sexta-feira, 31 de outubro de 2014

«A ÁGUA» - SEPTILHAS POR BOCAGE

O erotismo presente na poesia de Manuel Maria de Barbosa l'Hedois du Bocage...
Poet'anarquista
«A Água»
Septilhas por Bocage


«A ÁGUA»

(Septilhas) 

Meus senhores eu sou a água
que lava a cara, que lava os olhos
que lava a rata e os entrefolhos
que lava a nabiça e os agriões
que lava a piça e os colhões
que lava as damas e o que está vago
pois lava as mamas e por onde cago. 

Meus senhores aqui está a água
que rega a salsa e o rabanete
que lava a língua a quem faz minete
que lava o chibo mesmo da raspa
tira o cheiro a bacalhau rasca
que bebe o homem, que bebe o cão
que lava a cona e o berbigão.

Meus senhores aqui está a água
que lava os olhos e os grelinhos
que lava a cona e os paninhos
que lava o sangue das grandes lutas 
que lava sérias e lava putas
apaga o lume e o borralho
e que lava as guelras ao caralho 

Meus senhores aqui está a água
que rega rosas e manjericos
que lava o bidé, que lava penicos
tira mau cheiro das algibeiras
dá de beber ás fressureiras
lava a tromba a qualquer fantoche 
e lava a boca depois de um broche.

Bocage

SÉTIMA ARTE

No dia 20 de Janeiro de 1920, em Rimini nasce Federico Fellini, um dos mais importantes cineastas italianos que ficou célebre pela poética dos seus filmes. Até nas contundentes críticas que fez à sociedade, nunca deixou a magia do cinema desaparecer. Fellini faleceu em Roma, a 31 de Outubro de 1993 .
Poet'anarquista
Federico Fellini
Cineasta Italiano

«Retrato de Federico Fellini»
DenisM79
SOBRE O CINEASTA ...

A revista italiana de humor "Marc Aurélio", em Florença, publicou as primeiras caricaturas assinadas por Federico Fellini, que, a partir de 1939, fez também pequenos roteiros e piadas para comediantes. Mas o seu primeiro grande trabalho, em 1945, foi escrever parte do roteiro de "Roma, Cidade Aberta", do cienasta Roberto Rossellini, filme considerado o manifesto do cinema neo-realista. Fellini participou também do filme seguinte de Rossellini, "Paisà" (1946), como co-roteirista e assistente de direcção.

Esse foi o início de sua carreira no cinema, como co-roteirista e colaborador também dos directores Alberto Lattuada e Pietro Germi. A sua estreia como co-director foi ao lado de Lattuada, em "Mulheres e Luzes" (1950). Em seguida, fez o seu primeiro filme, "Abismo de um Sonho" (1951), no qual a influência do realismo já começa a ser substituída pelo clima de sonho que caracterizou a sua obra.

Apesar do início como roteirista, Fellini dizia ser uma pena passar por palavras o que deveria saltar da sua imaginação para o filme. Por isso, gostava de improvisar, de actores não profissionais e de evitar a rotina de trabalho. Como Dario Fo, muitas vezes ele também desenhava as suas cenas antes de escrevê-las.

O primeiro filme polémico tanto entre católicos quanto comunistas foi o sucesso "A Estrada da Vida" (1954), com a sua mulher, a actriz Giulietta Masina, Anthony Quinn e Richard Basehart. A obra lhe rendeu o primeiro Óscar de filme estrangeiro. A segunda estatueta foi por "As Noites de Cabíria" (1957), e o terceiro por "Oito e Meio" (1963).

Mas nada o preparou para o sucesso e o escândalo de "A Doce Vida" (1959). O diário oficial da Igreja Católica, L'Osservatore Romano, clamou: "Basta!". Porém, o filme deu a Fellini a Palma de Ouro em Cannes, em 1960. Além de criticar a ligação entre o estado e o catolicismo, a obra ficou famosa pelo desempenho de colaboradores de Fellini: o compositor Nino Rota, e os actores Marcello Mastroianni e Anita Ekberg - a cena do banho na Fontana di Trevi em Roma é um dos ícones do cinema ocidental.

Poucos autores tiveram um estilo tão característico. Tanto que, por motivos mercadológicos, seu nome foi colocado no título de filmes como "Fellini Satyricon" (1969), "Roma de Fellini" (1972) e "Casanova de Fellini" (1976). O director nunca negou ter feito filmes autobiográficos, mas "Amarcord" (Eu me recordo, em dialeto), de 1973, é o que mais claramente resultou como uma mistura de sonhos e lembranças.

Em o Ensaio de Orquestra (1979), o cineasta fez uma auto-análise como director de pessoas e ao mesmo tempo reflecte sobre a união das várias províncias italianas, num momento em que o Norte da Itália falava em separar-se do Sul. Seus últimos filmes tornaram-se cada vez mais oníricos: "Cidade das Mulheres" (1980), "E la Nave Va" (1983), "Ginger e Fred" (1985) e "A Voz da Lua" (1990).
Fonte: UOL Educação
«La Dolce Vita»
Federico Fellini

«Amarcord»
Federico Fellini

«E La Nave Va»
Federico Fellini

«SÉTIMA ARTE»

FEDERICO FELLINI

MÚSICAS DO MUNDO

E a Música de Hoje é ...

WILLIAM COULTER & FRIENDS
«O Plano Terreno / La Rotta»

OUTROS CONTOS

«Caso de Chá», por Carlos Drummond de Andrade.

«Caso de Chá»
Maconha

314- «CASO DE CHÁ»

A casa da velha senhora fica na encosta do morro, tão bem situada que ali se aprecia o bairro inteiro, e o mar é uma de suas riquezas visuais. Mas o terreno em volta da casa vive ao abandono. O jardineiro despediu-se há tempos; hortelão, não se encontra nem por milagre. A velha moradora resigna-se a ver crescer a tiririca na propriedade que antes era um brinco. Até cobra começou a passear entre a folhagem, com indolência; é uma cobrinha de nada, mas sempre assusta.

