«Sua Excelência»
Conto de Lima Barreto
1296- «SUA EXCELÊNCIA»
O Ministro saiu do baile da Embaixada, embarcando logo no
carro. Desde duas horas estivera a sonhar com aquele momento. Ansiava estar só,
só com o seu pensamento, pesando bem as palavras que proferira, relembrando as
atitudes e os pasmos olhares dos circunstantes. Por isso entrara no cupê
depressa, sôfrego, sem mesmo reparar se, de fato, era o seu. Vinha cegamente,
tangido por sentimentos complexos: orgulho, força, valor, vaidade.
Todo ele era um poço de certeza. Estava certo do seu valor
intrínseco; estava certo das suas qualidades extraordinárias e excepcionais. A
respeitosa atitude de todos e a deferência universal que o cercava eram nada
mais, nada menos que o sinal da convicção geral de ser ele o resumo do país, a
encarnação dos seus anseios. Nele viviam os doridos queixumes dos humildes e os
espectaculosos desejos dos ricos. As obscuras determinações das coisas,
acertadamente, haviam-no erguido até ali, e mais alto levá-lo-iam, visto que
ele, ele só e unicamente, seria capaz de fazer o pais chegar aos destinos que
os antecedentes dele impunham…
E ele sorriu, quando essa frase lhe passou pelos olhos,
totalmente escrita em caracteres de imprensa, em um livro ou em um jornal
qualquer. Lembrou-se do seu discurso de ainda agora.
“Na vida das sociedades, como na dos indivíduos…”
Que maravilha Tinha algo de filosófico, de transcendente. E
o sucesso daquele trecho? Recordou-se dele por inteiro:
“Aristóteles, Bacon, Descartes, Spinosa e Spencer, como
Sólon, Justiniano, Portalis e Ihering, todos os filósofos, todos os juristas
afirmam que as leis devem se basear nos costumes…”
O olhar, muito brilhante, cheio de admiração – o olhar do
líder da oposição – foi o mais seguro penhor do efeito da frase…
E quando terminou! Oh!
“Senhor, o nosso tempo é de grandes reformas; estejamos com
ele: reformemos!”
A cerimónia mal conteve, nos circunstantes, o entusiasmo com
que esse final foi recebido.
O auditório delirou. As palmas estrugiram; e, dentro do
grande salão iluminado, pareceu-lhe que recebia as palmas da Terra toda.
O carro continuava a voar. As luzes da rua extensa apareciam
como um só traço de fogo; depois sumiram-se.
O veículo agora corria vertiginosamente dentro de uma névoa
fosforescente. Era em vão que seus augustos olhos se abriam desmedidamente; não
havia contornos, formas, onde eles pousassem.
Consultou o relógio. Estava parado? Não; mas marcava a mesma
hora e o mesmo minuto da saída da festa.
– Cocheiro, onde vamos?
Quis arriar as vidraças. Não pôde; queimavam.
Redobrou os esforços, conseguindo arriar as da frente.
Gritou ao cocheiro:
– Onde vamos? Miserável, onde me levas?
Apesar de ter o carro algumas vidraças arriadas, no seu
interior fazia um calor de forja. Quando lhe veio esta imagem, apalpou bem, no
peito, as grã-cruzes magníficas. Graças a Deus, ainda não se haviam derretido.
O leão da Birmânia, o dragão da China, o língam da Índia estavam ali, entre
todas as outras intactas.
– Cocheiro, onde me levas?
Não era o mesmo cocheiro, não era o seu. Aquele homem de
nariz adunco, queixo longo com uma barbicha, não era o seu fiel Manuel.
– Canalha, pára, pára, senão caro me pagarás!
O carro voava e o ministro continuava a vociferar:
– Miserável! Traidor! Pára! Pára!
Em uma dessas vezes voltou-se o cocheiro; mas a escuridão
que se ia, aos poucos, fazendo quase perfeita, só lhe permitiu ver os olhos do
guia da carruagem, a brilhar de um brilho brejeiro, metálico e cortante.
Pareceu-lhe que estava a rir-se.
O calor aumentava. Pelos cantos o carro chispava. Não
podendo suportar o calor, despiu-se. Tirou a agaloada casaca, depois o espadim,
o colete, as calças.
Sufocado, estonteado, parecia-lhe que continuava com vida,
mas que suas pernas e seus braços, seu tronco e sua cabeça dançavam, separados.
Desmaiou; e, ao recuperar os sentidos, viu-se vestido com
uma reles libré e uma grotesca cartola, cochilando à porta do palácio em que
estivera ainda há pouco e de onde saíra triunfalmente, não havia minutos.
Nas proximidades um cupê estacionava.
Quis verificar bem as coisas circundantes; mas não houve
tempo.
Pelas escadas de mármore, gravemente, solenemente, um homem
(pareceu-lhe isso) descia os degraus, envolvido no fardão que despira, tendo no
peito as mesmas magníficas grã-cruzes.
Logo que o personagem pisou na soleira, de um só ímpeto
aproximou-se e, abjectamente, como se até ali não tivesse feito outra coisa,
indagou:
– V. Exa. quer o carro?
Lima Barreto
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