«Improviso para Duas Estrelas de Papel»
Conto de Mário Cláudio
802- «IMPROVISO PARA DUAS ESTRELAS DE PAPEL»
São estrelas construídas sem paciência nem esperança, tão
dadas às espirais da tormenta como ao toque silícico das longas línguas de
saibro.
No chão articulam o catre-de-campanha, estremecem no abraço
pelo trepidar do autocarro, erguem-se na madrugada para o duche repentino.
Despertam o filho de bruços no beliche inferior, retiram-lhe o pijama,
vestem-no para a escola. Saem para a rua onde rompe acarvoada a manhã, e os
jornais pendem lívidos dos escaparates, e longas fileiras se cerram compactas
nas paragens hirtas. Na chuva escalam o casario azul, com uma catedral sombria
dominando vidas, varandas deitadas para vielas escorregadias, paredes de seminários
e palácios transidas de invernia e musgo esfarelado. Exercitam a ternura contra
uma e outra perspectiva de clarabóias e miradouros, telhados e escadórios,
fachadas de azulejo e mercados marginais. Ficam sem escuna que os receba,
Simões Botelho por sentenciar, os dentes cerrando todos os desafios, resignados
às mãos entre mãos. A si mesma se cerca a cidade, exterminando o espaço em seu
redor, concentrada lei que nenhuma infracção humaniza.
Começam insofridas por ensaiar o voo muito junto à terra,
entre a extensão das searas e a cúpula aberta e translúcida.
Deixam um automóvel arfante, invadem o jardim dos organismos
públicos, cortam a compósita flor que para sempre enquadra o dia. «É preciso
morrer», dizem, encostando à boca o espelho dos moribundos; «é preciso beber»,
dizem, descobrindo países. Pernoitam em hospedarias clandestinas, com telefones
desligados de medo, ramas de pinheiro, marcas de cerâmica, lâminas. Para eles
se aparta o reposteiro escarlate, se lhes deparam os retratos régios, estáticos
de veludos e carbúnculos, a história se entorpece de minúsculos canteiros
interiores e de buxo.
No rasto das estrelas, pelos sulcos da fome, se abandonam
guiados, tranquilos e loucos, Joana perseguindo o cadáver do homem pelas
estradas de Espanha adustíssima, entre chufas de canalha e excrementos de mula.
O filho relata a estranha genética, reclama o direito de
resultar, como todos os filhos que se sabem, do ventre virgem do pai. Divide a
giz brinquedos e cobertores, fábulas e passeios de domingo.
Como diferem das estrelas as estrelas, rochas de fogo que
nunca se cruzam, seguem além de além, trajectória que não se interrompe nem
altera!
Realizam assim seu contrabando de violetas bravas, à revelia
de mulheres legítimas e amigos estatutários. Dormem pelas valetas, acordam
sacudidos de riso, a bombazine das calças tingida do amarelo poeirento das
mimosas. Alimentam-se de pão e de queijo e de vinho clarete. Descansam a sesta
contra a nave dos conventos galegos, com seus retábulos de oiro e seus palmares,
trazidos ambos de uma América que os olhos de um nos olhos de outro já não
precisam de alcançar. Adormecem de novo entre textos rascunhados, rápidas
passagens do Requiem. Decifram quase o mistério dos alfabetos ibéricos, no
vestíbulo do sono onde vogam hipocampos atónitos, perpassam esteiras súbitas de
submersos meteoritos.
O movimento das estrelas acontece ainda em quartos de tecto
baixíssimo, onde os cinzeiros se entornam, as bofetadas estalam, o choro
rebenta.
Na destrambelhada noite do equinócio escolhem a forca dentro
de casa, dobram-se de angústia sobre a estopa da otomana, evadem-se vomitando
entrechos avulsos pelo veloz labirinto dos faróis. Assim se lhes tocam os dedos
nos mamilos das raparigas de mármore, ou de cerosas folhas de camélia se lhes
cobrem, descerrando os cadernos nas margens do lago. Os cães ladram no faro da
senda que levam, e um noitibó lhes indica o atalho da saída.
Atrás das estrelas correm, por elas arrastados, a vontade no
sentido delas transpondo abismos, peregrinando por capelas de seu culto, a que
outras pombas se abrigam sempre que chove. No sol se confundem, nas esferas de
refulgência, fazendo crepitar as pontas nas trevas de uma íris igual.
As crónicas antigas jazem arquivadas nas gavetas dos
contadores de marfim, nas prateleiras dos imensos copeiros espanhóis, nas
vitrines iluminadas de faces que o bafo embacia. Ora se lhes repousa a cabeça
no ombro um do outro, ora se cortam os laços, ajoelhados e acenando na aresta
mais fria da cama.
Fatigadas as estrelas se esfarrapam, tombam em pedaços de
enfolipado papel-de-seda, e a armadura das asas é uma caveira de arames e
madeira e cola ressequida. Mas os longes duram sempre, sempre duram, para quem
quer que retenha os fios enredados.
Mário Cláudio