«Decisão Correcta», por Henry James.
«Decisão Correcta»
Conto de Henry James
431- «DECISÃO CORRECTA»
I
Quando, após a morte de Ashton Doyne — apenas três meses
depois —, George Withermore foi procurado, como se diz, a propósito de um
“livro”, a comunicação chegou-lhe directamente de seus editores, que haviam
sido, e na verdade muito mais, também os de Doyne; mas ele não ficou surpreso
ao saber, durante a entrevista que em seguida eles lhe solicitaram, que uma
certa urgência com relação à publicação, em breve, de uma biografia, viera da
viúva de seu falecido cliente. As relações de Doyne com sua mulher haviam sido,
como era do conhecimento de Withermore, um capítulo muito especial — que se
mostraria, a propósito, muito delicado para o biógrafo; mas uma percepção do
que ela perdera, e até mesmo de suas deficiências, deixara-se trair pela pobre
mulher, nos primeiros dias de sua perda, o bastante para deixar qualquer
observador iniciado na expectativa de algum gesto de compensação, algum
patrocínio até mesmo exagerado dos interesses de um nome ilustre. George
Withermore era — assim julgava-se ele — um iniciado; contudo, o que ele não
esperava era ouvir que ela o mencionara como a pessoa em cujas mãos colocaria
sem demora o material para um livro.
Esse material — diários, cartas, memorandos, anotações,
documentos de muitos tipos — era propriedade da viúva, e ela detinha todo poder
sobre ele, sem qualquer restrição ou reserva relativa à sua parte na herança;
portanto, estava livre para fazer o que desejasse — livre, especialmente, para
não fazer nada. O que Doyne teria disposto, tivesse ele tempo para fazê-lo,
poderia ser apenas objecto de suposições e de adivinhações. A morte levara-o
muito prematura e subitamente, e era uma pena que os únicos desejos por ele
expressos, segundo se sabia, eram os de que fossem absolutamente
desconsiderados. Ele ficara inacabado — essa fora sua peculiaridade; e o fim
estava imperfeito e necessitava de remendos. Withermore estava plenamente
consciente dos laços que os uniam, mas não menos de que ele próprio era
relativamente obscuro. Era jovem, um jornalista, um crítico, alguém que cavava
a existência dia a dia, ainda com pouco, como se dizia, a apresentar. Seus
escritos eram escassos e de pouca importância, suas relações, limitadas e
indefinidas. Doyne, por outro lado, vivera o bastante — acima de tudo, possuíra
talento o bastante — para se tornar famoso, e entre seus muitos amigos, também
cercados de prestígio, havia vários, sobretudo aqueles que conheciam sua
mulher, que lhe pareceriam ainda mais interessante.
A preferência que ela, indubitavelmente, declarara — e o
fizera de um modo indirecto, polido que lhe deixou uma margem de liberdade — fez
com que nosso jovem sentisse que devia ao menos veda e que haveria de qualquer
modo muito sobre o que conversar. Ele imediatamente escreveu-lhe, ela com igual
presteza indicou uma hora e eles se explicaram. Mas desse encontro ele saiu
consideravelmente mais convicto de sua ideia inicial. Ela era uma mulher
estranha, e ele nunca a julgara agradável; mas havia algo na sua impaciência
atarefada, desajeitada que o comovia agora. Ela queria que o livro fosse
escrito, e a pessoa, do grupo de seu marido, que ela provavelmente acreditava
poder manipular mais facilmente deveria sob todos os aspectos ajudar a
escrevê-lo. Ela não havia levado Doyle muito a sério durante sua vida, mas a
biografia deveria ser uma resposta convincente a toda e qualquer incriminação a
ela própria. Sobre como tais livros eram escritos, ela muito pouco sabia, mas
investigara e aprendera algo. Causou um certo alarme a Withermore, de início,
perceber que ela desejava algo volumoso. Ela falava em “volumes” — mas ele
tinha suas próprias ideias a esse respeito.
