«A Menina de Lá», por Guimarães Rosa.
«A Menina de Lá»
Menina num Balanço/ Winslow Homer
545- «A MENINA DE LÁ»
Sua casa ficava para trás da serra do Mim, quase no meio de
um brejo de água limpa, lugar chamado o Temor-de-Deus. O Pai, pequeno sitiante,
lidava com vacas e arroz; a Mãe, urucuiana, nunca tirava o terço da mão, mesmo
quando matando galinhas ou passando descompostura em alguém. E ela, menininha,
por nome Maria, Nhinhinha dita, nascera já muito para miúda, cabeçudota e com
olhos enormes.
Não que parecesse olhar ou enxergar de propósito. Parava
quieta, não queria bruxas de pano, brinquedo nenhum, sempre sentadinha onde se
achasse, pouco se mexia. – “Ninguém entende muita coisa que ela fala…” dizia o
Pai, com certo espanto. Menos pela estranhez das palavras, pois só em raro ela
perguntava, por exemplo: – “Ele xurugou?” – e, vai ver, quem e o quê, jamais se
saberia. Mas, pelo esquisito do juízo ou enfeitado do sentido. Com riso
imprevisto: – “Tatu não vê a lua…” – ela falasse. Ou referia estórias,
absurdas, vagas, tudo muito curto: da abelha que se voou para uma nuvem; de uma
porção de meninas e meninos sentados a uma mesa de doces, comprida, comprida,
por tempo que nem se acabava; ou da precisão de se fazer lista das coisas todas
que no dia por dia a gente vem perdendo. Só a pura vida.
Em geral, porém Nhinhinha, com seus nem quatro anos, não
incomodava ninguém, e não se fazia notada, a não ser pela perfeita calma,
imobilidade e silêncios. Nem parecia gostar ou desgostar especialmente de coisa
ou pessoa nenhuma. Botavam para ela a comida, ela continuava sentada, o prato
de folha no colo, comia logo a carne ou o ovo, os torresmos, o do que fosse
mais gostoso e atraente, e ia consumindo depois o resto, feijão, angu, ou
arroz, abóbora, com artística lentidão. De vê-la tão perpétua e imperturbada, a
gente se assustava de repente. – “Nhinhinha, que é que você está fazendo?” –
perguntava-se. E ela respondia, alongada, sorrida, moduladamente: – “Eu… to-u…
fa-a-zendo”. Fazia vácuos. Seria mesmo seu tanto tolinha?
Nada a intimidava. Ouvia o Pai querendo que a Mãe coasse um
café forte, e comentava, se sorrindo: – “Menino pidão… Menino pidão…” Costumava
também dirigir-se à Mãe desse jeito: – “Menina grande… Menina grande…” Com isso
Pai e Mãe davam de zangar-se. Em vão. Nhinhinha murmurava só: – “Deixa… Deixa…”
– suasibilíssinia, inábil como uma flor. O mesmo dizia quando vinham chamá-la
para qualquer novidade, dessas de entusiasmar adultos e crianças. Não se
importava com os acontecimentos. Tranquila, mas viçosa em saúde. Ninguém tinha
real poder sobre ela, não se sabiam suas preferências. Como puni-la? E,
bater-lhe, não ousassem; nem havia motivo. Mas, o respeito que tinha por Mãe e
Pai, parecia mais uma engraçada espécie de tolerância. E Nhinhinha gostava de
mim.
Conversávamos, agora. Ela apreciava o casacão da noite –
“Cheiinhas!” – olhava as estrelas, deléveis, sobre-humanas. Chamava-as de
“estrelinhas pia-pia”. Repetia: – “Tudo nascendo!” – essa sua exclamação
dileta, em muitas ocasiões, com o deferir de um sorriso. E o ar. Dizia que o ar
estava com cheiro de lembrança – “A gente não vê quando o vento se acaba…”
Estava no quintal, vestidinha de amarelo. O que falava, às vezes era comum, a
gente é que ouvia exagerado: – “Alturas de urubuir…” Não, dissera só: – “…
altura de urubu não ir”. O dedinho chegava quase no céu. Lembrou-se de: –
“Jabuticaba de vem-me-ver…” Suspirava depois: – “Eu quero ir para lá”. Aonde? –
“Não sei.” Aí, observou: – “O passarinho desapareceu de cantar…” De fato, o
passarinho tinha estado cantando, e, no escorregar do tempo, eu pensava que não
estivesse ouvindo; agora, ele se interrompera. Eu disse: – “A Avezinha”. De por
diante, Nhinhinha passou a chamar o sabiá de “Senhora Vizinha…” E tinha
respostas mais longas: – “Eeu? Tou fazendo saudade.” Outra hora, falava-se de
parentes já mortos, ela riu: – “Vou visitar eles…” Ralhei, dei conselhos, disse
que ela estava com a lua. Olhou-me, zombaz, seus olhos muito perspectivos: –
“Ele te xurugou?” Nunca mais vi Nhinhinha.
Sei, porém, que foi por aí que ela começou a fazer milagres.