O verdureiro que faz ponto na rua lá em baixo ofereceu-se para matá-la. A boa senhora reluta, mas não pode viver com uma cobra tomando banho de sol junto ao portão, e a bicha é liquidada a pau. Bom rapaz, o verdureiro, cheio de atenções para com os fregueses. Na ocasião, um problema o preocupa: não tem onde guardar à noite a carrocinha de verduras.

 – Ora, o senhor pode guardar aqui em casa. Lugar não falta. – Muito agradecido, mas vai incomodar a madame.
 – Incomoda não, meu filho.

A carrocinha passa a ser recolhida nos fundos do terreno. Todas as manhãs o dono vem retirá-la, trazendo legumes frescos para a gentil senhora. Cobra-lhe menos e até não cobra nada. Bons amigos.

– Madame gosta de chá?
– Nâo posso tomar, me dá dispepsia, me põe nervosa.
– Pois eu sou doido por chá. Mas está tão caro que nem tenho coragem de comprar. Posso fazer um pedido? Quem sabe se a madame, com esse terreno todo sem aproveitar, não me deixa plantar uns pés, pouquinha coisa, só para o meu consumo?

Claro que deixa. Em poucas horas o quintal é capinado, tudo ganha outro aspecto. Mão boa é a desse moço: o que ele planta é viço imediato. A pequenina cultura de chá torna alegre outra vez a terra abandonada. Não faz mal que a plantação se vá estendendo por toda a área. A velha senhora sente prazer em ajudar o bom lavrador. Alegando que precisa fazer exercício, caminhando com cautela pois enxerga mal, ela rega as plantinhas, que lhe agradecem a atenção prosperando rapidamente.

– Madame sabe: minha intenção era colher só uma pequena quantidade. Mas o chá saiu tão bom que os parentes vivem me pedindo um pouco e eu não vou negar a eles. É pena madame não experimentar. Mas não aconselho: se faz mal, não deve mesmo tocar neste chá. O filho da velha senhora chegou da Europa esta noite. Lá ficou anos estudando. Achou a mãe lépida, bem disposta.
– E eu trabalho, sabe, meu querido? Todos os dias rego a plantação de chá que um moço me pediu licença para fazer no quintal. Amanhã de manhã você vai ver a beleza que está.

O verdureiro já havia saído com a carrocinha. A senhora estende o braço, mostra com orgulho a lavoura que, pelo esforço em comum, é também um pouco sua. O filho quase caiu duro:

– A senhora está maluca? Isso nunca foi chá, nem aqui nem na Índia. 
Isso é maconha, mamãe!

Carlos Drummond de Andrade

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

CARTOON versus OITAVA

El Malabarista

HenriCartoon

«EL MALABARISTA»

Eis «Regra de Ouro» à vista:
1º tiro- submarino afundado…
Em equilíbrio «el malabarista»
Com o Orçamento d’Estado!
2º tiro- neste um especialista
Vai mudando a letra ao fado…
É tão abundante a demagogia
Que já não cabe nesta poesia!!

POETA

OUTROS CONTOS

«Despedida de Um Amigo», conto poético por Ezra Pound.

«Despedida de Um Amigo»
Despedida/ Max Beckmann

Por aqui- «PINTURA - MAX BECKMANN»

312- «DESPEDIDA DE UM AMIGO»

Serras azuis a norte das muralhas,
Um rio branco a serpentear por elas;
Aqui nos devemos separar
E seguir por mil milhas de erva morta,

A mente como ampla nuvem flutuante,
O pôr do sol como o adeus de velhos conhecidos
Que à distância se curvam de mãos postas.
Os nossos cavalos relincham um para o outro
 Quando nos afastamos.

Ezra Pound

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

BLUE CHEER - «Man of the Sun»
Man of the Sun by Blue Cheer on Grooveshark
Poet'anarquista

HOMEM DO SOL

Bem, eu nasci em pé
Eu vou morrer, quem estabelece
Eu sorrir como seu bebé
Senhor, eu choro como seu palhaço
Vos digo bebé
Estou completamente
Eu dou tudo por apenas pagar minhas dívidas

Porque eu sou um homem
E eu estou na corrida
Mas eu estou pagando através de minhas dívidas
Eu estou completamente com você

Por que, você pode rir o dia todo
Você pode chorar a noite toda
Me excite
Ou você pode desligar as minhas luzes
Falar sobre todas as suas preocupações e aflição
Vos digo bebé
Eu simplesmente não me importo mais!

Porque eu sou um homem
E eu estou na corrida
Eu estou pagando por minhas dívidas
Acho que estou completamente com você
Oh

Bem, eu nasci em pé
Eu vou morrer, quem estabelece
Eu sorrir como seu bebé
Senhor, eu choro como seu palhaço
Vos digo bebé
Agora eu sou toda
Eu dou tudo por apenas pagar minhas dívidas

Porque eu sou um homem
E eu estou na corrida
Mas eu estou pagando através de minhas dívidas
Eu estou completamente com você

Porque eu sou um homem em fuga
Porque eu sou um homem em fuga
Porque eu sou um homem em fuga
Tudo bem

Blue Cheer

«AS ROMÃS», SONETO DE PAUL VALÉRY

Por aqui:

«Romãs»
Pintura de Tanya Jansen

AS ROMÃS

Duras romãs entreabertas
Pelo excesso dos grãos de ouro,
Eu vejo reis, todo um tesouro
Nascer de suas descobertas!

Se os sóis de onde ressurgis,
Ó romãs de entrevista tez,
Vos fazem, prenhes de altivez,
Romper os claustros de rubis,

E se o ouro sece cede enfim
Ante a demanda ainda mais dura
E explode em gemas de carmim,

Essa luminosa ruptura
Faz sonhar uma alma que há em mim
De sua secreta arquitectura.