“Pensei imediatamente em você, como ele teria
feito”, ela dissera quase no momento em que surgiu diante dele em seus amplos
trajes de luto — com seus grandes olhos negros, sua grande peruca negra, seus
grandes leques e luvas negros, sua desolada, feia, trágica, mas impressionante
e, como se poderia julgar, de um certo ponto de vista, “elegante” presença em
geral. “Dentre todos, você era de quem ele mais gostava; ah, muito mais!” — e isso
foi mais do que o suficiente para virar a cabeça de Withermore. Pouco importava
que depois se perguntasse se conhecera Doyne o bastante, como ocorreria, com
certeza. Ele diria a si mesmo, de fato, que o testemunho dela sobre essa
questão dificilmente teria contado. Anda assim, não há fumaça sem fogo; ela
sabia ao menos o que queria dizer, e ele não era um indivíduo a quem ela
poderia ter interesse em lisonjear. Eles subiram juntos, sem demora,
ao escritório vazio do grande homem, que ficava na parte posterior da casa e
dava para o espaçoso jardim de inverno — um belo e inspirador cenário, segundo
o pobre Withermore — comum às casas ricas.
“Você pode perfeitamente trabalhar aqui, se quiser”, disse a
sra. Doyne; “terá este lugar somente para si — eu o reservarei para você; e
assim, especialmente às noites — não acha? — servirá às mil maravilhas para sua
tranquilidade e privacidade.”
Maravilhado, de fato, era como o jovem se sentia ao olhar a
sua volta — após ter explicado que, como seu trabalho regular era num jornal
vespertino e suas horas anteriores, ainda por um longo tempo, estavam
normalmente tomadas, ele viria sempre à noite. A presença de seu amigo
desaparecido ainda pairava no lugar; tudo que eles tocavam fizera parte da vida
dele. Por hora, isso tudo era excessivo para Withermore — uma honra grande
demais e até mesmo uma atenção grande demais. Memórias ainda recentes
retornaram, e fizeram com que seu coração batesse mais forte, e seus olhos se
enchessem de lágrimas, a pressão de sua lealdade parecia mais do que ele
poderia suportar. Ao ver suas lágrimas, também as da sra. Doyne marejaram-lhe
os olhos, e ambos, por um instante, apenas olharam-se. Ele quase esperava que
ela exclamasse: “Ah!, ajude-me a sentir o que você sabe ser meu desejo sentir!”
E, após um momento, um deles disse, com a viva aprovação do outro, não
importava qual: “É aqui que estamos com ele”. Mas foi decididamente o jovem
a dizer, antes de deixarem a sala, que era “aqui que ele estava com eles”.
O jovem começou a vir tão logo pôde, e foi então que, no
mesmo instante, no encantador silêncio, entre a lâmpada e o fogo, e com as
cortinas fechadas, que uma certa consciência mais vivida invadiu-o. Ele viera
de uma sombria Londres de Novembro; atravessara a grande e silenciosa casa, e
subira as escadas onde encontrara em seu caminho apenas rapidamente com uma
criada obedientemente muda, ou a visão, pelo vão de uma porta, dos trajes
régios de luto da sra. Doyne e de seu rosto trágico e aprovador; e depois, com
um simples toque da porta bem-feita que produzia um estalido tão preciso e
agradável, fechou-se lá durante três ou quatro horas cordiais com o espírito —
sempre fizera questão de as caracterizar assim — de seu mestre. Ficou não pouco
amedrontado quando, na primeira noite mesmo, tomou consciência de que ficara,
na verdade, profundamente impressionado, no caso todo, pela expectativa, pelo
privilégio e pela delícia dessa sensação. Ele não reflectira — agora percebia-o
—, não ponderara claramente sobre a questão do livro — acerca do qual havia aqui,
até mesmo anteriormente, muito a pensar; simplesmente deixara que seu afecto e
admiração — para não falar de seu orgulho gratificado — acedessem plenamente à
tentação que a sra. Doyne lhe apresentara.
