segunda-feira, 31 de outubro de 2016

SÁTIRA...

«O Habilitado»
Sátira...

«O HABILITADO»

- Mais um que mentiu
Sobre título académico…
Não deixa de ser polémico,
A verdade omitiu.
- Parvoíce que você ouviu!...
Ao político não é exigida
Habilitação nesta vida…
Vem habilitado à nascença!!
- Está lida a sentença…
Prá política já de seguida!!!

POETA

domingo, 30 de outubro de 2016

SÁTIRA...

O Emplastro
Sátira...

«O EMPLASTRO»

As autoridades acabam de emitir
Mandado europeu de captura…
Querem apanhar uma cavalgadura
Que matou, e agora anda a fugir.
A judiciária não consegue descobrir
De Pedro Dias, o paradeiro,
O emplastro chega primeiro
Antes que se faça tarde…
Entrega-se à autoridade
O gémeo de corpo inteiro!

POETA

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

NICCOLÒ PAGANINI - «Cantabile»

Poet'anarquista

Niccolò Paganini
Violinista e Compositor Italiano

OUTROS CONTOS

«Não Entres Docilmente Nessa Noite Escura», conto poético por Dylan Thomas.

«Não Entres Docilmente 
Nessa Noite Escura»
Ilustração/ Oswaldo Goeldi

908- «NÃO ENTRES DOCILMENTE NESSA NOITE ESCURA»

Não entres docilmente nessa noite escura, 
porque a velhice deveria arder e delirar no termo do dia;
odeia, odeia a luz que começa a morrer.

No fim, ainda que os sábios aceitem as trevas,
porque se esgotou o raio nas suas palavras, eles
não entram docilmente nessa noite escura.

Homens bons que clamaram, ao passar a última onda, como podia
o brilho das suas frágeis ações ter dançado na baia verde,
odiai, odiai a luz que começa a morrer.

E os loucos que colheram e cantaram o vôo do sol
e aprenderam, muito tarde, como o feriram no seu caminho,
não entram docilmente nessa noite escura.

Junto da morte, homens graves que vedes com um olhar que cega
quanto os olhos cegos fulgiriam como meteoros e seriam alegres,
odiai, odiai a luz que começa a morrer.

E de longe, meu pai, peço-te que nessa altura sombria
venhas beijar ou amaldiçoar-me com as tuas cruéis lágrimas.
Não entres docilmente nessa noite escura.
Odeia, odeia a luz que começa a morrer.

Dylan Thomas

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

OUTROS CONTOS

«O Fazedor de Viúvas», por Valter Hugo Mãe.

«O Fazedor de Viúvas»
Pequeno Excerto de Valter Hugo Mãe

907- «O FAZEDOR DE VIÚVAS»

[Pequeno Excerto]

“Todos o conheciam como o fazedor de viúvas. Era o fazedor de viúvas porque se metia com mulheres casadas que, breve tempo depois, enterravam os maridos. Ninguém podia garantir que as incentivasse a livrarem-se deles, ao menos não até a dona Hortênsia ter sido presa e saído de casa em braços do polícia Tito.

Mata aos berros aflitos, que ele, o Zequelino Cutelo, é que lhe tinha deixado um veneno para ratos nas mãos, que ele, o fazedor de viúvas, é que a tinha posto louca, uma mulher tão simples enganada por um homem tão perigoso. Era o que ele queria. Não queria mais nada. Só que elas matassem os maridos. Como se depois disso lhes perdesse o desejo, ou, de certeza, nem desejo algum lhes tivesse, só as queria deitar em perdição. Sim, porque sabia que andara com esta e com aquela e, ainda que viúvas em liberdade sem o azar da dona Hortênsia, ele já não as queria.

Mal o cornudo fosse à terra, ele desaparecia de beira delas. A minha avó, que pouco opinava sobre a amizade do meu avô com tão suspeito homem, no dia em que a dona Hortênsia foi presa disse alto à entrada da sala, esse homem é um assassino, não o quero em minha casa. O meu avô silenciou-se como se fosse culpado e ouviu, comigo, o bater da porta da frente. A minha avó saíra para ver a algazarra na praça.”

Valter Hugo Mãe

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

SECOS & MOLHADOS - «O Doce e o Amargo»

Poet'anarquista

O DOCE E O AMARGO

O sol que veste o dia
O dia de vermelho
O homem de preguiça
O verde de poeira
Seca os rios, os sonhos
Seca o corpo a sede na indolência

Beber o suco de muitas frutas
O doce e o amargo
Indistintamente
Beber o possível
Sugar o seio
Da impossibilidade

Até que brote o sangue
Até que surja a alma
Dessa terra morta
Desse povo triste

Secos & Molhados
Banda Brasileira

terça-feira, 25 de outubro de 2016

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

JON LORD - «Blues Project Live»

Poet'anarquista

Jon Lord
Músico Britânico, Criador dos Deep Purple

OUTROS CONTOS

Todos os Beijos», conto poético por João de Barros.

«Todos os Beijos»
O Beijo/ Theophile Steinlen

906- «TODOS OS BEIJOS...»

Todos os beijos da volúpia, os beijos
Da boca sempre inquieta por beijar-te;
E os beijos da minh'alma, sem desejos
Que não sejam, de longe, acarinhar-te...

E os beijos que são longos, como harpejos
Em que fala o meu sonho e a minha arte,
E os beijos em que o sangue tem lampejos
De ciúme e de febre a alucinar-te...

E os beijos desta angústia, em que procuro
Prender nas minhas mãos o teu futuro,
Saber o anseio dos teus olhos tristes...

E ainda os beijos novos que eu não dera,
Os beijos que eu não dava à tua espera
-E que são teus, Amor que não existes!...

João de Barros

sábado, 22 de outubro de 2016

SÁTIRA...

O Galã
Sátira...

«O GALû

- Bosta e acólitos:
Os salários dos novos gestores
Da Caixa Geral de Depósitos…?
Vergonhosos, meus senhores!
- Eu tenho dois amores…
Abaixo desde logo a direita,
Caça aos ricos de escopeta
E saída imediata da Europa…
Que se cosa toda essa tropa!!
- Só conversa da treta!!!