Paul Valéry

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

CARTOON versus OITAVA

A Rabecada
HenriCartoon

«A RABECADA»

Ouve, Chato: não me excluo
Dos trinta mil e tantos alunos,
Entre os quais eu me incluo
Com furos bem oportunos…
Sobre a burrice, isto concluo:
Deviam existir mais Nunos!
No que me toca, bué obrigado
Por seres burro ao quadrado!!

POETA

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

THE TOASTERS - «Now Or Never»
Now or Never by The Toasters on Grooveshark
Poet'anarquista

AGORA OU NUNCA

Quando você diz que me vai chutando para fora, isso é ok eu estou deixando
Porque eu sei o que é tudo sobre, ou por que você não acredita em mim
Eu tive-o com suas mentiras, eu não posso levá-la
Isto pode vir como uma surpresa, não ia fazer isso

Porque é agora ou nunca

Não há nenhum ponto em furar ao redor, ele apenas não faz sentido
Porque eu sempre achei, ele não vai fazer nenhuma diferença
E quando eu estou pendurado com os meninos, se não estou enganado
Você estará esperando no escuro, com um coração que está quebrando

Porque é agora ou nunca

E quando eu tentar resolver o problema, você não me vai dar crédito
Você gosta de carimbar e gritar, eu posso também esquecer
E é melhor você me dizer por que, eu não posso esperar para sempre
E é melhor que seja esta noite, porque é agora ou nunca ...

The Toasters

POEMA DE ADALGISA NERY

A 29 de Outubro de 1905 nasce a poetisa, jornalista e política brasileira, Adalgisa Nery.


Retrato de Adalgisa Nery
Cândido Portinari/ 1939

PENSAMENTOS QUE REÚNEM UM TEMA

Estou pensando nos que possuem a paz de não pensar,
Na tranquilidade dos que esqueceram a memória
E nos que fortaleceram o espírito com um motivo de odiar. 
Estou pensando nos que vivem a vida
Na previsão do impossível
E nos que esperam o céu
Quando suas almas habitam exiladas o vale intransponível. 
Estou pensando nos pintores que já realizaram para as multidões 
E nos poetas que correm indefinidamente
Em busca da lucidez dos que possam atingir
A festa dos sentidos nas simples emoções.
Estou pensando num olhar profundo
Que me revelou uma doce e estranha presença,
Estou pensando no pensamento das pedras das estradas sem fim
Pela qual pés de todas as raças, com todas as dores e alegrias
Não sentiram o seu mistério impenetrável,
Meu pensamento está nos corpos apodrecidos durante as batalhas
Sem a companhia de um silêncio e de uma oração,
Nas crianças abandonadas e cegas para a alegria de brincar,
Nas mulheres que correm mundo
Distribuindo o sexo desligadas do pensamento de amor, 
Nos homens cujo sentimento de adeus
Se repete em todos os segundos de suas existências,
Nos que a velhice fez brotar em seus sentidos
A impiedade do raciocínio ou a inutilidade dos gestos. 
Estou pensando um pensamento constante e doloroso
E uma lágrima de fogo desce pela minha face:
De que nada sou para o que fui criada
E como um número ficarei
Até que minha vida passe.

Adalgisa Nery

OUTROS CONTOS

«A Gargalhada», por Adalgisa Nery.

«A Gargalhada»
Mau Rapaz, por Eric Fischl

311- «A GARGALHADA»

— Não grita, por favor.

— Não estou gritando. Estou rindo.

— Falar alto ou gargalhar é a mesma coisa. É manifestação de animalidade que a minha natureza não suporta. Vocês conhecem a minha fascinação pelas mulheres. Nada para mim tem um poder de atração maior do que uma mulher. Porém a mulher mais linda, a mais perfeita, a mais fascinante, falando alto ou gargalhando, faz crescer em mim um ímpeto monstruoso e sinto que sou capaz de abrir com as mãos o seu pescoço. Fico desvairado; é uma repulsa incontida. Só os animais se expressam com alarido, só as criaturas desclassificadas, moral e espiritualmente, falam aos gritos e riem com a garganta. Já sabem, não gritem nem dêem gargalhadas perto de mim se não quiserem transformar-me num criminoso. Fico descontrolado com o barulho, seja ele qual for.

Gaspar e dois amigos conversavam num bar, de madrugada, onde a fumaça dos cigarros e o cheiro de álcool misturavam-se ao som de um piano tocado por dedos já. cansados e indiferentes ao ambiente.

André, de temperamento alegre, depois de tomar duas ou três doses de álcool, expandia-se em piadas de mau gosto, acompanhadas de estridentes gargalhadas.

O outro, Maurício, quase silencioso, observava demoradamente os freqüentadores do bar, Possuía um interesse especial por dois detalhes do corpo humano: mãos e nucas.

— Gaspar, você define e classifica as criaturas pelo falar alto e o gargalhar. Tem razão. Não pode haver inteligência nem condições espirituais numa pessoa que expressa suas alegrias e suas opiniões aos berros. Vocês dois criticam sempre a minha atitude quando em silêncio fico a maior parte do tempo com os olhos pregados nas mãos e na nuca das pessoas à minha frente. Eu explico. Gosto de definir, através das mãos e da nuca, a essência do indivíduo. Reparem, por exemplo, aquele sujeito sentado na mesa à nossa esquerda. Forçosamente tem de ser uma pessoa mesquinha, de fundo avarento, capaz de sujeiras frequentes nas vinte e quatro horas do dia. Está acompanhado de uma mulher que chama a atenção unicamente pela tristeza do olhar. O resto é comum e insignificante. O seu modo de trajar é suburbano. O seu olhar, entretanto, carrega pesadas humilhações e penas. O homem que a acompanha não vê nada disso que esmaga a pobre mulher.

— E você, Maurício, verificou a tristeza da mulher e a mesquinhez do caráter do homem pelas mãos dele, só pelas mãos? — perguntou André.

