terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

OUTROS CONTOS

«Espírito Carnavalesco», por Moacyr Scliar.

«Espírito Carnavalesco»
Carnaval/ Cândido Portinari

987- «ESPÍRITO CARNAVALESCO»

Cansado, ele dormia a sono solto, quando foi bruscamente despertado pela esposa, que o sacudia violentamente.

– Que aconteceu? – resmungou ele, ainda de olhos fechados.

– Não posso dormir. – queixou-se ela.

– Não pode dormir? E por quê?

– Por causa do barulho – ela, irritada: - Será possível que você não ouça?

Ele prestou atenção. De fato, havia barulho. O barulho de uma escola de samba ensaiando para o carnaval: pandeiros, tamborins… Não escutara antes por causa do sono pesado. O que não era o caso da mulher. Ela exigia providências.

– Mas o que quer você que eu faça? perguntou e, agora, também irritado.

– Quero que você vá lá e mande eles pararem com esse barulho.

– De jeito nenhum – disse ele. – Não sou fiscal, não sou policial. Eu não vou lá.
Virou-se para o lado, com o propósito de conciliar de novo o sono. O que a mulher não permitiria: logo estava a sacudi-lo de novo.

Ele acendeu a luz, sentou na cama:

– Escute, mulher. É carnaval, esta gente sempre ensaia no carnaval, e não vão parar o ensaio porque você não consegue dormir. É melhor você colocar tampões nos ouvidos e esquecer esta história.

Ela começou a chorar.

– Você não me ama – dizia, entre soluços: – Se você me amasse, iria lá e acabaria com a farra.

Com um suspiro, ele levantou-se da cama, vestiu-se e saiu, sem uma palavra.
Ela ficou à espera, imaginando que em dez ou quinze minutos a batucada cessaria.
Mas não cessava. Pior: o marido não voltava. Passou-se meia hora, passou-se uma hora: nada. Nem sinal dele.

E aí ela ficou nervosa. Será que tinha acontecido alguma coisa ao pobre homem? Será que – por causa dela – ele tinha se metido numa briga? Teria sido assassinado? Mas neste caso, por que continuava a batucada? Ou seria aquela gente tão insensível que continuava a orgia carnavalesca mesmo depois de ter matado um homem? Não aguentando mais, ela vestiu-se e foi até o terreiro da escola de samba, ali perto.

Não, o marido não tinha sido agredido e muito menos assassinado. Continuava vivo, e bem vivo: no meio de uma roda, ele sambava, animadíssimo.

Ela deu meia-volta e foi para casa. Convencida de que o espírito carnavalesco é imbatível e fala mais alto do que qualquer coisa.

Moacyr Scliar

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