«O Viajante Clandestino»
Cartaz
1297- «O VIAJANTE CLANDESTINO»
Véspera de Natal: o molhe estava quase despovoado. Os
tripulantes do cargueiro desembarcaram rapidamente, sumindo-se nos dédalos
citadinos. Só o clandestino permaneceu horas esquecidas no porão, aguardando o
momento de saltar para terra. “Tinha entrevisto na noite, ao chegar ali,
os perfis dos barracões do porto, mais longe fábricas, prédios, o clarão
mortiço da cidade. Estava na América, a dois passos do trabalho e do pão, a um
salto do seu destino. E o coração batia-lhe de anseio.”
Repetia-se um quadro experimentado durante séculos por
marinheiros portugueses na eterna demanda de novos rumos. Mas este marujo
improvisado, de quem apenas ficamos a saber que se chama Tomé, não visa dilatar
a fé ou o império – só pretende conseguir emprego na costa leste dos Estados
Unidos da América. Nada tem, excepto a sua força de trabalho.
Tomé acaba por se escapulir do barco rumo à malha urbana.
Mas esbarra com um agente da polícia, bem capaz de lhe cortar as asas ao sonho.
Valeu-lhe o facto inesperado de ser noite de Natal: nesta quadra, até a
autoridade mais empedernida afrouxa um pouco. “Merry Christmas”, atira-lhe o
polícia, com bonomia, enquanto ele se afasta, fundindo-se na noite,“com a garganta
apertada, a rir e a chorar”.
À hora a que milhões de americanos consoavam, no conforto
burguês das suas habitações calafetadas, este português apátrida renascia como
cidadão do Novo Mundo no frio nocturno das ruas inóspitas de Baltimore. Exilado
e despojado, como o menino-deus nazareno: a eterna magia da noite de Natal.
José Rodrigues Miguéis
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