terça-feira, 31 de janeiro de 2017

OUTROS CONTOS

«Domingo à Tarde», por Fernando Namora.

«Domingo à Tarde»
Romance de Fernando Namora

961- «DOMINGO À TARDE» 

[fragmento]
         
Pedia-me aqueles nadas que reanimam uma vida. Enfim: a torpe ilusão de que poderia haver um erro ou uma possibilidade. 

Mas nem só Clarisse necessitava dessa ilusão, embora fosse eu, que também dela necessitava, a última pessoa que a doença pudesse burlar. Não era apenas a magreza, o embaciado amarelento da face, os olhos que começavam a parecer desmedidos, isolados numa paisagem desabitada: as próprias feições se tinham alterado. 

A gente percebia-lhe, com uma ácida e progressiva nitidez, a corrupção. No entanto, à medida que essa decadência se acentuava, menos eu a queria admitir. 

Pela primeira vez, por assim dizer, nessa revolta das vísceras, eu fazia a violenta descoberta da morte – através de uma pessoa viva. 

Durante as minhas longas vigílias de cigarros trespassava-me o eco de longínquas vozes.

Fernando Namora

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