terça-feira, 14 de maio de 2019

OUTROS CONTOS

«O Viajante Clandestino», por José Rodrigues Miguéis.

«O Viajante Clandestino»
Cartaz

1297- «O VIAJANTE CLANDESTINO»

Véspera de Natal: o molhe estava quase despovoado. Os tripulantes do cargueiro desembarcaram rapidamente, sumindo-se nos dédalos citadinos. Só o clandestino permaneceu horas esquecidas no porão, aguardando o momento de saltar para terra. “Tinha entrevisto na noite, ao chegar ali, os perfis dos barracões do porto, mais longe fábricas, prédios, o clarão mortiço da cidade. Estava na América, a dois passos do trabalho e do pão, a um salto do seu destino. E o coração batia-lhe de anseio.”

Repetia-se um quadro experimentado durante séculos por marinheiros portugueses na eterna demanda de novos rumos. Mas este marujo improvisado, de quem apenas ficamos a saber que se chama Tomé, não visa dilatar a fé ou o império – só pretende conseguir emprego na costa leste dos Estados Unidos da América. Nada tem, excepto a sua força de trabalho.

Tomé acaba por se escapulir do barco rumo à malha urbana. Mas esbarra com um agente da polícia, bem capaz de lhe cortar as asas ao sonho. Valeu-lhe o facto inesperado de ser noite de Natal: nesta quadra, até a autoridade mais empedernida afrouxa um pouco. “Merry Christmas”, atira-lhe o polícia, com bonomia, enquanto ele se afasta, fundindo-se na noite,“com a garganta apertada, a rir e a chorar”.

À hora a que milhões de americanos consoavam, no conforto burguês das suas habitações calafetadas, este português apátrida renascia como cidadão do Novo Mundo no frio nocturno das ruas inóspitas de Baltimore. Exilado e despojado, como o menino-deus nazareno: a eterna magia da noite de Natal.

José Rodrigues Miguéis

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