— Sim, pelas mãos. Observem seus gestos e a forma das suas mãos curtas e gordas, achatadas, de unhas minúsculas enterradas na carne, dedos cabeludos, pulsos cabeludos. Suas mãos, quando paradas, assemelham-se a aranhas adormecidas. São mãos asquerosas, devem ter uma transpiração abundante. Sempre molhadas de suor. Reparem nos seus gestos em curvas pequenas em direção à sua barriga, Parecem trazer as migalhas da mesa para o seu estômago. Nada em seu físico define com mais segurança a sua mesquinha personalidade do que as suas mãos.

— Você o conhece, para marcá-lo assim de maneira tão positiva?

— Não, nunca o vi. Mas desde que cheguei notei a sua repelente personalidade pelas suas mãos cabeludas, curtas e de movimentos repulsivos.

Enquanto Maurício falava sobre as suas observações, o homem reclamava aos brados, do garçom, uma insignificante quantia adicionada à nota das despesas. Dava a entender que o pagamento daquele mínimo excedente iria obrigá-lo a voltar a pé para casa.

A mulher que o acompanhava, de olhos baixos, sentia a humilhação de quem contribuíra para um grave problema financeiro do companheiro que a trouxera para o bar; como se reclamasse o preço excessivo da sua presença ao seu lado, A mulher somava tristezas.

Maurício olhou para os amigos com ar vitorioso de quem acerta no objetivo. 0 homem de mãos curtas e cabeludas exibira a sua essência.

— Vejam também agora a nuca deste sujeito que está sentado de costas para nós. Nuca pálida, enxundiosa, com o nascimento do cabelo muito alto e semelhante a uma franja rala. Nuca de homem tem de ser com o nascimento do cabelo no meio do pescoço, de fios grossos marcando vitalidade e decisão de atitudes. Desconfiem de todo homem que possuir uma nuca que sobe até o meio da cabeça. Não escapará de ser um indivíduo desleal, traiçoeiro, com tendência à vida sórdida, vivendo da exploração de mulheres.

— Ora, isso é bobagem. E os que não têm pescoço, os que não têm nuca, os que têm a cabeça. Diretamente pregada nos ombros, como são? — perguntou André já bastante alcoolizado.

— Bem, esses são os burros teimosos. Teimosos e vaidosos. Esses são perigosos. Sentem-se um deus de sabedoria e, se têm uma parcela de poder ou uma fortuna assegurada, entendem que têm o direito de arrasar com a humanidade, e que as suas opiniões estão na razão direta do seu dinheiro, Como já disse, esses sem pescoço são perigosos para a coletividade.

Nesse instante, Maurício chamou a atenção dos companheiros para o homem da nuca flácida.

— Reparem o que ele está fazendo e vejam como os meus estudos são infalíveis!

O homem recebia, sob a toalha da mesa, das mãos da mulher que o acompanhava, o dinheiro com que iria pagar as despesas feitas.

— Qual é a sua finalidade, Maurício, ao estudar e observar a personalidade das criaturas através dos detalhes das mãos e da nuca?

— A de definir para conhecer a essência das coisas. É um estudo como outro qualquer. É um divertimento. Meus estudos e observações não impedirão o nascimento de homens mesquinhos, sórdidos e de vidas repugnantes, eu sei. Mas cada vez que acerto nas minhas observações, mais vontade tenho de observar para acertar. É uma espécie de jogo comigo mesmo. O princípio da ignorância humana é o definir aquilo que se fala ou o que se prefere falar, sobre o que ainda não se sabe e nem se pode definir. Eu falo do que ainda não se pode definir. Tento chegar à ignorância humana.

— Por exemplo, o descontrole de Gaspar ao ouvir alguém gritar ou dar gargalhadas, parece-me uma reação intimamente ligada à sua sensibilidade. As suas impressões, as suas visões ou os seus ímpetos inesperados devem variar dependendo da sua receptividade brutalizada por risos estridentes e barulhos fortes. A reação da sensibilidade de cada pessoa pode encaminhar-se para o estoicismo ou para o crime. Conheci um rapaz que desde menino perdia a fala quando cercado de conversas tumultuosas ou de ruídos agudos. Permanecia completamente mudo por várias horas. Mas mudo mesmo. Trancava-se no quarto e entregava-se à leitura. A família desorientava-se com a sua mudez prolongada e repentina. A medicina não oferecia maiores explicações. A sua mudez era total e a sua audição também seguia o mesmo processo. No dia seguinte aparecia com a fala e a audição perfeitamente normais. Assustava-se, terrivelmente, quando ao longe percebia o ronco dos motores de um avião no céu. Quando o telefone tocava, se ele estivesse perto, corria para o quarto como um animal batido. Diziam que era um desequilibrado, mas essa conclusão foi posta por terra quando a família resolveu enviá-lo para uma fazenda no interior, onde ele só tinha contato com o silêncio. A solução foi afastá-lo de tudo e de todos na medida do possível. Durante esse período falava e ouvia normalmente, Interessante é que cantava canções de acalanto e a sua voz tinha uma sonoridade maravilhosa, o tumulto, os gritos, as conversas misturadas, as risadas, extinguiam instantaneamente a sua voz e a sua audição, mas voltavam perfeitas na substância do silêncio. Era por isso considerado um tipo estranho e enigmático. Ora, Gaspar deve estar incluído, sem saber, entre os raros que sofrem desse mesmo fenômeno. Daí o seu descontrole, a sua angústia, quando alguém a ao seu lado fala aos gritos ou dá estrondosas gargalhadas. Nota-se em Gaspar uma imediata transformação fisionómica, um ar desvairado, e não deve ser sem fundamentos que ele afirma a possibilidade de tornar-se um criminoso ao ouvir uma gargalhada.

Gaspar ouvia sem interromper Maurício, parecendo concordar com o diagnóstico do amigo.

Um grande silêncio envolveu a mesa dos três. Ao longe, rompendo a densidade da fumaça e o enjoativo cheiro de álcool que dominava o bar, o piano continuava tateado por mãos cansadas e indiferentes àquelas vidas gastando-se na madrugada. Vinda de um canto do bar, passou pela mesa dos três amigos uma mulher jovem. Não era bela nem feia. Era uma mulher de bar. Gaspar segurou-lhe o braço e indagou se estava sozinha. A mulher respondeu afirmativamente.

