisão até onde está emporcalhado
para sempre.
Não sei se algum dia, no passado, dei as boas-vindas a Inês
com tanta alegria e amor como hoje dou diariamente as boas-vindas a Bob no tenebroso
e fedorento mundo dos adultos. É ainda um recém-chegado e de vez em quando
sofre suas crises de nostalgia. Eu o vi choroso e bêbado, insultando-se e
jurando o iminente regresso aos dias de Bob. Posso garantir que então meu
coração transborda de amor e se torna sensível e carinhoso como o de uma mãe.
No fundo sei que ele nunca ira embora porque não tem para onde ir; mas me torno
delicado e paciente e tento consola-lo. Como esse punhado de terra natal, ou
essas fotografias de ruas e monumentos, ou as canções que gostam de trazer
consigo os imigrantes, vou construindo para ele pianos, crenças e manhãs
diferentes que tem luz e o sabor dos pais de juventude de onde ele chegou há
algum tempo. E ele aceita; protesta, sempre, para que eu redobre minhas promessas,
depois acaba dizendo que sim, com um sorriso crispado e acreditando que algum
dia ira regressar ao mundo das horas de Bob e fica em paz no meio de seus
trinta anos, movendo-se sem desgosto nem tropeço entre os cadáveres pavorosos
das antigas ambições, das formas repulsivas de sonhos que se foram gastando
sob a pressão distraída e constante de tantos milhares de pés inevitáveis.
Juan Carlos Onetti
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