POETA

MÚSICA versus POESIA

SECOS & MOLHADOS
«Primavera nos Dentes»

PRIMAVERA NOS DENTES

Quem tem consciência para ter coragem
Quem tem a força de saber que existe
E no centro da própria engrenagem
Inventa a contra-mola que resiste

Quem não vacila mesmo derrotado
Quem já perdido nunca desespera
E envolto em tempestade decepado
Entre os dentes segura a primavera

João Apolinário


MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

PABLO CASALS - «The Swan»

Poet'anarquista

Pablo Casals
Violoncelista e Maestro Catalão

CARTA DE RECUSA

Carta de Jean-Paul Sartre recusando o Prémio Nobel de Literatura.

Nobel da Literatura
Medalha (frente e verso)

CARTA DE RECUSA 

Lamento vivamente que este assunto tenha tomado a aparência de um escândalo; um prémio foi concedido e alguém o recusa. Isto se deve ao facto de que não fui informado devidamente a tempo do que se preparava. Li no “Le Figaro Litteraire”, de 15 do corrente mês, sob a assinatura do correspondente sueco deste jornal, que a maioria na Academia Sueca era a meu favor, mas não havia sido ainda definitivamente fixada, pelo que bastava escrever uma carta à Academia, o que fiz no dia seguinte, para pôr um ponto final ao assunto e não mais se falasse dele. Eu ignorava, então, que o Prémio Nobel é outorgado sem que se peça a opinião ao interessado e pensei que ainda era tempo de impedi-lo. Mas compreendo muito bem que quando a Academia Sueca faz sua escolha, já não pode voltar atrás. As razões pelas quais renuncio ao prémio não se referem nem à Academia Sueca, nem ao Prémio Nobel em si, como já expliquei em minha carta à Academia. Nela invoquei duas espécies de razões; razões pessoais e razões objectivas. As razões pessoais são as seguintes: minha negativa não é um acto improvisado. Sempre recusei as distinções oficiais. Quando, depois da guerra, em 1945, me propuseram a Legião de Honra, recusei-a, apesar de possuir amigos no Governo. Igualmente nunca aceitei ingressar no Colégio de França como sugeriram alguns de meus amigos. Esta atitude é baseada em minha concepção do trabalho do escritor. Um escritor que assume posições políticas, sociais ou literárias somente deve agir com meios que lhes são próprios, isto é, com a palavra escrita. Todas as distinções que possa receber expõem seus leitores a uma pressão que não considero desejável. Não é a mesma coisa se eu assino Jean-Paul Sartre que se eu assino Jean-Paul Sartre, Prémio Nobel. O escritor que aceita uma distinção deste género compromete, também, a associação ou instituição que a outorga: minhas simpatias pelos guerrilheiros venezuelanos somente a mim comprometem, mas se o Prémio Nobel Jean-Paul Sartre toma partido pela resistência na Venezuela, arrasta consigo todo o Prémio Nobel como instituição. Nenhum escritor deve deixar-se transformar em Instituição, mesmo que isto se verifique pela mais honrosa forma, como no caso presente. Esta atitude é inteiramente pessoal e, evidentemente, não representa nenhuma crítica contra aqueles que já foram premiados. Tenho muita estima e admiração por muitos dos laureados que conheci pessoalmente. Mas minhas razões objectivas são as seguintes: – O único combate actualmente possível no campo da cultura é o da existência pacífica das duas culturas, a do Leste e a do Oeste. Não quero dizer com isso que seja necessário que se deem abraços. Sei perfeitamente que o confronto entre estas duas culturas deve, por necessidade, adoptar a forma de um conflito, conflito que deve ter lugar entre homens e entre culturas, mas sem intervenção de instituições. Sinto pessoal e profundamente as contradições entre as duas culturas: sou feito dessas contradições. Minhas simpatias vão inegavelmente, para o socialismo e para o que se chama o Bloco do Leste, mas vivi e me eduquei numa família burguesa e numa cultura burguesa. Isto me permite colaborar com todos aqueles que querem aproximar ambas as culturas. Espero, naturalmente que a melhor ganhe, isto é, o socialismo. Por isso é que não posso aceitar nenhuma distinção concedida pelas altas instâncias culturais, tanto de Leste como do Oeste, mesmo que admita sua existência. Embora todas as minhas simpatias vão para o campo socialista, seria impossível para mim aceitar, por exemplo, o Prémio Lenine, se alguém quisesse me conceder, o que não se dá. Sei muito bem que o Prémio Nobel, por si mesmo, não é um prémio literário do campo ocidental, mas se transforma no que se faz dele e podem suceder coisas que os membros da Academia Sueca não podem prever. Por isto que, na situação actual, o Prémio Nobel se apresenta objectivamente como uma distinção reservada aos escritores do Oeste ou aos rebeldes do Leste. Não se premiou Neruda, que é um dos maiores escritores americanos. Nunca se pensou seriamente em Aragon, que bem o merece. É lamentável que se tenha concedido o prémio a Pasternak e não a Cholokhov e que a única obra soviética coroada seja uma editada no estrangeiro, proibida em seu país. Poder-se-ia ter estabelecido um equilíbrio mediante um gesto análogo no outro sentido. Durante a guerra da Argélia, quando assinamos o Manifesto dos 111 eu teria aceitado o prémio com reconhecimento, porque ele não teria honrado somente a mim, mas à liberdade pela qual lutávamos. Mas isso não aconteceu e é somente no fim dos combates que se entregam os prémios. Na motivação da Academia Sueca se fala de liberdade: é uma palavra que se presta a numerosas interpretações. No ocidente, se fala de liberdade num sentido geral. Entendo a liberdade de uma forma mais concreta, que consiste no direito de ter mais de um par de sapatos e de comer pão menos duro. Parece-me menos perigoso declinar do prémio do que aceitá-lo. Se o aceitasse, me prestaria ao que se pode chamar de uma ‘recuperação objectiva’. Afirma o artigo do ‘Le Figaro Litteraire’ que ‘não se teria em conta meu passado político discutido’. Sei que este artigo não exprime a opinião da Academia Sueca, mas ele mostra claramente em que sentido seria interpretada minha aceitação em certos meios de direita. Considero este ‘passado político discutido’ como ainda válido, mesmo se disposto a reconhecer certos erros passados perante meus camaradas. Não quero dizer que o Prémio Nobel seja um prémio ‘burguês’, mas esta seria a interpretação burguesa que dariam inevitavelmente os meios que conhecemos. Finalmente, resta a questão do dinheiro. É verdadeiramente grave que a Academia coloque sobre os ombros do laureado, além da homenagem, uma soma enorme. Este problema me atormentou. Ou bem se aceita o prémio e com a soma recebida se apoiam movimentos ou organizações que se consideram importantes – de minha parte seria o Comité Apartheit de Londres – ou bem se recusa o prémio em vista de virtude de princípios gerais, e se priva este movimento ao apoio que necessita. Renuncio, evidentemente, às 250.000 coroas porque não quero ser institucionalizado nem ao Leste nem ao Oeste. Não se pode pedir que se renuncie, por 250.000 coroas, aos princípios que não são unicamente nossos, mas compartilhados por todos os nossos camaradas. Foi isto que tornou tão penoso para mim tanto a atribuição do prémio como a recusa que manifestei. 