— Para onde vai?

— Para casa.

— Espere, vou com você.

Saíram os dois.

Num hotel barato, os outros hóspedes ouviram a porta de um quarto fechar-se. Depois o murmúrio de vozes do casal. De repente, uma gargalhada inundou o corredor do hotel. Outra gargalhada. Depois o silêncio absoluto.

Pela manhã, quando a arrumadeira iniciou o seu serviço, ao passar pelo quarto ocupado pelo casal da madrugada, viu pela porta entreaberta uma mulher nua, deitada na cama, tendo sobre a cabeça um travesseiro.

O seu corpo morto deixava fora do lençol um seio alvo e volumoso.

Adalgisa Nery

terça-feira, 28 de outubro de 2014

CARTOON versus SONETO

Suite Presidencial
HenriCartoon

«SUITE PRESIDENCIAL»

- Então Animal, você vai ou não vai
Condecorar o ex-ministro Trocas-te?
- Madia, sobde esse assunto nem um ai…
Ainda sou Pdesidente… acomoda-te!

- Mas eu sou Primeira Dama, Animal…
Entre nós, não há nada que esconder!
- Não falo sobde a minha vida pessoal…
Sobde esse assunto, nada a escladeced!...

E mais, Madia… sobde a condecodação
Dou assim este caso pod enceddado…
Não penso responded a essa questão!

- Mas Animal, é péssimo ficares calado!...
Provoca-te azia, seguida de indigestão…
Que seria de ti sem mim, ó Acabado?

Traduzindo...

«SUITE PRESIDENCIAL»

- Então Animal, você vai ou não vai
Condecorar o ex-ministro Trocas-te?
- Maria, sobre esse assunto nem um ai…
Ainda sou Presidente… acomoda-te!

- Mas eu sou Primeira Dama, Animal…
Entre nós, não há nada que esconder!
- Não falo sobre a minha vida pessoal…
Sobre esse assunto, nada a esclarecer!...

E mais, Maria… sobre a condecoração
Dou assim este caso por encerrado…
Não penso responder a essa questão!

- Mas Animal, é péssimo ficares calado!
Provoca-te azia, seguida de indigestão…
Que seria de ti sem mim, ó Acabado?

POETA

OUTROS CONTOS

«A Heteronímia», por Fernando Pessoa.

«A Heteronímia»
Génese dos Heterónimos

310- «A HETERONÍMIA»

“Começo pela parte psiquiátrica. A origem dos meus heterónimos é o fundo traço de histeria que existe em mim. Não sei se sou simplesmente histérico, se sou, mais propriamente, um histero-neurasténico. Tendo para esta segunda hipótese, porque há em mim fenómenos de abulia que a histeria, propriamente dita, não enquadra no registo dos seus sintomas. Seja como for, a origem mental dos meus heterónimos está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação. Estes fenómenos — felizmente para mim e para os outros — mentalizaram-se em mim; quero dizer, não se manifestam na minha vida prática, exterior e de contacto com os outros; fazem explosão para dentro e vivo-os eu a sós comigo. Se eu fosse mulher — na mulher os fenómenos histéricos rompem em ataques e coisas parecidas — cada poema de Álvaro de Campos (o mais histericamente histérico de mim) seria um alarme para a vizinhança. Mas sou homem — e nos homens a histeria assume principalmente aspectos mentais; assim tudo acaba em silêncio e poesia…

“Isto explica, tant bien que mal, a origem orgânica do meu heteronimismo. Vou agora fazer-lhe a história directa dos meus heterónimos. Começo por aqueles que morreram, e de alguns dos quais já me não lembro — os que jazem perdidos no passado remoto da minha infância quase esquecida.

“Desde criança tive a tendência para criar em meu torno um mundo fictício, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram. (Não sei, bem entendido, se realmente não existiram, ou se sou eu que não existo. Nestas coisas, como em todas, não devemos ser dogmáticos). Desde que me conheço como sendo aquilo a que chamo eu, me lembro de precisar mentalmente, em figura, movimentos, carácter e história, várias figuras irreais que eram para mim tão visíveis e minhas como as coisas daquilo a que chamamos, porventura abusivamente, a vida real. Esta tendência que me vem desde que me lembro de ser um eu, tem-me acompanhado sempre, mudando um pouco o tipo de música com que me encanta, mas não alterando nunca a sua maneira de me encantar.

“Lembro, assim, o que me parece ter sido o meu primeiro heterónimo, ou, antes, o meu primeiro conhecido inexistente — um certo Chevalier de Pas dos meus seis anos, por quem escrevia cartas dele a mim mesmo, e cuja figura, não inteiramente vaga, ainda conquista aquela parte da minha afeição que confina com a saudade. Lembro-me, com menos nitidez, de uma outra figura, cujo nome já não me ocorre mas que o tinha estrangeiro também, que era, não sei em quê, um rival de Chevalier de Pas… Coisas que acontecem a todas as crianças? Sem dúvida — ou talvez. Mas a tal ponto as vivi que as vivo ainda, pois que as relembro de tal modo que é mister um esforço para me fazer saber que não foram realidades.

“Esta tendência para criar em torno de mim um outro mundo, igual a este mas com outra gente, nunca me saiu da imaginação. Teve várias fases, entre as quais esta, sucedida já em maioridade. Ocorria-me um dito de espírito, absolutamente alheio, por um motivo ou outro, a quem eu sou, ou a quem eu suponho que sou. Dizia-o imediatamente, espontaneamente, como sendo de certo amigo meu, cujo nome inventava, cuja história acrescentava, e cuja figura — cara, estatura, traje e gesto — imediatamente eu via diante de mim. E assim arranjei, e propaguei, vários amigos e conhecidos que nunca existiram, mas que ainda hoje, a perto de trinta anos de distância, oiço, sinto, vejo. Repito: oiço, sinto, vejo… E tenho saudades deles.”

