«A Terceira Margem do Rio», por Guimarães Rosa.
«A Terceira Margem do Rio»
Conto de Guimarães Rosa
188- «A TERCEIRA MARGEM DO RIO»
Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido
assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas
pessoas, quando indaguei a informação. Do que eu mesmo me alembro, ele não
figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só
quieto. Nossa mãe era quem regia, e que ralhava no diário com a gente — minha
irmã, meu irmão e eu. Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si
uma canoa.
Era a sério. Encomendou a canoa especial, de pau de
vinhático, pequena, mal com a tabuinha da popa, como para caber justo o
remador. Mas teve de ser toda fabricada, escolhida forte e arqueada em rijo,
própria para dever durar na água por uns vinte ou trinta anos. Nossa mãe jurou
muito contra a idéia. Seria que, ele, que nessas artes não vadiava, se ia
propor agora para pescarias e caçadas? Nosso pai nada não dizia. Nossa casa, no
tempo, ainda era mais próxima do rio, obra de nem quarto de légua: o rio por aí
se estendendo grande, fundo, calado que sempre. Largo, de não se poder ver a
forma da outra beira. E esquecer não posso, do dia em que a canoa ficou pronta.
Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapéu e
decidiu um adeus para a gente. Nem falou outras palavras, não pegou matula e
trouxa, não fez a alguma recomendação. Nossa mãe, a gente achou que ela ia
esbravejar, mas persistiu somente alva de pálida, mascou o beiço e bramou: —
"Cê vai, ocê fique, você nunca volte!" Nosso pai suspendeu a
resposta. Espiou manso para mim, me acenando de vir também, por uns passos.
Temi a ira de nossa mãe, mas obedeci, de vez de jeito. O rumo daquilo me
animava, chega que um propósito perguntei: — "Pai, o senhor me leva junto,
nessa sua canoa?" Ele só retornou o olhar em mim, e me botou a bênção, com
gesto me mandando para trás. Fiz que vim, mas ainda virei, na grota do mato,
para saber. Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu
se indo — a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa.
Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só
executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio,
sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa
verdade deu para. estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia.
Os parentes, vizinhos e conhecidos nossos, se reuniram, tomaram juntamente
conselho.
Nossa mãe, vergonhosa, se portou com muita cordura; por
isso, todos pensaram de nosso pai a razão em que não queriam falar: doideira.
Só uns achavam o entanto de poder também ser pagamento de promessa; ou que,
nosso pai, quem sabe, por escrúpulo de estar com alguma feia doença, que seja,
a lepra, se desertava para outra sina de existir, perto e longe de sua família
dele. As vozes das notícias se dando pelas certas pessoas — passadores,
moradores das beiras, até do afastado da outra banda — descrevendo que nosso
pai nunca se surgia a tomar terra, em ponto nem canto, de dia nem de noite, da
forma como cursava no rio, solto solitariamente. Então, pois, nossa mãe e os
aparentados nossos, assentaram: que o mantimento que tivesse, ocultado na
canoa, se gastava; e, ele, ou desembarcava e viajava s'embora, para jamais, o
que ao menos se condizia mais correto, ou se arrependia, por uma vez, para
casa.
No que num engano. Eu mesmo cumpria de trazer para ele, cada
dia, um tanto de comida furtada: a idéia que senti, logo na primeira noite,
quando o pessoal nosso experimentou de acender fogueiras em beirada do rio,
enquanto que, no alumiado delas, se rezava e se chamava. Depois, no seguinte,
apareci, com rapadura, broa de pão, cacho de bananas. Enxerguei nosso pai, no
enfim de uma hora, tão custosa para sobrevir: só assim, ele no ao-longe,
sentado no fundo da canoa, suspendida no liso do rio. Me viu, não remou para
cá, não fez sinal. Mostrei o de comer, depositei num oco de pedra do barranco,
a salvo de bicho mexer e a seco de chuva e orvalho. Isso, que fiz, e refiz,
sempre, tempos a fora. Surpresa que mais tarde tive: que nossa mãe sabia desse
meu encargo, só se encobrindo de não saber; ela mesma deixava, facilitado,
sobra de coisas, para o meu conseguir. Nossa mãe muito não se demonstrava.
Mandou vir o tio nosso, irmão dela, para auxiliar na fazenda
e nos negócios. Mandou vir o mestre, para nós, os meninos. Incumbiu ao padre
que um dia se revestisse, em praia de margem, para esconjurar e clamar a nosso
pai o 'dever de desistir da tristonha teima. De outra, por arranjo dela, para
medo, vieram os dois soldados. Tudo o que não valeu de nada. Nosso pai passava
ao largo, avistado ou diluso, cruzando na canoa, sem deixar ninguém se chegar à
pega ou à fala. Mesmo quando foi, não faz muito, dos homens do jornal, que
trouxeram a lancha e tencionavam tirar retrato dele, não venceram: nosso pai se
desaparecia para a outra banda, aproava a canoa no brejão, de léguas, que há,
por entre juncos e mato, e só ele conhecesse, a palmos, a escuridão, daquele.