Quero terminar esta declaração com uma mensagem de simpatia ao povo sueco.

Jean-Paul Sartre

OUTROS CONTOS

«Intimidade», conto de Jean-Paul Sartre.

«Intimidade»
Ilustração: Cavalcanti

905- «INTIMIDADE»

[Fragmento]

“Lulu dormia nua não só porque gostava de se acariciar com as cobertas, mas também porque lavagem de roupa custa caro. A princípio Henri protestou; não se deve dormir nu, isto não se faz, é nojento. Acabou, porém, por comodismo, seguindo o exemplo da mulher; ele era correto como uma estaca quando se achava no meio de outras pessoas (admirava os suíços e particularmente os genebrinos, achava-os altivos porque eram impassí­veis) mas negligenciava as pequenas coisas, por exemplo, não era muito asseado, raramente mudava de cuecas; quando Lulu as punha na roupa suja, não podia deixar de observar o seu fundo amarelado à força de roçar contra o rego das nádegas. Pessoalmente, Lulu não se incomodava com a sujeira: dá um ar de intimidade, cria certos sombreados familiares. No côncavo dos cotovelos, por exemplo. Não gostava dos ingleses, dos seus corpos sem personalidade, sem nenhum cheiro. Sentia, porém, horror às negligências do marido, porque reflectiam um carinho excessivo por si próprio. De manhã, ao acordar, ele se sentia sempre terno, a cabeça cheia de sonhos, e o dia claro, a água fria, o pelo áspero das escovas lhe faziam o efeito de brutais injustiças.

(…)

Lulu retirou do dedo da fenda do cobertor e agitou um pouco os pés, pelo prazer de se sentir acordada perto daquela carne mole e cativa. Ouviu um gru-gru: um ventre que faz barulho me aborrece porque nunca posso saber se é o seu ou o meu. Fechou os olhos; são líquidos que gorgolham nas tripas , todo mundo tem isso, Rirette, eu ( não gosto de pensar nisso, me dá dor de barriga). Ele me ama, mas não ama minhas tripas; se lhe mostrassem meu apêndice num vidro, não o reconheceria; ele vive a me apalpar mas se lhe pusessem o vidro nas mãos não sentiria nada intimamente, não pensaria “isto é dela”; a gente devia poder amar tudo de uma pessoa, o esófago, o fígado, os intestinos. Talvez não gostem dessas coisas por falta de hábito, se as vissem como vêm nossas mãos e nossos braços, talvez as amassem; é por isso que as estrelas do mar devem amar-se melhor que nós; elas se estendem sobre a praia quando faz sol e expelem o estômago para fazê-lo tomar ar e todos podem vê-lo; eu me pergunto por onde faríamos sair o nosso, pelo umbigo, talvez. Fechou os olhos e os discos azuis começaram a girar, como na feira, ontem, quando eu atirava flechas de borracha nos discos e as letras se acendiam a cada golpe, formando um nome de cidade; ele me impediu de formar “Dijon”, com sua mania de se encostar às minhas nádegas; detesto que me toquem por trás, desejava não ter costas, não gosto que me façam certas coisas quando não as vejo; eles podem gozar sem que se lhes vejam as mãos; a gente as sente subindo e descendo, mas não pode prever aonde vão, eles olham a gente à vontade e a gente não os pode ver, eles adoram isso; Henri nunca pensou em fazer essas coisas, ele só quer saber de se encostar nas minhas nádegas e eu estou convencida de que ele me pega no traseiro de propósito, porque sabe que eu morro de vergonha de ter um e o fato de ter vergonha o excita, mas não quero pensar nele agora (ela sentia medo), quero pensar em Rirette. Ela pensava em Rirette todas as noites à mesma hora, justamente no momento em que Henri começava a balbuciar coisas sem nexo e a gemer. Mas houve resistência, o outro queria mostrar-se, ela chegou mesmo a ver, num instante, uns cabelos negros e crespos, pensou que ia acontecer e arrepiou-se porque nunca se sabe até aonde a coisa vai; se é só o rosto ainda bem; isso passa, mas houve noites em que ela não conseguiu fechar os olhos por causa de nojentas lembranças que emergiam à superfície; é medonho quando se conhece tudo de homem, principalmente aquilo.”

Jean-Paul Sartre

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

SÁTIRA...

A Última Esperança
Sátira...

«A ÚLTIMA ESPERANÇA»

- Hello? Bostá?? O seguinte:
I’ve got a problemo!…
Daqui speak o demo,
I'Il call como pedinte.
- Trampa, sou teu ouvinte,
Mas não percebo nada
De pronúncia endiabrada.
- Tenho as elections fodidas
E practically (mente) perdidas…
Acabou-se a palhaçada!

POETA

RECORDANDO ALEIXO

Recordando Aleixo
Poeta Popular Português

Mote 

Ontem rei, hoje sem trono,
Cá ando outra vez na rua;
Entreguei o fato ao dono
E a miséria continua.

António Aleixo


Glosas

Fui guardador de rebanhos,
Vendi cautelas aos demais,
Cantei em feiras e arraiais
Quadras a muitos estranhos.
Escassos foram os ganhos
Que obtive em meu abono,
Sonhei então… (rico sono!)
Que a pobreza erradicava...
Infeliz quando acordava,
Ontem rei, hoje sem trono.

Ganha pão era ao relento
Estivesse frio ou calor…
Da privação sinto horror,
Mas que triste sofrimento!
Uma quadra dá alento
A quem com arte construa,
Esse dom há quem possua
Somente em quatro versos…
Em pensamentos dispersos,
Cá ando outra vez na rua.

A certame de poesia
Resolvi ir assistir...
Mas sem roupa pra vestir,
Comparecer não podia. 
Certo amigo por simpatia
Emprestou-me o ‘quimono’,
Lá fui eu feito um mono 
Para a festa engalanado…
Depois de tudo acabado,
Entreguei o fato ao dono.