Fernando Pessoa 
(in Carta a Adolfo Casais Monteiro sobre a génese dos heterónimos, de 13 de Janeiro de 1935)

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

HUMBLE PIE - «Queens and Nuns»

FRANCIS BACON

O artista anglo-irlandês de pintura figurativa, Francis Bacon, nasceu em Londres a 28 de Outubro de 1909. O tríptico «Três Estudos de Lucian Freud», de 1969, é a obra mais cara de sempre vendida em leilão. 106 milhões de euros foi o seu valor!
Poet'anarquista
«Três Estudos de Lucian Freud»
Francis Bacon

Por aqui- «PINTURA - FRANCIS BACON», sobre vida e obra.
Poet'anarquista 

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

ESPECIAL MÚSICAS DO MUNDO

E a música especial de hoje é...
(27 de Outubro de 2013, morre o cantor, guitarrista e compositor norte-americano, Lou Reed)

LOU REED
«Walk on the Wild Side»
Walk on the Wild Side by Lou Reed on Grooveshark
Poet'anarquista

PASSEIO PELO LADO SELVAGEM

Holly veio de Miami, Flórida
Atravessou os EUA pegando carona
Depilou as sobrancelhas no caminho
Raspou as pernas e então ele virou ela
Ela diz, "Ei, querido
Dê um passeio pelo lado selvagem"
Ela diz, "Ei, amor
Dê um passeio pelo lado selvagem"

Candy veio de lá da ilha
Nos bastidores, ela era a querida de todos
Mas ela nunca perdeu a cabeça
Mesmo quando estava com a boca numa
Ela diz, "Ei, querido
Dê um passeio no lado selvagem"
Disse, "Ei, querido
Dê um passeio no lado selvagem"
E as garotas de cor vão doo do doo do doo...

Pequeno Joe nunca chegou a revelar
Todo mundo tinha que pagar e pagar
Um michê aqui, um michê ali
Nova York é o lugar onde eles disseram: "Ei, querido
Dê um passeio no lado selvagem"
Eu disse, "Ei, Joe
Dê um passeio no lado selvagem"

Fada-do-açucar veio e caiu nas ruas
Procurando por comida leve e um lugar pra comer
Foi ao Apollo
Você deveria ter visto eles dançando go-go
Eles disseram, "Hey, docinho
Dê um passeio no lado selvagem"
Eu disse, "Ei, querido
Dê um passeio no lado selvagem"
Tudo bem, huh

Jackie está só indo além dos limites
Pensou que era James Dean por um dia
Aí acho que ela tinha que desmoronar
Valium deveria ter ajudado nessa doideira
Disse, "Ei, querido
Dê um passeio no lado selvagem"
Eu disse, "Ei, querida
Dê um passeio no lado selvagem"
E as garotas de cor dizem, "Doo do doo do doo"

Lou Reed

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...
(27 de Outubro de 1782, nasce o compositor e violinista italiano, Niccolo Paganini)

PAGANINI
«Sad Romance Violin»

OUTROS CONTOS

«Um Amigo em Talas», por Graciliano Ramos.

27 de Outubro de 1892, nasce o escritor brasileiro Graciliano Ramos.
Poet'anarquista
«Um Amigo em Talas»
Rua Mosnier decorada com bandeiras 
com um homem de muletas
(Edouard Manet)

309- «UM AMIGO EM TALAS»

O meu antigo companheiro de pensão Amadeu Amaral Júnior, um homem louro e fornido, tinha costumes singulares que espantavam os outros hóspedes.

Para falar com propriedade, aquilo não era exatamente pensão, mas isto não tem importância: com um pouco de esforço podíamos admitir que estávamos numa pensão de gente bem comportada. Bocejávamos em demasia, contávamos as pessoas que subiam ou desciam um morro próximo, dormíamos cedo e recebíamos com regularidade a visita do gerente do estabelecimento, o major Nunes, ótima criatura que deixou o cargo por lhe faltar o espírito do negócio.

Amadeu Amaral Júnior vestia-se com sobriedade: usava uma cueca preta e calçava medonhos tamancos barulhentos. Fora isso, o que tinha em cima do corpo era a barba, economicamente desenvolvida, uma barba enorme. Parecia um troglodita. Alimentava-se mal, espichava-se na cama, roncava o dia inteiro e passava as noites acordado, passeando, agitando o soalho, o que provocava a indignação dos outros pensionistas. Quando se cansava, sentava-se a uma grande mesa ao fundo da sala e escrevia o resto da noite. Leu um tratado de psicologia e trocou-o em miúdo, isto é, reduziu-o a artigos, uns quarenta ou cinquenta, que projetou meter nas revistas e nos jornais e com o produto vestir-se, habitar uma casa diferente daquela e pagar ao barbeiro.

Mudamo-nos, separamo-nos, perdemo-nos de vista. Creio que os artigos de psicologia não foram publicados, pois há tempo li este anúncio num semanário: “Intelectual desempregado. Amadeu Amaral Júnior, em estado de desemprego, aceita esmolas, donativos, roupa velha, pão dormido. Também aceita trabalho”.

O anúncio não produziu nenhum efeito, é o que meses depois, nos declara Amadeu Amaral Júnior: “Minha situação continua preta. Reitero o apelo às almas bem formadas: deem de comer a quem tem fome, uma fome atávica, milenária. Dêem-me trabalho.” E, catalogando as suas habilidades: “Escrevo poesias, crónicas, contos (policiais, psicológicos, de aventura, de terror, de mistério), novelas, discursos, conferências. Sei inglês, francês, italiano, espanhol e um bocado de alemão. Dêem-me trabalho pelo amor de Deus ou do diabo.”

De literato brasileiro não conheço página mais sincera e razoável que essa. Ao ler o pedido de roupa velha e pão duro, fiquei meio escandalizado, mas refletindo, confessei publicamente que o meu velho companheiro procedia com acerto. E agora, completamente solidário com ele, admiro a exposição que nos faz das suas aptidões e lamento que não as utilizem.

