«Na Muralha da Cidade»
836- «NA MURALHA DA CIDADE»
A profissão de Lalun é a mais antiga do mundo. Lilith era a
sua própria bisavó, e isto antes dos tempos de Eva, como toda a gente sabe. No
Ocidente, as pessoas falam desagradavelmente da profissão de Lalun; escrevem
ensaios sobre ela e distribuem-nos entre os jovens para que a Moralidade seja
mantida. No Oriente, onde tal profissão é hereditária e passa de mãe para
filha, ninguém escreve ensaios ou repara, o que prova a incapacidade do Oriente
para tratar dos seus próprios assuntos.
O verdadeiro marido de Lalun – pois, no Oriente, até mesmo
as mulheres com a profissão de Lalun têm de ser casadas – era uma grande árvore
de jujuba. A mãe, que tinha casado com uma figueira, gastou dez mil rupias com
o casamento de Lalun, que foi abençoado por quarenta e sete sacerdotes do credo
da mãe, e distribuiu cinco mil rupias em esmola aos pobres. Era esse o costume
do país. As vantagens de ter uma árvore de jujuba como marido são óbvias. Tem
um ar imponente e é impossível
ofendê-la.
O marido de Lalun erguia-se na planície fora das muralhas da
cidade e a casa dela ficava sobre a muralha Leste diante do rio. Se alguém
caísse do largo parapeito da janela, caía dez metros até à vala. Mas se uma
pessoa se deixasse ficar onde devia e contemplasse as redondezas, via o gado a
ser levado para beber água, os estudantes do colégio do governo a jogar
críquete, as árvores e a erva alta nas margens do rio, grandes bancos de areia
que orlavam o rio, os túmulos vermelhos dos imperadores mortos para lá do rio
e, muito ao longe, através da neblina azul do calor, a neve dos Himalaias a
cintilar.
Wali Dad costumava deitar-se no parapeito da janela durante
horas seguidas a contemplar esta vista. Era um jovem maometano que sofria
gravemente da educação administrada pelos ingleses e dava-se conta disso. O pai
tinha-o enviado para uma escola missionária a fim de adquirir sabedoria e Wali
Dad absorvera mais do que o pai ou os missionários tinham tencionado dar-lhe.
Quando o pai morreu, Wali Dad ficou por conta própria e passou dois anos a
estudar os diferentes credos deste mundo e a ler livros sem utilidade nenhuma
para ninguém.
Após uma malograda tentativa para ser admitido na Igreja
Católica Romana e Presbiteriana ao mesmo tempo (os missionários aperceberam-se
disso e fartaram-se de lhe chamar nomes sem compreender o seu problema), Wali
Dad avistou Lalun na muralha da cidade e tornou-se no mais constante dos seus
poucos admiradores. Tinha uma cabeça que faria os artistas ingleses delirar e
pintá-la no meio de extravagantes decorações – um rosto que as romancistas
usariam com deleite ao longo de novecentas páginas. Na verdade, ele era apenas um
jovem maometano de boa aparência com sobrancelhas bem desenhadas, narinas
pequenas, mãos e pés pequenos e uma expressão cansada nos olhos. Pelo facto de
ter vinte e dois anos, deixara crescer uma barba negra bem cortada que ele
afagava com orgulho e mantinha delicadamente perfumada. A sua vida parecia
dividir-se entre pedir-me livros emprestados e fazer a corte a Lalun no
parapeito da janela. Compunha canções em homenagem dela e algumas dessas
canções ainda hoje são cantadas na cidade, da rua dos Talhantes de Carneiro ao
pátio dos Latoeiros.
Uma das canções, a mais bonita de todas, conta que a beleza
de Lalun era tão grande que perturbou o coração do governo britânico e fez com
que os seus funcionários perdessem a paz de espírito. É assim que essa canção é
cantada nas ruas, mas, se prestarmos atenção e nos apercebermos do seu
significado oculto, verificaremos que há nela três trocadilhos – “beleza”, “coração”
e “paz de espírito” – e, assim, a sua interpretação é a seguinte: “A subtileza
de Lalun perturbou a administração do governo que perdeu tal e tal
funcionário.”
Quando Wali Dad canta esta canção, os seus olhos brilham
como carvões em brasa e Lalun recosta-se nas almofadas e atira-lhe botões de
jasmim.
Rudyard Kipling
Rudyard Kipling
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