«Espírito Carnavalesco»
Carnaval/ Cândido Portinari
987- «ESPÍRITO CARNAVALESCO»
Cansado, ele dormia a sono solto, quando foi bruscamente
despertado pela esposa, que o sacudia violentamente.
– Que aconteceu? – resmungou ele, ainda de olhos fechados.
– Não posso dormir. – queixou-se ela.
– Não pode dormir? E por quê?
– Por causa do barulho – ela, irritada: - Será possível que
você não ouça?
Ele prestou atenção. De fato, havia barulho. O barulho de
uma escola de samba ensaiando para o carnaval: pandeiros, tamborins… Não
escutara antes por causa do sono pesado. O que não era o caso da mulher. Ela
exigia providências.
– Mas o que quer você que eu faça? perguntou e, agora,
também irritado.
– Quero que você vá lá e mande eles pararem com esse
barulho.
– De jeito nenhum – disse ele. – Não sou fiscal, não sou
policial. Eu não vou lá.
Virou-se para o lado, com o propósito de conciliar de novo o
sono. O que a mulher não permitiria: logo estava a sacudi-lo de novo.
Ele acendeu a luz, sentou na cama:
– Escute, mulher. É carnaval, esta gente sempre ensaia no
carnaval, e não vão parar o ensaio porque você não consegue dormir. É melhor
você colocar tampões nos ouvidos e esquecer esta história.
Ela começou a chorar.
– Você não me ama – dizia, entre soluços: – Se você me
amasse, iria lá e acabaria com a farra.
Com um suspiro, ele levantou-se da cama, vestiu-se e saiu,
sem uma palavra.
Ela ficou à espera, imaginando que em dez ou quinze minutos
a batucada cessaria.
Mas não cessava. Pior: o marido não voltava. Passou-se meia
hora, passou-se uma hora: nada. Nem sinal dele.
E aí ela ficou nervosa. Será que tinha acontecido alguma
coisa ao pobre homem? Será que – por causa dela – ele tinha se metido numa
briga? Teria sido assassinado? Mas neste caso, por que continuava a batucada?
Ou seria aquela gente tão insensível que continuava a orgia carnavalesca mesmo
depois de ter matado um homem? Não aguentando mais, ela vestiu-se e foi até o
terreiro da escola de samba, ali perto.
Não, o marido não tinha sido agredido e muito menos
assassinado. Continuava vivo, e bem vivo: no meio de uma roda, ele sambava,
animadíssimo.
Ela deu meia-volta e foi para casa. Convencida de que o
espírito carnavalesco é imbatível e fala mais alto do que qualquer coisa.
Moacyr Scliar
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