É evidente que Amadeu Amaral Júnior conhece bem o nosso mercado literário e apregoa as mercadorias mais próprias para o consumo: discursos, contos policiais, de aventura, de terror e de mistério. Julgo que vive sem ocupação por não haver falado antes nisso.

O meio cento de artigos redigidos naquelas noites de insónia encalhou certamente na redação, preterido pelas novelas de arrepiar cabelos. Indignado, Amadeu Amaral Júnior oferece de novo os seus préstimos ao editor, afirmando que também sabe compor histórias policiais, de aventura, de terror e de mistério, que arrancam lágrimas e se vendem regularmente.

A maneira como pede trabalho, pelo amor de Deus ou do diabo, revela que o escritor está impaciente e talvez não escrupulize em pôr a sua pena a serviço de qualquer dessas duas entidades, o que não admira, pois Amadeu é jornalista.

Muita gente se espanta com o procedimento desse amigo. Não sei por quê. Os fabricantes anunciam os seus produtos e os sujeitos desempregados costumam, desde que há jornais, dizer neles para que servem. Por que apenas o articulista, precisamente o indivíduo capaz de arrumar umas linhas com decência, deve calar-se e roer chifres?


Eu por mim acho que Amadeu Amaral Júnior andou muito bem. Todos os jornalistas necessitados deviam seguir o exemplo dele. O anúncio, pois não. E, em duros casos, a propaganda oral, numa esquina, aos gritos. Exatamente como quem vende pomada para calos.

Graciliano Ramos

domingo, 26 de outubro de 2014

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

VITORINO - «Contos do Príncipe Real»

Poet'anarquista

CONTOS DO PRÍNCIPE REAL

No jardim do Príncipe Real 
(ainda hoje tenho de lá ir)
Encontrei-me com fulana de tal
Pus-me a ver as estrelas a luzir

Trocámos silêncios de mãos dadas
Conversámos com os olhos e o pensar
Espreitavam-nos do quarto da criada
Do Palácio Italiano com portal

Mas um dia perdeu-se o coche vermelho
Que a Princesa levava sempre ao jardim
Meteu-se por caminhos que não têm fim
Perco a esperança de à noite tornar a vê-lo

Novembro maldito mês das almas,
Nesse ano nem o azul do céu poupaste,
Carregaste com nuvens de negro corte.
Mas vamos rapazes depressa ao vinho,


Porque ao vinho não o vence nem a Morte!
Porque ao vinho não o vence nem a Morte

Vitorino
Cantor e Compositor Alentejano

OUTROS CONTOS

«O Príncipe Real», por José Cardoso Pires.

26 de Outubro de 1998, morre o escritor português José Cardoso Pires, autor de «Balada da Praia dos Cães».
Poet'anarquista
«O Príncipe Real»
Jardim do Príncipe Real/ Lisboa 1949

308- «O PRÍNCIPE REAL»

Se há jardim de Lisboa que me dê gosto maior é o do Príncipe Real. Primeiro, por causa da árvore-mãe que tem ao centro, baixinha e de ventre antigo, e de ramagem tão extensa que dá abrigo a meio mundo. Depois porque o conheci rodeado de poetas, uns em verso, outros em prosa: O' Neill morou-lhe quase em frente, na rua da Escola Politécnica, Vieira de Almeida mesmo ao lado, Ruy Cinatti na rua da Palmeira e Agostinho da Silva na Travessa do Abarracamento de Peniche que é um recanto pacífico para meditar. Isso para não falar já do Poeta Real que se chamava Mendonça e que nunca escreveu coisíssima nenhuma na vida, pelo menos que se saiba. Fizemo-lo poeta, eu e alguns amigos, porque se passeava no jardim acompanhado dum pato negro, com a solenidade dum letrado do Olimpo. Alguém que numa cidade se passeia com um pato é poeta ou tem alma disso. No entanto, se nós, em vez de poeta, o tivéssemos feito Príncipe Real também não ficaria pior porque condizia com a majestade com que ele atravessava a paisagem.

Finalmente o quiosque. Importante não esquecer o quiosque neste jardim porque ali se servia a melhor ginja-com-elas de Lisboa ao balcão da janelinha e sabiam-se enredos que se passavam a toda a volta. Enjaulado no seu posto, o patrão da ginjinha, tabacos e lotarias, contava casos de sentimento, velhices adormecidas, drogados de aflição e tudo o mais que ocorria naqueles bancos à beira-relva

Assim, com a bebida e a conversa pelo meio, iam correndo as nossas tardes, até que por volta das cinco horas dava entrada no jardim o príncipe do pato-negro. Gravata de seda-luto, penteadíssimo em negro espelhado, seguia por entre flores e relvados, de cabeça levantada e olhar perdido como se andasse no horizonte do mundo, indiferente a tudo mais.

Mas sabia-se olhado como uma aparição enigmática - e esse era o seu orgulho, não tenho dúvida. Por alguma razão alguém se exibe em público com um pato e, ainda por cima, um pato negro com uma pena amarela levantada em arco na cabeça.

"Trata-se dum pato chinês", dizia o dono do quiosque. "Daí aquela pena amarela".

Para a porteira do Poeta real, que o conhecia há mais de vinte anos( quer-se dizer, desde que ele e a defunta esposa tinham vindo morar para ali) o pato seria, antes, pata e quem assim falava sabia muito bem porquê. Repare, lembrava a porteira ao homem do quiosque, era naquele jardim que a mulher dele, o senhor Mendonça, o vinha esperar todas as tardes à saída do emprego quando era viva, e nessa altura não havia pato nenhum. Era ali que os dois davam uma voltinha antes de irem para casa, e era naquele mesmo banco onde ele agora lê o jornal que se sentavam em silêncio, frente ao canteiro das rosas damascenas tão do agrado da senhora. Ele agarrado ao Diário da Tarde, ela a admirar as flores da sua predilecção, então isto não lhe diz nada?, perguntava a porteira ao dono do botequim.