Sou poeta do infortuno
Incisivo quanto baste…
Ironia em contraste
Com um mote oportuno.
Conheço muito gatuno
Que honesto se insinua,
Só quem vive na lua
É que tal não percebe…
De novo junto à plebe,
E a miséria continua!

Manel d’ Sousa

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

DIZZY GILLESPIE - «Dizzy Atmosphere

Poet'anarquista

Dizzy Gillespie
Trompetista de Jazz Norte-Americano

OUTROS CONTOS

«A Luz é como a Água», por Gabriel García Márquez.

«A Luz é como a Água»
Ilustração de Orlando Pedroso

904- «A LUZ É COMO A ÁGUA»

No Natal os meninos tornaram a pedir um barco a remos.

— De acordo — disse o pai —, vamos comprá-lo quando voltarmos a Cartagena.

Totó, de nove anos, e Joel, de sete, estavam mais decididos do que seus pais achavam.

— Não — disseram em coro. — Precisamos dele agora e aqui.

— Para começar — disse a mãe —, aqui não há outras águas navegáveis além da que sai do chuveiro.

Tanto ela como o marido tinham razão. Na casa de Cartagena de Índias havia um pátio com um atracadouro sobre a baía e um refúgio para dois iates grandes. Em Madri, porém, viviam apertados no quinto andar do número 47 do Paseo de la Castellana. Mas no final nem ele nem ela puderam dizer não, porque haviam prometido aos dois um barco a remos com sextante e bússola se ganhassem os louros do terceiro ano primário, e tinham ganhado. Assim sendo, o pai comprou tudo sem dizer nada à esposa, que era a mais renitente em pagar dívidas de jogo. Era um belo barco de alumínio com um fio dourado na linha de flutuação, 

— O barco está na garagem — revelou o pai na hora do almoço.— O problema é que não tem jeito de trazê-lo pelo elevador ou pela escada, e na garagem não tem mais lugar.

No entanto, na tarde do sábado seguinte, os meninos convidaram seus colegas para carregar o barco pelas escadas, e conseguiram levá-lo até o quarto de empregada.

— Parabéns — disse o pai. — E agora?

— Agora, nada - disseram os meninos. — A única coisa que a gente queria era ter o barco no quarto, e pronto.

Na noite de quarta-feira, como em todas as quartas-feiras, os pais foram ao cinema. Os meninos, donos e senhores da casa, fecharam portas e janelas, e quebraram a lâmpada acesa de um lustre da sala. Um jorro de luz dourada e fresca feito água começou a sair da lâmpada quebrada, e deixaram correr até que o nível chegou a quatro palmos. Então desligaram a corrente, tiraram o barco, e navegaram com prazer entre as ilhas da casa.

Esta aventura fabulosa foi o resultado de uma leviandade minha quando participava de um seminário sobre a poesia dos utensílios domésticos. Totó me perguntou como era que a luz acendia só com a gente apertando um botão, e não tive coragem para pensar no assunto duas vezes.

— A luz é como a água — respondi. — A gente abre a torneira e sai.

E assim continuaram navegando nas noites de quarta-feira, aprendendo a mexer com o sextante e a bússola, até que os pais voltavam do cinema e os encontravam dormindo como anjos em terra firme. Meses depois, ansiosos por ir mais longe, pediram um equipamento de pesca submarina. Com tudo: máscaras, pés-de-pato, tanques e carabinas de ar comprimido.

— Já é ruim ter no quarto de empregada um barco a remos que não serve para nada.

— disse o pai — Mas pior ainda é querer ter além disso equipamento de mergulho.

— E se ganharmos a gardênia de ouro do primeiro semestre? — perguntou Joel.

— Não - disse a mãe, assustada. — Chega. O pai reprovou sua intransigência.

— É que estes meninos não ganham nem um prego por cumprir seu dever — disse ela —, mas por um capricho são capazes de ganhar até a cadeira do professor.

No fim, os pais não disseram que sim ou que não. Mas Totó e Joel, que tinham sido os últimos nos dois anos anteriores, ganharam em Julho as duas gardénias de ouro e o reconhecimento público do director. Naquela mesma tarde, sem que tivessem tornado a pedir, encontraram no quarto os equipamentos em seu invólucro original. De maneira que, na quarta-feira seguinte, enquanto os pais viam O Último Tango em Paris, encheram o apartamento até a altura de duas braças, mergulharam como tubarões mansos por baixo dos móveis e das camas, e resgataram do fundo da luz as coisas que durante anos tinham-se perdido na escuridão.

Na premiação final os irmãos foram aclamados como exemplo para a escola e ganharam diplomas de excelência. Desta vez não tiveram que pedir nada, porque os pais perguntaram o que queriam. E eles foram tão razoáveis que só quiseram uma festa em casa para os companheiros de classe.

O pai, a sós com a mulher, estava radiante. — É uma prova de maturidade — disse.

— Deus te ouça — respondeu a mãe.

Na quarta-feira seguinte, enquanto os pais viam A Batalha de Argel, as pessoas que passaram pela Castellana viram uma cascata de luz que caía de um velho edifício escondido entre as árvores. Saía pelas varandas, derramava-se em torrentes pela fachada, e formou um leito pela grande avenida numa correnteza dourada que iluminou a cidade até o Guadarrama.

Chamados com urgência, os bombeiros forçaram a porta do quinto andar, e encontraram a casa coberta de luz até o tecto. O sofá e as poltronas forradas de pele de leopardo flutuavam na sala a diferentes alturas, entre as garrafas do bar e o piano de cauda com seu xale de Manilha que agitava-se com movimentos de asa a meia água como uma arraia de ouro. Os utensílios domésticos, na plenitude de sua poesia, voavam com suas próprias asas pelo céu da cozinha. Os instrumentos da banda de guerra, que os meninos usavam para dançar, flutuavam a esmo entre os peixes coloridos liberados do aquário da mãe, que eram os únicos que flutuavam vivos e felizes no vasto lago iluminado. No banheiro flutuavam as escovas de dentes de todos, os preservativos do pai, os potes de cremes e a dentadura de reserva da mãe, e o televisor da alcova principal flutuava de lado, ainda ligado no último episódio do filme da meia-noite proibido para menores.

