quinta-feira, 30 de julho de 2015

OUTROS CONTOS

«O Morro dos Ventos Uivantes», por Emily Bronte.

«O Morro dos Ventos Uivantes»
Excerto do Romance de Emily Bronte

576- «O MORRO DOS VENTOS UIVANTES»

[Excerto]

 (...)

“Era tarde da noite, e o bebé chorou, E o sapo na lagoa bem que escutou, quando Cathy, que ouvira toda a cena, passou a cabeça pela porta e perguntou, num murmúrio:

— Nelly, você está sozinha?

— Estou, sim — respondi.

Ela entrou e aproximou-se da lareira. Supondo que fosse dizer algo, levantei a cabeça para olhá-la. A sua expressão era de preocupação e ansiedade. Tinha os lábios semi-abertos, como se fosse dizer alguma coisa, mas limitou-se a suspirar. Recomecei a cantar, pois não esquecera ainda o seu recente comportamento.

— Onde está Heathcliff? — perguntou, interrompendo-me.

— Trabalhando na cavalariça — repliquei.

Ele não me contradisse; talvez tivesse adormecido. Seguiu-se outra longa pausa, durante a qual vi uma ou duas lágrimas escorrerem pelas faces de Catherine. "Será que está arrependida da sua vergonhosa conduta?", pensei.

"Isso seria novidade; mas não vou ajudá-la, ela que se arranje!" Enganava-me: ela não se preocupava senão com os seus próprios problemas.

— Oh, meu Deus! — exclamou, finalmente. — Sinto-me tão infeliz!

— Que pena! — observei. — Mas você é mesmo difícil de contentar: tem tantos amigos e tão poucas preocupações, e nem assim se sente satisfeita!

— Nelly, será que você é capaz de guardar um segredo? — continuou ela, ajoelhando-se ao meu lado e erguendo para mim os seus belos olhos, que tinham a propriedade de acabar com qualquer ressentimento, mesmo que fosse absolutamente legítimo.

— É um segredo que vale a pena guardar? — perguntei, com voz menos seca.

— É, e está me preocupando, preciso desabafar! Quero saber o que devo fazer. O caso é o seguinte: Edgar Linton pediu-me hoje em casamento, e eu lhe dei uma resposta.

Agora, antes que eu lhe diga se a resposta foi afirmativa ou negativa, diga-me qual deveria ter sido.

— Ora, Srta. Catherine, como é que eu posso saber? — retruquei. — Para dizer a verdade, depois da cena que fez na presença dele, esta tarde, acho que seria acertado recusar-lhe a proposta; se ele a pediu em casamento depois daquilo, deve ser ou completamente estúpido ou insensato.

— Se você falar assim não lhe conto mais nada — replicou ela em tom caprichoso, pondo-se de pé. — Respondi que sim, Nelly. Agora, diga depressa se eu errei!

— Você já lhe respondeu que sim? Então, para que discutir o assunto? Você já deu a sua palavra, não pode mais voltar atrás.

— Mas diga se eu fiz bem. . . diga! — exclamou ela, já irritada, esfregando as mãos e franzindo a testa.

— Há muitas coisas a considerar antes de se poder responder a essa pergunta — respondi. — Antes de mais nada, você ama o Sr. Edgar?

— Como poderia deixar de amar? Claro que amo — respondeu.

Resolvi passá-la, então, por uma espécie de interrogatório, o que, para uma moça de vinte e dois anos, não deixava de ser razoável.

— Por que é que o ama, Sra. Cathy?

— Ora, porque sim. . . e isso basta.

— Absolutamente; você precisa dizer por quê.

— Bem, porque ele é belo e uma companhia muito agradável.

— Mau! — exclamei.

— E porque ele é jovem e alegre.

— Mau, outra vez.

— E porque ele me ama.

— Isso não interessa.

— E porque ele vai ser rico, e eu serei a mulher mais importante destas bandas e sentirei orgulho em tê-lo por marido.

— Pior ainda. Agora, diga-me, de que maneira você o ama?

— Como todo o mundo. . . oh, você parece boba, Nelly.

— Não sou, não. Responda.

— Bem, amo o chão que ele pisa e o ar que o rodeia e tudo quanto ele toca e tudo o que ele diz. Gosto da figura dele e de todas as suas ações; gosto dele todo. Pronto!

— E por quê?

— Não, você está caçoando de mim, e isso é de muito mau gosto. Para mim não é brincadeira! — exclamou a jovem, franzindo o sobrolho e voltando o rosto para o fogo.

— Não estou caçoando, Sra. Catherine — repliquei. — Você ama o Sr. Edgar porque ele é belo, jovem, alegre, rico e a ama. Essa última razão não interessa: você o amaria mesmo que ele não a amasse, acho eu; mas não o amaria se ele não possuísse as outras quatro atrações.