A gente teve de se acostumar com aquilo. Às penas, que, com
aquilo, a gente mesmo nunca se acostumou, em si, na verdade. Tiro por mim, que,
no que queria, e no que não queria, só com nosso pai me achava: assunto que
jogava para trás meus pensamentos. O severo que era, de não se entender, de
maneira nenhuma, como ele aguentava. De dia e de noite, com sol ou aguaceiros,
calor, sereno, e nas friagens terríveis de meio-do-ano, sem arrumo, só com o
chapéu velho na cabeça, por todas as semanas, e meses, e os anos — sem fazer
conta do se-ir do viver. Não pojava em nenhuma das duas beiras, nem nas ilhas e
croas do rio, não pisou mais em chão nem capim. Por certo, ao menos, que, para
dormir seu tanto, ele fizesse amarração da canoa, em alguma ponta-de-ilha, no
esconso. Mas não armava um foguinho em praia, nem dispunha de sua luz feita,
nunca mais riscou um fósforo. O que consumia de comer, era só um quase; mesmo
do que a gente depositava, no entre as raízes da gameleira, ou na lapinha de
pedra do barranco, ele recolhia pouco, nem o bastável. Não adoecia? E a
constante força dos braços, para ter tento na canoa, resistido, mesmo na
demasia das enchentes, no subimento, aí quando no lanço da correnteza enorme do
rio tudo rola o perigoso, aqueles corpos de bichos mortos e paus-de-árvore
descendo — de espanto de esbarro. E nunca falou mais palavra, com pessoa
alguma. Nós, também, não falávamos mais nele. Só se pensava. Não, de nosso pai
não se podia ter esquecimento; e, se, por um pouco, a gente fazia que esquecia,
era só para se despertar de novo, de repente, com a memória, no passo de outros
sobressaltos.
Minha irmã se casou; nossa mãe não quis festa. A gente
imaginava nele, quando se comia uma comida mais gostosa; assim como, no
gasalhado da noite, no desamparo dessas noites de muita chuva, fria, forte,
nosso pai só com a mão e uma cabaça para ir esvaziando a canoa da água do
temporal. Às vezes, algum conhecido nosso achava que eu ia ficando mais
parecido com nosso pai. Mas eu sabia que ele agora virara cabeludo, barbudo, de
unhas grandes, mal e magro, ficado preto de sol e dos pêlos, com o aspecto de bicho,
conforme quase nu, mesmo dispondo das peças de roupas que a gente de tempos em
tempos fornecia.
Nem queria saber de nós; não tinha afeto? Mas, por afeto
mesmo, de respeito, sempre que às vezes me louvavam, por causa de algum meu bom
procedimento, eu falava: — "Foi pai que um dia me ensinou a fazer
assim..."; o que não era o certo, exato; mas, que era mentira por verdade.
Sendo que, se ele não se lembrava mais, nem queria saber da gente, por que,
então, não subia ou descia o rio, para outras paragens, longe, no
não-encontrável? Só ele soubesse. Mas minha irmã teve menino, ela mesma
entestou que queria mostrar para ele o neto. Viemos, todos, no barranco, foi
num dia bonito, minha irmã de vestido branco, que tinha sido o do casamento,
ela erguia nos braços a criancinha, o marido dela segurou, para defender os
dois, o guarda-sol. A gente chamou, esperou. Nosso pai não apareceu. Minha irmã
chorou, nós todos aí choramos, abraçados.
Minha irmã se mudou, com o marido, para longe daqui. Meu
irmão resolveu e se foi, para uma cidade. Os tempos mudavam, no devagar
depressa dos tempos. Nossa mãe terminou indo também, de uma vez, residir com
minha irmã, ela estava envelhecida. Eu fiquei aqui, de resto. Eu nunca podia
querer me casar. Eu permaneci, com as bagagens da vida. Nosso pai carecia de
mim, eu sei — na vagação, no rio no ermo — sem dar razão de seu feito. Seja
que, quando eu quis mesmo saber, e firme indaguei, me diz-que-disseram: que
constava que nosso pai, alguma vez, tivesse revelado a explicação, ao homem que
para ele aprontara a canoa. Mas, agora, esse homem já tinha morrido, ninguém
soubesse, fizesse recordação, de nada mais. Só as falsas conversas, sem senso,
como por ocasião, no começo, na vinda das primeiras cheias do rio, com chuvas
que não estiavam, todos temeram o fim-do-mundo, diziam: que nosso pai fosse o
avisado que nem Noé, que, por tanto, a canoa ele tinha antecipado; pois agora
me entrelembro. Meu pai, eu não podia malsinar. E apontavam já em mim uns
primeiros cabelos brancos.
Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha
tanta, tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o
rio — pondo perpétuo. Eu sofria já o começo de velhice — esta vida era só o
demoramento. Eu mesmo tinha achaques, ânsias, cá de baixo, cansaços,
perrenguice de reumatismo. E ele? Por quê? Devia de padecer demais. De tão
idoso, não ia, mais dia menos dia, fraquejar do vigor, deixar que a canoa
emborcasse, ou que bubuiasse sem pulso, na levada do rio, para se despenhar
horas abaixo, em tororoma e no tombo da cachoeira, brava, com o fervimento e
morte. Apertava o coração. Ele estava lá, sem a minha tranquilidade. Sou o
culpado do que nem sei, de dor em aberto, no meu foro. Soubesse — se as coisas
fossem outras. E fui tomando idéia.
Sem fazer véspera. Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra
doido não se falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se condenava
ninguém de doido. Ninguém é doido. Ou, então, todos. Só fiz, que fui lá. Com um
lenço, para o aceno ser mais. Eu estava muito no meu sentido. Esperei. Ao por
fim, ele apareceu, aí e lá, o vulto. Estava ali, sentado à popa. Estava ali, de
grito. Chamei, umas quantas vezes. E falei, o que me urgia, jurado e declarado,
tive que reforçar a voz: — "Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto...
Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando
que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!..."
E, assim dizendo, meu coração bateu no compasso do mais certo.
Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n'água, proava
para cá, concordado. E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes, ele tinha
levantado o braço e feito um saudar de gesto — o primeiro, depois de tamanhos
anos decorridos! E eu não podia... Por pavor, arrepiados os cabelos, corri,
fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado. Porquanto que ele me pareceu
vir: da parte de além. E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão.
Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube
mais dele. Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai
ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do
mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me
depositem também numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas
beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio.
Guimarães Rosa