No final do corredor, flutuando entre duas águas, Totó estava sentado na popa do bote, agarrado aos remos e com a máscara no rosto, buscando o farol do porto até o momento em que houve ar nos tanques de oxigénio, e Joel flutuava na proa buscando ainda a estrela polar com o sextante, e flutuavam pela casa inteira seus 37 companheiros de classe, eternizados no instante de fazer xixi no vaso de gerânios, de cantar o hino da escola com a letra mudada por versos de deboche contra o director, de beber às escondidas um copo de brandy da garrafa do pai. Pois haviam aberto tantas luzes ao mesmo tempo que a casa tinha transbordado, e o quarto ano elementar inteiro da escola de São João Hospitalário tinha se afogado no quinto andar do número 47 do Paseo de la Castellana. Em Madri de Espanha, uma cidade remota de verões ardentes e ventos gelados, sem mar nem rio, e cujos aborígines de terra firme nunca foram mestres na ciência de navegar na luz.

Gabriel García Márquez

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

SÁTIRA...

A Adivinha de Marcelo
Sátira...

«A ADIVINHA DE MARCELO»

- Ouve, Zé… se há consenso
Entre biliões de neurónios
Nos cérebros possidónios…
Nos partidos, com bom senso,
O mesmo não será propenso?
- Também assim pensava ser,
Mas enganei-me no parecer:
Aos políticos faltam miolos
E sobram carradas de tijolos…
Só não vê, quem não quer ver!

POETA

OUTROS CONTOS

«Meditação sobre um Cabo de Vassoura», por Jonathan Swift.

«Meditação sobre um Cabo de Vassoura»
Por Jonathan Swift

903- «MEDITAÇÃO SOBRE UM CABO DE VASSOURA»

Esse cabo que você contempla agora jogado naquele canto, eu uma vez o vi florescente numa floresta: ele estava cheio de seiva, cheio de folhas, e cheio de ramos: mas agora, em vão tenta a ocupada arte humana porfiar com a natureza, amarrando esse seco feixe de gravetos a seu tronco sem seiva: agora ele é, quando muito, nada mais que o reverso daquilo que já foi, uma árvore posta ao contrário, os ramos no chão, e a raiz no ar; agora ele é manuseado por qualquer criada, condenado a fazer para ela um trabalho monótono, e, por conta de um destino caprichoso, destinado a limpar outras coisas, permanecendo ele mesmo deplorável: depois de um largo período, reduzido a um toco pelo serviço das empregadas, ele é ou jogado fora, ou condenado a um último uso, avivando alguma chama. Quando contemplei tal coisa, suspirei, e disse para mim mesmo, “certamente o homem é como um Cabo de Vassoura!” A natureza o mandou ao mundo forte e cheio de vida, em pleno desenvolvimento, com seu próprio cabelo na cabeça, conveniente folhagem desse vegetal racional, até que o machado da intemperança venha cortar seus ramos e deixá-lo com um tronco seco: ele então volta-se para as artes, põe uma peruca, se auto-valorizando com um cacho de cabelo artificial (e com o rosto todo coberto de pó), cabelo que não cresceu em sua cabeça; mas agora que nosso cabo de vassoura pretende entrar em cena, orgulhoso das características de faia que nunca teve, e todo coberto de poeira, apesar da limpeza empreendida no quarto da mais fina dama, devemos estar aptos a ridicularizar e desprezar sua vaidade. Como somos juízes parciais de nossas próprias excelências e dos defeitos dos outros!

Mas um cabo de vassoura, talvez, você dirá, é um emblema de uma árvore de cabeça para baixo; quanto ao homem, não passa de uma criatura invertida, suas faculdades animais perpétuamente instaladas em sua racionalidade, sua cabeça onde os calcanhares deveriam estar, humilhando-se sobre a terra! E mesmo assim, com todos os defeitos, ele ergue-se para ser um reformador universal e corretor de abusos, um eliminador de ofensas, que limpa todo canto prostituído da natureza, trazendo corrupções escondidas à luz, e levanta uma poderosa poeira onde antes não havia nenhuma; sempre compartilhando profundamente da poluição que ele pretende varrer; seus últimos dias são consumidos sob a escravidão de mulheres, e geralmente sob as que menos merecem; até que, reduzido a um toco, ele é ou chutado fora, ou usado para avivar chamas ao redor das quais outros podem se aquecer.

Jonathan Swift

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

JACQUELINE DU PRÉ - «Suite fur Violoncelo»

Poet'anarquista

Jacqueline du Pré
Violoncelista Britânica

terça-feira, 18 de outubro de 2016

OUTROS CONTOS

«O Poema», conto poético por Casimiro de Brito.

«O Poema»
Por Casimiro de Brito

902- «O POEMA»

O problema não é
meter o mundo no poema; alimentá-lo
de luz, planetas, vegetação. Nem
tão pouco
enriquecê-lo, ornamentá-lo
com palavras delicadas, abertas
ao amor e à morte, ao sol, ao vício,
aos corpos nus dos amantes –

 o problema é torná-lo habitável, indispensável
a quem seja mais pobre, a quem esteja
mais só
do que as palavras
acompanhadas
no poema.

Casimiro de Brito

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...
(Tão somente, o melhor de sempre ao piano)

FRÉDÉRIC CHOPIN - «The Best Of»
Poet'anarquista

Retrato de Frédéric Chopin
(Por Eugène Delacroix)
Pianista e Compositor Polonês-Francês

OUTROS CONTOS

«Cidade Líquida», por João Tordo.

«Cidade Líquida»
Por João Tordo

901- «CIDADE LÍQUIDA»

Nos meus últimos dias em casa com a mulher que deixou de ser minha lembrei-me, em diversas ocasiões, de Roque dos Santos. Tínhamo-nos conhecido em Veneza, no princípio do Verão, num restaurante à beira da água. Eu apresentara-me descaradamente; ele, debruçado sobre esparguete com anchovas, respondera com educação. Depois passámos uma tarde inteira a beber e, no final, reflectindo nas coisas que com ele descobri, decidi separar-me. Essa história existe e está contada algures, num molho de papéis perdidos. Uma noite, deitado no sofá do escritório que eu improvisara no quarto desocupado que havíamos reservado para a chegada de um improvável filho, vi um longo documentário sobre os Beatles. O documentário durava quase oito horas; passei a noite acordado. 