Como saber, sem maiores reflexões, ele poderia começar a se
indagar, que o livro era, de um modo geral, desejável? Que justificativa jamais
recebera ele do próprio Ashton Doyne para uma aproximação tão directa e, de
certo modo, tão informal? Respeitável era a arte da biografia, mas havia vidas
e vidas, havia temas e temas. Ele recordava-se vagamente, a esse respeito, de
palavras há muito ditas casualmente por Doyne com relação a elaborações
contemporâneas, indícios de seu juízo exigente com relação a outros heróis e a
outras paisagens. Ele até mesmo lembrava-se de como seu amigo, em certos
momentos, parecia ter-se mostrado da opinião de que a carreira “literária”
poderia — salvo no caso de um Johnson e um Scott, com a ajuda de um Boswell e
de um Lockhart — ter-se dado por satisfeita em ser representada. O artista era
o que ele fazia — e nada mais. E contudo, por outro lado, como
deixaria ele, George Withermore, um pobre diabo, de agarrar-se à
oportunidade de passar seu inverno num convívio tão abastado? Fora simplesmente
maravilhoso — essa era a verdade. Não haviam sido os “termos” dos editores —
não obstante eles fossem, como haviam dito no escritório, satisfatórios; fora o
próprio Doyne, sua companhia, seu contacto, sua presença — fora particularmente
a decorrência disso tudo, a possibilidade de um relacionamento mais íntimo do
que houvera em vida. Era estranho que, de ambas as coisas, fosse a morte a
possuidora de menos mistérios e segredos! Na primeira noite em que nosso jovem
ficou a sós no aposento, pareceu-lhe que seu mestre e ele estavam real-mente
juntos pela primeira vez.
II
A sra. Doyne, na maioria das vezes, deixara-o
propositadamente a sós, mas em duas ou três ocasiões surgira para verificar se
ele não precisava de nada, e ele tivera a oportunidade de agradecer-lhe
imediatamente o discernimento e o zelo com que ela lhe facilitara o trabalho.
Até certo ponto, ela própria examinara o material e já conseguira reunir
diversos grupos de cartas; colocara nas mãos dele, além disso, todas as chaves
de gavetas e armários e lhe dera informações úteis acerca dos lugares prováveis
de diferentes assuntos. Em suma, ela lhe entregara todo o material possível e,
quer seu marido confiara nela ou não, ela, ao menos — isso estava claro —
confiava no amigo de seu marido. Todavia, tomou conta de Withermore a impressão
de que, a despeito de todas essas atenções, ela ainda não estava tranquila e de
que uma certa ansiedade não aplacada continuava até mesmo a acompanhar sua
confiança. Embora tivesse cercado-o de consideração, ela ao mesmo tempo estava
sensivelmente ali: ele a sentia, embora mediante um sexto sentido
extremamente subtil de que toda a conexão já fora posta em jogo, pairar, no
silêncio da noite, no alto da escadaria e no outro lado das portas, a
inferir-se do farfalhar mudo de suas saias o sinal de suas vigílias e expectativas.
Uma noite, quando, à mesa de seu amigo, ele estava absorto nas profundezas da
correspondência, aconteceu-lhe assustar-se e virar-se, com a impressão de que
havia alguém atrás de si. A sra. Doyne entrara sem que ele ouvisse a porta e
deu-lhe um sorriso forçado quando ele se pôs em pé de um salto. “Espero”, disse
ela, “não tê-lo assustado”.
“Só um pouco — eu estava tão absorto... Foi como se, por um
instante”, o jovem explicou, “fosse ele próprio.”
A singularidade de seu rosto aumentou com sua surpresa.
“Ashton?”
“Ele parece tão próximo”, disse Withermore.
“A você também?”
Isso compreensivelmente o espantou. “Você também sente a
presença dele?”
Ela hesitou, imóvel no lugar onde estivera de início, mas
olhando em volta da sala como se para penetrar em seus cantos mais escuros.
Tinha ela um modo de levantar ao nível do nariz o grande leque negro, que
aparentemente nunca abandonava e com o qual cobria assim a parte inferior do
rosto, que tornava seus olhos um tanto duros, acima dele, ainda mais
ambíguos-vagos. “Às vezes.”
“Aqui”, continuou Withermore, “é como se ele pudesse entrar
a qualquer momento. Foi por isso que me assustei há pouco. Faz tão pouco tempo
que ele realmente... foi apenas ontem. Sento-me em sua cadeira, folheio
seus livros, uso suas penas, atiço seu fogo, exactamente como se, sabendo que
ele retornaria agora de uma caminhada, eu tivesse subido até aqui, satisfeito,
a aguardá-lo. É delicioso — mas estranho.”
