«Breviário da Decomposição»
Decomposição (fig. II)/ Renato Pereira
835- «BREVIÁRIO DA DECOMPOSIÇÃO»
[Excerto]
É inútil construir tal modelo de franqueza: a vida só é
tolerável pelo grau de mistificação que se põe nela. Tal modelo seria a ruína
da sociedade, pois a “doçura” de viver em comum reside na impossibilidade de
dar livre curso ao infinito de nossos pensamentos ocultos.
É porque somos todos impostores que nos suportamos uns aos
outros. Quem não aceitasse mentir veria a terra fugir sob seus pés: estamos
biologicamente obrigados ao falso. Não há herói moral que não seja ou pueril,
ou ineficaz, ou inautêntico; pois a verdadeira autenticidade é o aviltamento na
fraude, no decoro da adulação pública e da difamação secreta.
Se nossos semelhantes pudessem constatar nossas opiniões
sobre eles, o amor, a amizade, o devotamento seriam riscados para sempre dos
dicionários; e se tivéssemos a coragem de olhar cara a cara as dúvidas que
concebemos timidamente sobre nós mesmos, nenhum de nós proferiria um “eu” sem
envergonhar-se.
A dissimulação arrasta tudo o que vive, desde o troglodita
até o cético. Como só o respeito das aparências nos separa dos cadáveres,
precisar o fundo das coisas e dos seres é perecer; conformemo-nos a um nada
mais agradável: nossa constituição só tolera uma certa dose de verdade…
Emil Cioran
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