Cheguei à conclusão de que Roque fazia-me lembrar George Harrison (ou talvez fosse George Harrison quem fizesse lembrar Roque, embora o músico tivesse uma bondade no olhar completamente ausente dos olhos do realizador). Concluí, mais tarde, que era a maneira de falar que me recordava de Roque: a voz ligeiramente arrastada e depois rematando as palavras mais importantes; também o formato das sobrancelhas e a expressão de alguma ausência. Na verdade, não havia nada de especial em Roque. Mas o que haveria de especial em Harrison? Roque era baixo, despenteado, carrancudo, tinha a barba sempre por fazer; era igual a milhares de homens que todos os dias passavam na rua. E, contudo, eu via-o em toda a parte, destacado, como uma coisa iluminada no meio de um corredor escuro. Via-o na esquina e no café; via-o no metropolitano e na barbearia. Um dia acordei de manhã e vi-o no espelho da minha casa de banho. O meu coração saltou e disse um palavrão. Depois tapei a boca para não acordar a minha mulher. No espelho estava apenas eu, ou a minha imagem, porém, durante a fracção de um momento, esta parecera estar sobreposta por outra, um rosto sobre um rosto, ou o meu rosto sobre uma sombra que habitava o espelho do outro lado. 

Roque tinha estado ali durante um fugaz momento e, depois, desaparecera deixando um rasto sinistro de si mesmo. Numa outra noite fui a uma loja e comprei o filme Cidade Líquida. Revi-o sozinho, depois de jantar em pé, ao balcão da cozinha. A minha mulher não estava em casa, mas preferi vê-lo no escritório, de porta fechada. Pensei, enquanto via as imagens a preto e branco saturadas que apareciam no pequeno ecrã de uma televisão antiga, que a memória sofre distorções incompreensíveis mesmo para aqueles que se consideram sãos (como eu me julgava então) e que essas distorções reforçam apenas o sentimento de que a vida é uma ficção escrita diariamente na qual tudo se torce e retorce de acordo com a vontade de alguém. Alguém que não somos nós; que não podemos ser nós. Se o homem busca a verdade e no interior do homem habita a verdade, então no interior do homem existe também uma cortina que a oculta. O filme era completamente diferente do que eu recordava. Agora tinha a certeza (mas teria?) de que era o primeiro filme que vira com a minha mulher, pois só a promessa de um amor pode alterar de forma tão significativa uma evocação. 

José Duchamp e Teresa Worthless — que, no filme, chamavam-se José e Teresa — eram, de facto amantes, embora a inundação progressiva da cidade não fosse provocada pelo amor, mas sim pelo desamor. Há poucos diálogos, quase nenhuns: é uma história de fugas e perseguições. José segue Teresa pela cidade, uma Veneza desabitada tão diferente daquela que eu conhecera, e via-a encontrar-se com outro homem. Num beco escuro, enquanto José observa, Teresa põe-se de joelhos e faz sexo oral a esse homem, um estrangeiro de pele escura e barba cerrada. O chão está coberto de água e ouvimos o chapinhar dos joelhos dela e a respiração pesada do homem. Noutro momento, entra numa igreja branca e cospe sobre as imagens dos santos; com as unhas arranha a talha dourada. José, aparentemente religioso, senta-se ao fundo da nau e persigna-se. Noutras vezes, Teresa persegue José, sem sabermos o porquê da mudança de perspectiva. José entra em vários bares e bebe desesperadamente, como se tentasse anular a realidade; não é claro que o actor não esteja, de facto, a beber. Depois deambula ao acaso, caindo às esquinas e para cima dos transeuntes. Teresa observa-o à distância e não intervém, mesmo quando um homem sentado num degrau, no qual José tropeça pela segunda vez, se levanta e o agride com um soco violento. Essa cena termina com o actor num beco escuro e inundado, em tijolo de pedra, onde cai redondo e adormece, a água tapando-o até ao pescoço. No plano seguinte, José está a correr por uma rua estreitíssima e ouvem-se as vozes iradas de um grupo que o persegue: roubou uma carteira a um de três homens de aparência árabe. Teresa corre atrás do grupo, desesperada, como se fugisse de uma espécie de morte, mas as vozes evadem-se e desaparecem na noite aquática e perde-os de vista. Ficamos com ela, sozinha, no meio de uma praça deserta. José e Teresa: o único objectivo dos amantes parece ser magoarem-se e magoarem-se novamente, até o destino estar cumprido. E, novamente, a cortina que oculta a verdade. O final, ou destino, ou o único momento que parecem verdadeiramente partilhar, abraçados em torno do campanário de uma igreja enquanto a água toma a cidade, era também ele distinto da minha recordação. José e Teresa não se beijam. Ficam a olhar-se com alguma coisa parecida com desprezo, mas também com a dor demencial da perda: a perda do outro, a perda do tempo, a perda do tempo de vida. Deixei o genérico passar até ao final mas devo ter adormecido antes de terminar porque, de madrugada, despertei com a chuva e o restolho de um ecrã ligado sem qualquer sinal à Terra. 

Encontrei um apartamento na Baixa da cidade. Era um quinto andar na Rua dos Correeiros, umas águas-furtadas com cheiro a mofo e a gás canalizado. Quando disse à senhoria a minha profissão ela olhou-me com suspeita. Professor de quê? De Filosofia. E quer vir para aqui? Quero. Vai-se a ver e quer é estar sozinho com as suas filosofias. A preocupação da senhora, praticamente uma anciã, era compreensível. O prédio parecia quase desabitado; à noite, a Baixa variava entre um silêncio próprio dos túmulos e os gritos de dor existencial de um ou outro bêbedo desgovernado que rompiam o negrume das minhas noites pombalinas. A porta do prédio era gigante, quase desmesurada para a força de um homem: tinha uma chave enorme, grande como um badalo, como se guardasse a masmorra de um dragão, que fazia rodar uma pesada fechadura. A porta chiava e chiava. Não havia elevador, e as escadas eram bafientas e esburacadas. Havia muito tempo que aquele prédio morrera, mas era como um espírito ignorante da sua própria morte. Só tinha um vizinho. Ele vivia no andar por cima do meu e tomava vários banhos de imersão por dia. Ou, pelo menos, era isso que eu presumira. Ao final da tarde, quando a cidade escurecia de tristeza, a água começava a correr e corria durante uma ou duas horas, talvez mais. Depois escutava o gotejar incessante da água nos canos. 

Pingava a noite toda e penetrava- -me os sonhos. Uma noite, depois de eu chegar a casa da escola, prestes a matar Espinoza e a amaldiçoar Kant, tocaram à porta. Levantei-me do sofá onde adormecia um sonho proscrito e fui abrir. À porta estava um mensageiro que me entregou um telegrama cantado. 