Não? Pois à porteira dizia-lhe tudo. Na sua opinião o pato não era pato nem coisa nenhuma; era, explicou ela mil vezes à janela do quiosque, uma reencarnação da falecida e Deus se lhe dera aquela forma lá tinha as suas razões.

Ah bem, pois sim. O do quiosque ouvia-a de cara séria e passava a diante porque sabia que a mulher era uma fanática dos espíritos, uma esparvoada que acreditava que a pessoa, depois de morta, voltava ao mundo em forma de gente ou de animal de estimação para chatear os que andam por cá. A isso chamavam lá na seita dela a passagem da alma ou outra coisa qualquer, e só um desgraçado dum comerciante tão modesto como ele tinha de aturar conversas misteriosas desta espécie porque a porteira, além de vizinha, era uma cliente certa da lotaria, do totoloto e de tudo o que metesse números do destino.

José Cardoso Pires

OITAVA [CANTO ISOLADO]

Navegando em Águas Turvas
Corrupção às Claras

OITAVA
[Canto Isolado]

Às armas contra os traidores
Que venderam a pátria lusitana,
Por águas turvas esses impostores
Roubam-nos da forma mais sacana!
Estão assinalados os estupores
Que emperram a vida humana…
Descaradamente esta governação,
Vai navegando em corrupção!!

Matias José

«FESTEJANDO O SÃO MARTINHO», POR JOSÉ MALHOA

26 de Outubro de 1933, morre o pintor português José Malhoa, autor de «Festejando o São Martinho» e «A Ilha dos Amores».
Poet'anarquista
Por aqui:

«Festejando o São Martinho»
José Malhoa/ 1912

«FESTEJANDO O SÃO MARTINHO»

Foi o vinho, José Malhoa foi o vinho
O pretexto pra pintar esse quadro...
Os retratados em muito mau estado
Festejando o São Martinho!
Não bebes mais nenhum copinho...
Diz o nosso poeta determinado
Em deixar o álcool descansado...
Pra más companhias, antes sozinho!
Na pintura encontras-te o caminho,
E eu, na escrita, o verso rimado !!

POETA

sábado, 25 de outubro de 2014

FRAGMENTOS: «ENSAIO SOBRE A LUCIDEZ»

«Este é um livro francamente terrível com o qual eu quero que o leitor sofra tanto como eu sofri ao escrevê-lo. Nele se descreve uma longa tortura. É um livro brutal e violento e é simultaneamente uma das experiências mais dolorosas da minha vida. São 300 páginas de constante aflição. Através da escrita, tentei dizer que não somos bons e que é preciso que tenhamos coragem para reconhecer isso.»
José Saramago, Nobel da Literatura/ 1998

«Ensaio Sobre a Lucidez»
José Saramago

ENSAIO SOBRE A LUCIDEZ
[Fragmentos]

“...os humanos são universalmente conhecidos como os únicos animais capazes de mentir, sendo certo que se às vezes o fazem por medo, e às vezes por interesse, também às vezes o fazem porque perceberam a tempo que essa era a única maneira ao seu alcance de defenderem a verdade.”

“...talvez, antes de ti, o teu corpo saiba já que vão te matar.”

“...a isto pode ser reduzida a tão badalada suprema dignidade da pessoa humana, afinal tanto como um papel molhado.”

“...em toda a verdade humana há sempre algo de angustioso, de aflito, nós somos, e não estou a referir-me simplesmente à fragilidade da vida, somos uma pequena e trémula chama que a cada instante ameaça apagar-se, e temos medo, acima de tudo temos medo.”

“Sempre chega a hora em que descobrimos que sabíamos muito mais do que antes julgávamos...”

“Sentiu a nostalgia da capital, do tempo feliz em que os votos eram obedientes ao mando, do monótono passar das horas e dos dias entre a pequeno-burguesa residência oficial dos chefes de governo e o parlamento da nação, das agitadas e não raras vezes joviais crises políticas que eram como fogachos de duração prevista e intensidade vigiada, quase sempre a fazer de conta, e com as quais se aprendia, não só a não dizer a verdade como fazê-la coincidir, ponto por ponto, quando fosse útil, com a mentira, da mesma maneira que o avesso, com toda a naturalidade é o outro lado do direito.”

“...o incompreensível pode ser desprezado, mas nunca o será se houver maneira de o usarem como pretexto.”

“Que monstruosas coisas é capaz de gerar o cérebro...”

“...as verdades há que repeti-las muitas vezes para que não venham, pobres delas, a cair no esquecimento.”

“O cão tinha se aproximado quase a tocar com o focinho os joelhos do comissário. Olhava para ele e os seus olhos diziam, Não te faço mal, não tenhas medo, ela também não o teve naquele dia. Então o comissário estendeu a mão devagar e tocou-lhe na cabeça. Apetecia-lhe chorar, deixar que as lágrimas lhe escorregassem pela cara abaixo, talvez o prodígio se repetisse. A mulher do médico guardou o livro na bolsa e disse, Vamos, Aonde, perguntou o comissário, Almoçará connosco se não tem nada mais importante que fazer, Tem a certeza, De quê, De querer sentar-me à sua mesa, Sim, tenho a certeza, E não tem medo de que eu esteja a
enganá-la, Com essas lágrimas nos olhos, não.”

“Aprendi neste ofício que os que mandam não só não se detêm diante do que nós chamamos absurdos, como se servem deles para entorpecer as consciências e aniquilar a razão.”

“Nascemos, e nesse momento é como se tivéssemos firmado um pacto para toda a vida, mas o dia pode chegar em que nos perguntemos Quem assinou isto por mim.”

“...há que ter o máximo de cuidado com aquilo que se julga saber, porque por detrás se encontra escondida uma cadeia interminável de incógnitas, a última das quais, provavelmente, não terá solução.”

José Saramago
Poet'anarquista