Nem Mãe nem Pai acharam logo a maravilha, repentina. Mas
Tiantônia. Parece que foi de manhã. Nhinhinha, só, sentada olhando o nada
diante das pessoas: – “Eu queria o sapo vir aqui.” Se bem a ouviram, pensaram
fosse um patranhar, o de seus disparates, de sempre. Tiantônia, por vezo,
acenou-lhe com o dedo. Mas, aí, reto, aos pulinhos, o ser entrava na sala, para
aos pés de Nhinhinha – e não o sapo de papo, mas bela rã brejeira, vinda do
verduroso, a rã verdíssima. Visita dessas jamais acontecera. E ela riu: – “Está
trabalhando um feitiço…” Os outros se pasmaram; silenciaram demais.
Dias depois, com o mesmo sossego: – “Eu queria uma
pamonhinha de goiabada…” – sussurrou; e, nem bem meia hora, chegou uma dona, de
longe, que trazia os pãezinhos da goiabada enrolada na palha. Aquilo, quem
entendia? Nem os outros prodígios, que vieram se seguindo. O que ela queria,
que falava, súbito acontecia. Só que queria muito pouco, e sempre as coisas
levianas e descuidosas, o que não põe nem quita. Assim, quando a Mãe adoeceu de
dores, que eram de nenhum remédio, não houve fazer com que Nhinhinha lhe
falasse a cura. Sorria apenas, segredando seu – “Deixa… Deixa…” – não a podiam
despersuadir. Mas veio, vagarosa, abraçou a mãe e a beijou, quentinha. A Mãe,
que a olhava com estarrecida fé, sarou-se então, num minuto. Souberam que ela
tinha também outros modos.
Decidiram de guardar segredo. Não viessem ali os curiosos,
gente maldosa e interesseira, com escândalos. Ou os padres, o bispo, quisessem
tomar conta da menina, levá-la para sério convento. Ninguém, nem os parentes de
mais perto, devia saber. Também, o Pai, Tiantônia e a Mãe, nem queriam versar
conversas, sentiam um medo extraordinário da coisa. Achavam ilusão.
O que ao Pai, aos poucos, pegava a aborrecer, era que de
tudo não se tirasse o sensato proveito. Veio a seca, maior, até o brejo
ameaçava de se estorricar. Experimentaram pedir a Nhinhinha: que quisesse a
chuva. – “Mas, não pode, ué…” – ela sacudiu a cabecinha. Instaram-se: que, se
não, se acabava tudo, o leite, o arroz, a carne, os doces, frutas, o melado. –
“Deixa… Deixa…” – se sorria, repousada, chegou a fechar os olhos, ao
insistirem, no súbito adormecer das andorinhas.
Daí a duas manhãs, quis: queria o arco-íris. Choveu. E logo
aparecia o arco-da-velha, sobressaído em verde e o vermelho – que era mais um
vivo cor-de-rosa. Nhinhinha se alegrou, fora do sério, à tarde do dia, com a
refrescação. Fez o que nunca se lhe vira, pular e correr por casa e quintal. –
“Adivinhou passarinho verde?” – Pai e Mãe se perguntavam. Esses, os
passarinhos, cantavam, deputados de um reino. Mas houve que, a certo momento,
Tiantônia repreendesse a menina, muito brava, muito forte, sem usos, até a Mãe
e o Pai não entenderam aquilo, não gostaram. E Nhinhinha, branda, tornou a
ficar sentadinha, inalterada que nem se sonhasse, ainda mais imóvel, com seu
passarinho-verde pensamento. Pai e Mãe cochichavam, contentes: que, quando ela
crescesse e tomasse juízo, ia poder ajudar muito a eles, conforme à Providência
decerto prazia que fosse.
E, vai, Nhinhinha adoeceu e morreu.
Diz-se que da má água desses ares. Todos os vivos atos se
passam longe demais.
Desabado aquele feito, houve muitas diversas dores, de
todos, dos de casa: um de-repente enorme. A Mãe, o Pai, e Tiantônia davam conta
de que era a mesma coisa que se cada um deles tivesse morrido por metade. E
mais para repassar o coração de se ver quando a Mãe desfiava o terço, mas em
vez das ave-marias podendo só gemer aquilo de – “Menina grande… Menina grande…”
– com toda ferocidade. E o Pai alisava com as mãos o tamboretinho em que
Nhinhinha se sentava tanto, e em que ele mesmo se sentar não podia, que com o
peso de seu corpo de homem o tamboretinho se quebrava.
Agora, precisavam de mandar recado, ao arraial, para fazerem
o caixão e aprontarem o enterro, com acompanhamento de virgens e anjos. Aí,
Tiantônia tomou coragem, carecia de contar: que, naquele dia, do arco-íris da
chuva, do passarinho, Nhinhinha tinha falado despropositado desatino, por isso
com ela ralhara. O que fora: que queria um caixãozinho cor-de-rosa, com
enfeites verdes brilhantes… A agouraria! Agora, era para se encomendar o
caixãozinho assim, sua vontade?
O pai, em bruscas lágrimas, esbravejou: que não! Ah, que, se
consentisse nisso, era como tomar culpa, estar ajudando ainda a Nhinhinha a
morrer…
A Mãe queria, ela começou a discutir com o Pai. Mas, no mais
choro, se serenou – o sorriso tão bom, tão grande – suspensão num pensamento:
que não era preciso encomendar, nem explicar, pois havia de sair bem assim, do
jeito, cor-de-rosa com verdes funebrilhos, porque era, tinha de ser! – pelo
milagre, o de sua filhinha em glória, Santa Nhinhinha.
Guimarães Rosa