Enquanto o homem dançava e batia palmas não pude deixar de imaginar o que seria ter aquela profissão; deu-me vontade de chorar. O recado era de Roque dos Santos, convidando-me para uma projecção em sua casa. Não fazia ideia de como saberia ele onde eu viva; também não o perguntei ao mensageiro, que parecia um rapaz à beira do abismo. A mensagem convidava-me para a projecção de um filme em casa do realizador. Cheguei mais cedo do que devia. Toquei à campainha. Roque abriu a porta em cuecas, coçando com a mão direita o peito encovado, o cabelo comprido todo despenteado. 

Harrison, pensei. Disse-me para entrar e desapareceu por um corredor escuro. Fui na direcção da luz. 

Embora fosse noite lá fora, a sala, iluminada por um ecrã gigante no qual passavam imagens desfocadas de ruas, imitava a claridade de uma manhã de Inverno. Havia uma mulher sentada num sofá. Apresentei-me e, depois, julguei reconhecê-la, embora somente os olhos me fossem familiares. 

Lembrei-me de uma praça deserta e do chapinhar da água: eram os olhos de Teresa Worthless. 

Contudo, tudo o resto mudara nela, como se o tempo fosse uma onda catastrófica de detritos que cortam e rasgam; o rosto, outrora belo, era agora uma máscara de crueldade, apertada por uma maquilhagem excessiva; os lábios gritavam vermelho, as comissuras gretadas; o nariz, como sempre sucede com a idade, tornara-se mais pequeno e frágil, a cartilagem parecendo querer furar a pele; o cabelo era palha negra e armada, sem sinal de movimento. Mas os olhos permaneciam os mesmos. 

Fiz umas quantas perguntas mas a mulher limitou-se a acender um cigarro atrás do outro, apagando as beatas manchadas de batom num cinzeiro que mantinha ao colo. Perguntei-me por Roque, mas não havia sinal dele. Cedo a casa começou a encher-se de gente. Ninguém abria a porta e também ninguém tocava: bastava empurrar, a porta encontrava-se aberta. Um homem gordo e calvo trouxe um projector e, depois de o montar, começou a passar um filme de Roque dos Santos que se chamava O Homem da Linha Eléctrica. O filme era a cores, mas as cores estavam desbotadas, quase mortas; folhas decadentes no Outono, sem futuro. Não tinha história. Limitava-se a seguir o dia-a-dia de um homem que subia aos postes de electricidade e manipulava os fios com várias ferramentas. Depois ia para casa, jantava sozinho, dormia e, no dia seguinte, tornava a fazer o mesmo. Era difícil dizer se o filme era ficção ou um documentário. Ninguém parecia prestar atenção à projecção. A sala estava cheia, quase demasiado cheia, de gente mais nova do que eu, certamente mais nova do que Roque dos Santos. Ninguém parecia importar-se com a ausência do anfitrião: bebiam das garrafas e conversavam muito alto, abafando os sons minimalistas do filme. Procurei por Teresa Worthless no sofá e não a encontrei; presumi que, com a chegada dos convivas, tivesse decidido partir. Quando dei por mim estava encostado à parede, espremido por corpos, procurando desesperadamente não entornar um copo de cerveja. As pessoas não paravam de chegar e, a certa altura, vi uma rapariga desmaiar do sufoco. Em redor dela abriu-se uma clareira e, depois, foi levada em ombros para a rua. 

Senti que não conseguia respirar: uma mulher muito grande, vestida de veludo púrpura, apertava-me como se eu não existisse ou fosse um pedaço de mobília. A muito custo atravessei a sala. Cheirei perfumes nauseabundos e o suor dos homens. No ecrã, a personagem da linha eléctrica despertava. 

Avancei na direcção do corredor. Quando entrei nele, o barulho ensurdecedor da sala pareceu desvanecer-se. A escuridão era completa. Tacteei as paredes frias; a sensação, na ponta dos dedos, foi reconfortante. Encontrei uma porta e abri-a. Dava para um quarto na penumbra; através de uma janela alta entrava a luz distante de um candeeiro de rua. Vi uma cama desarrumada e alguns livros espalhados pelo chão. Chamei: Roque. Estou aqui, respondeu ele. A voz surgiu da direcção do armário. Aproximei-me: as portas estavam fechadas. Dentro do armário? Sim, disse a voz. O que estás aí a fazer? Estou escondido, respondeu ele. A ver se me encontravam! Encontrei-te, disse-lhe, sentindo-me ridículo. E o filme?, perguntou ele. Uma linha de fumo emergiu do interstício das portas; Roque fumava lá dentro. Não consegui ver todo. Está muita gente. Canalhas, resmungou. Encontrei a Teresa, disse-lhe. Mas foi-se embora. Quem? Uma nova linha de fumo emergiu do interior do armário; aproximei-me e respirei-a. A actriz de Cidade Líquida. A Teresa Worthless, insisti. Uma batida forte e seca na madeira do armário fez-me dar um salto para trás. Idiota, disse ele. A Teresa morreu há mais de dez anos. Cancro do pulmão. Desculpa, lamentei. Era uma mulher muito parecida com ela. Estava sentada na sala quando cheguei. Não havia ninguém na sala quando chegaste. Então era um fantasma. Então era um fantasma, concordou ele. A porta do armário abriu-se de repente e, do interior, surgiu a mão de Roque dos Santos. Levei um estalo com alguma força, uma chapada de mão aberta que me deixou atordoado durante uns segundos. A porta do armário fechou-se imediatamente a seguir e, poucos segundos depois, Roque dos Santos ressonava no interior. De repente senti-me muito cansado, como se tivesse atravessado um deserto ou pernoitado num campo de batalha. Sentei-me no chão, de costas para o armário, observando a luz do candeeiro de rua que, lá fora, morria de intermitência. Pensei, sem saber porquê, na minha mulher. Pensei que, tal como Teresa, também ela era uma ilusão de realidade, uma inconsistência; um equívoco no frágil tecido das coisas. Os sons desapareceram todos e fez-se silêncio. Uma brisa entrou pela janela aberta e, pela primeira vez em muito tempo, senti frio. O Verão chegava ao fim. Fechei os olhos e adormeci. Quando acordei ainda era noite: pé ante pé, saí do quarto, escutando ainda o ressonar distante do outro, atravessei o corredor escuro, desembarquei na sala que estava vazia e cheirava a fumo, a álcool e a suor. O projector permanecia ligado, a brancura projectada na parede tremia. Quando saí para a rua começou a chover, uma chuva fria que anunciava uma estação de melancolia. Cidade Líquida, ocorreu-me, e sorri. Era a minha estação preferida.