— Não, claro que não; apenas teria dó dele. . . ou o detestaria, se ele fosse feio e pateta.

— Mas há muitos outros jovens belos e ricos no mundo; até mais belos e mais ricos do que ele. Por que você não haveria de amá-los?

— Se há, não os conheço. Não conheço ninguém como Edgar.


— Mas talvez ainda vá conhecer; e ele não será sempre belo, nem jovem, nem, talvez, rico.

— É, agora, e só me interessa o presente. Gostaria que você falasse mais racionalmente.

— Bom, se só lhe interessa o presente, case-se com o Sr. Linton.

— Não preciso da sua permissão. . . eu vou casar com ele. Mas você ainda não me disse se eu faço bem.

— Muito bem, se é que as pessoas fazem bem em casar pensando apenas no presente.

Agora, gostaria de saber por que é que está tão infeliz. Seu irmão vai ficar muito satisfeito; os pais do Sr. Edgar decerto não porão obstáculos; você sairá de uma casa desordenada e sem conforto para um lar farto e respeitável; e vocês se amam. Tudo me parece um céu aberto. Onde está a infelicidade?

— Aqui! e aqui! — respondeu Catherine, batendo com uma mão na testa e a outra no peito. — Onde quer que a alma resida. No fundo da minha alma e do meu coração, estou convencida de estar errada!

— Isso é muito estranho! Não entendo!

— É esse o meu segredo. Mas, se você não caçoar de mim, eu lhe explicarei. Não posso fazê-lo muito bem; apenas vou dar-lhe uma ideia do que eu sinto. Sentou-se novamente a meu lado. O seu rosto tornou-se mais triste e mais grave ainda, e as suas mãos tremiam.

— Nelly, você nunca tem sonhos esquisitos? — perguntou de repente, após alguns minutos de reflexão.

— Tenho, de vez em quando — respondi.

— Eu também. Já tive sonhos que nunca consegui esquecer e que mudaram a minha maneira de pensar: alteraram a cor da minha mente, assim como o vinho altera a cor da água. Vou lhe contar um desses sonhos. . . mas tenha o cuidado de não rir.

— Oh, por favor, Sita. Catherine! — exclamei. — Para que conjurar fantasmas e visões? Vamos, seja alegre como costuma ser. Olhe para o pequenino Hareton! Ele não está sonhando sonhos esquisitos. Veja como ele sorri docemente!

— Sim, e com o pai dele pragueja! Entretanto, você deve se lembrar dele mais ou menos assim: quase tão pequeno e tão inocente. De qualquer maneira, Nelly, vou obrigá-la a escutar o meu sonho. Não é comprido, e eu não posso estar alegre esta noite.

— Não quero ouvir, não quero ouvir! — repeti.
Eu era supersticiosa a respeito de sonhos, e ainda sou. Catherine tinha, naquela noite, um aspecto sombrio e nada comum, que me fazia temer e profetizar algo terrível. Ficou irritada comigo, mas não insistiu. Aparentemente mudando de assunto, continuou:

— Se eu estivesse no céu, Nelly, sentir-me-ia muito mal.

— É porque você não o merece — respondi. — Todos os pecadores se sentiriam mal no céu.

— Mas não é por isso. Uma vez sonhei que estava lá.

— Já lhe disse que não quero saber dos seus sonhos, Srta. Catherine! Vou para a cama
— ameacei.

Ela riu e segurou-me, pois fiz menção de me levantar.

— Não é nada — disse ela. — Só lhe ia contar que para mim não parecia ser o céu e que eu chorava desesperadamente, querendo voltar para a terra. Os anjos ficaram tão zangados comigo, que me jogaram bem em cima do Morro dos Ventos Uivantes, onde eu acordei soluçando de alegria. Isso me servirá para explicar o meu segredo. Não tenho mais razão para casar com Edgar Linton do que para estar no céu e, se esse homem perverso que é o meu irmão não tivesse feito Heathcliff descer tanto, eu nem teria pensado nisso. Mas agora eu me degradaria se casasse com Heathcliff, por isso ele nunca há de saber o quanto o amo: e não porque ele seja belo, Nelly, mas por ele ser mais eu do que eu própria. Não sei de que são feitas as nossas almas, mas elas são iguais; e a de Linton é tão diferente da minha quanto um raio de lua é diferente de um relâmpago, ou o fogo da geada.

Antes que ela tivesse acabado de falar, apercebi-me da presença de Heathcliff. Tendo notado um ligeiro movimento, virei a cabeça e vi-o erguer-se do banco e sair sem fazer barulho. Ouvira Catherine dizer que casar com ele a degradaria, e não quisera escutar mais. Sentada no chão, atrás do encosto do banco, ela não havia reparado na sua presença nem dera conta da sua partida; mas eu estremeci e fiz-lhe sinal para que se calasse.”

Emily Bronte

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