«Domingo à Tarde»
Romance de Fernando Namora
961- «DOMINGO À TARDE»
[fragmento]
Pedia-me aqueles nadas que reanimam uma vida. Enfim: a torpe
ilusão de que poderia haver um erro ou uma possibilidade.
Mas nem só Clarisse
necessitava dessa ilusão, embora fosse eu, que também dela necessitava, a
última pessoa que a doença pudesse burlar. Não era apenas a magreza, o
embaciado amarelento da face, os olhos que começavam a parecer desmedidos,
isolados numa paisagem desabitada: as próprias feições se tinham alterado.
A
gente percebia-lhe, com uma ácida e progressiva nitidez, a corrupção. No
entanto, à medida que essa decadência se acentuava, menos eu a queria admitir.
Pela primeira vez, por assim dizer, nessa revolta das vísceras, eu fazia a violenta
descoberta da morte – através de uma pessoa viva.
Durante as minhas longas
vigílias de cigarros trespassava-me o eco de longínquas vozes.
Fernando Namora
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