João Tordo

domingo, 16 de outubro de 2016

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

ART BLAKEY - «Abdallah's Delight»

Poet'anarquista

Art Blakey
Baterista Norte-Americano

OUTROS CONTOS

«Lucifécit», conto poético por Manel d' Sousa.

«Lucifécit»
Foto: Nuno Mendes

900- «LUCIFÉCIT»

Surgiu ao entardecer
Lucifécit das profundezas…
Ninguém nas redondezas
Que o pudesse aborrecer.
Resolveu permanecer
No silêncio da noite,
Pra que em paz pernoite
Até outro dia despontar…
Nem mesmo com luar,
Tem alma que se afoite!

Manel d’ Sousa

sábado, 15 de outubro de 2016

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

FELA KUTI - «My Lady Frustation»

Poet'anarquista

Fela Kuti
Multi-Instrumentista e Compositor Nigeriano

OUTROS CONTOS

«Lágrimas, Não», conto poético por Mário Castrim.

(Último poema de Mário Castrim, escrito uma semana antes do seu falecimento)

«Lágrimas, Não»
Caricatura de Mário Castrim

899- «LÁGRIMAS, NÃO»

Lágrimas, não. Lágrimas, não. A sério –
Enfim, não digo que. É natural.
Mas pronto. Adeus, prazer em conhecer-vos .
Filhos, sejamos práticos, sadios.

Nada de flores. Rigorosamente.
Nem as velas, está bem? Se as acenderem
Sou homem para me levantar e vir
soprá-las, e cantar os «parabéns».

Não falem baixo: é tarde para segredos.
Conversem, mas de modo que eu também
oiça, e melhor a grande noite passe.

Peço pouco na hora desprendida:
Fique eu em vós apenas como se
Tudo não fosse mais que um sonho bom.

Mário Castrim

sexta-feira, 14 de outubro de 2016

OUTROS CONTOS

«O Passa-Paredes», por Marcel Aymé.

«O Passa-Paredes»
Por Marcel Aymé

898- «O PASSA-PAREDES»

[Pequeno Excerto]

“Havia em Montmartre, no terceiro andar do 75-A da Rua d’Orchampt, um excelente homem chamado Dutilleul que possuía o dom singular de passar através das paredes sem o menor incómodo. Usava lunetas, uma pequena barbicha preta, e era funcionário de terceira classe no Ministério dos Registos. No Inverno ia para o emprego de autocarro, e quando chegava o bom tempo fazia o trajecto a pé, sob o seu chapéu de coco.

Dutilleul acabara de entrar no quadragésimo-terceiro ano quando teve a revelação do seu poder. Certa noite, surpreendido no vestíbulo do pequeno apartamento de solteiro por uma curta falha de electricidade, pôs-se a tactear nas trevas e, assim que a corrente voltou, viu-se no patamar do terceiro andar. Como a porta estava fechada por dentro, o incidente fê-lo reflectir e, desafiando as objecções da razão, decidiu-se a entrar como tinha saído, passando através da parede. Esta estranha faculdade, que parecia não responder a nenhuma das suas aspirações, não deixou de o contrariar um pouco e, no sábado seguinte, aproveitando a semana inglesa, foi ver um médico do bairro para lhe expor o caso. O médico pôde verificar ser verdade o que lhe dizia e, depois de o ter examinado, descobriu a causa do mal num endurecimento helicoidal do revestimento estrangular do corpo tiroideu. Receitou-lhe o excesso de trabalho e, à razão de dois comprimidos por ano, a absorção de pó de pireta tetravalente, mistura de farinha de arroz e de hormona de centauro.

Depois de tomar um primeiro comprimido, Dutilleul guardou o medicamento numa gaveta e não pensou mais no caso. Quanto ao excesso de trabalho, a sua actividade de funcionário regulava-se por usos que em nada se prestavam a qualquer excesso, e as horas livres, consagradas à leitura do jornal e à colecção de selos, tão-pouco o obrigavam a um imoderado dispêndio de energia. Ao fim de um ano, tinha pois mantido intacta a faculdade de passar através das paredes, mas nunca a utilizava, a não ser por inadvertência, sendo pouco dado a aventuras e refractário aos transportes da imaginação. Não lhe aflorava sequer a ideia de entrar em casa de outro modo que não fosse pela porta e só depois de devidamente aberta com intervenção da fechadura. Poderia talvez ter envelhecido na paz dos seus hábitos sem sentir a tentação de pôr à prova os seus dons, não fosse um acontecimento extraordinário ter vindo subitamente perturbar-lhe a existência. O Sr. Mouron, sub-chefe da repartição, chamado a outras funções, foi substituído por um tal Sr. Lécuyer, que tinha a palavra breve e um bigode à escovinha. Desde o primeiro dia, o novo sub-chefe não viu com bons olhos que Dutilleul usasse lunetas de corrente e barbicha preta, e tratava-o ostensivamente como uma velharia importuna e algo indecorosa. Mas o mais grave é que se propôs introduzir no serviço reformas de uma certa envergadura e destinadas a perturbar a quietude do subordinado. Havia já vinte anos que Dutilleul começava as cartas pela fórmula seguinte: “Em referência à estimada carta de Vª Exª de tantos do corrente e tendo presente a nossa troca de correspondência anterior, tenho o prazer de informar Vª Exª…” Fórmula essa que o Sr. Lécuyer entendeu substituir por outra com um ar mais americano: “Em resposta à sua carta de tantos do tal, temos a informar que…” Dutilleul não pôde acostumar-se a estes termos epistolares. Mau grado seu, voltava à sua maneira tradicional, com uma obstinação maquinal que lhe valeu a inimizade crescente do sub-chefe. A atmosfera do Ministério dos Registos tornava-se-lhe quase penosa. De manhã, dirigia-se para o trabalho apreensivo, e à noite, na cama, acontecia-lhe frequentemente ficar a meditar um quarto de hora inteiro antes de pegar no sono.

Desalentado por esta determinação retrógrada que comprometia o sucesso das suas reformas, o Sr. Lécuyer relegara Dutilleul para um cubículo meio às escuras, contíguo ao seu gabinete. Tinha por entrada uma porta baixa e estreita que dava para o corredor e que exibia ainda em letras maiúsculas a inscrição: Arrecadação. Dutilleul aceitara de ânimo resignado esta humilhação sem precedentes, mas em casa, ao ler no jornal o relato de um qualquer episódio sanguinolento, surpreendeu-se a imaginar o Sr. Lécuyer como sendo a vítima.”

(…)

Marcel Aymé