A sra. Doyne, ainda com seu leque levantado, ouvia com
interesse. “Isso o preocupa?”
“Não; agrada-me.”
Ela hesitou novamente. “Você já sentiu como se ele
estivesse... ahm... pessoalmente na sala?”
“Bem, como disse agora há pouco”, riu seu companheiro, “ao
ouvi-la atrás de mim pareceu-me senti-lo. Afinal, não é exactamente o que
desejamos?”, perguntou ele, “tê-lo connosco?”
“Sim, como você disse que ele estaria — na primeira vez.”
Ela encarou-o, concordando plenamente. “Ele está connosco.”
Ela era um tanto solene, mas Withermore apenas sorriu.
“Então devemos mantê-lo. Devemos fazer apenas o que ele gostaria que
fizéssemos.”
“Ah!, exactamente isso, é claro — apenas. Mas se ele está aqui...?”
E seus olhos melancólicos pareciam sugerir, numa vaga ansiedade, sobre seu
leque.
“Isso mostra que ele está satisfeito e quer ajudar? Sim, com
certeza; deve estar a mostrar isso.”
Deu um leve suspiro e olhou novamente em volta da sala.
“Bem”, disse ela enquanto se despedia, “lembre-se de que eu também desejo
ajudar”. E com isso, quando ela se fora, convenceu-se de... que ela viera
simplesmente para ver se ele estava bem.
Ele estava cada vez melhor, como descobriu em seguida,
surpreso, pois à medida que começou a envolver-se no seu trabalho, assim lhe
parecia, aproximou-se ainda mais da ideia da presença pessoal de Doyne. Desde
que essa fantasia começara a envolvê-lo, ele a saudava, chamava-a,
estimulava-a, até mesmo lembrava-se dela com prazer, ansiando durante todo o
dia para senti-la renovar-se à noite e esperando pela noite, exatamente como um
casal de amantes aguardariam a hora de seu encontro. Os acasos mais fortuitos
animavam-na e confirmavam-na, e ao fim de três ou quatro semanas ele
decididamente terminara por vê-la como a consagração de seu empreendimento. Não
era ela a resposta ao que Doyne teria pensado do que eles estavam fazendo? O
que eles estavam fazendo era o que ele desejava que fosse feito, e eles podiam
ir em frente, passo a passo, sem vacilações ou dúvidas. Com efeito, havia
momentos em que Withermore regozijava-se ao sentir essa certeza: por vezes,
profundamente mergulhado em alguns dos segredos de Doyne, era particularmente
agradável poder crer que Doyne desejava, por assim dizer, que ele os soubesse.
Ele estava aprendendo muitas coisas que não imaginara, abrindo muitas cortinas,
forçando muitas portas, desvendando muitos enigmas, percorrendo os bastidores,
em geral, como se diz, de quase tudo. Era em uma dessas mudanças bruscas de
direcção das perambulações mais obscuras pelos “bastidores” que ele realmente,
de súbito, sentia-se mais fortemente, de um modo íntimo, perceptível, face a
face com seu amigo; de tal modo que ele dificilmente poderia dizer, naquele
instante, se seu encontro ocorrera no corredor estreito e comprimido do
passado, ou na hora e no lugar que ele realmente ocupava. Fora em 1867, ou
apenas do outro lado da mesa?
Felizmente, de qualquer modo, até mesmo à luz mais vulgar
que a vida pública poderia jamais lançar, haveria o acontecimento magnífico do
modo como Doyne estava “mostrando-se”. Ele estava mostrando-se maravilhosamente
bem — melhor ainda do que um sectário como Withermore poderia ter imaginado.
Todavia, durante todo o tempo igualmente, como esse sectário poderia descrever
a alguém o estado especial de sua própria consciência? Não era algo de que se
pudesse falar — era somente algo que se sentia. Havia momentos, por exemplo, em
que, ao inclinar-se sobre seus papéis, a respiração leve do anfitrião morto
estava tão nitidamente em seus cabelos quanto seus próprios cotovelos na mesa
diante de si. Havia momentos em que, pudesse ele levantar os olhos, o outro
lado da mesa teria lhe mostrado seu companheiro tão vividamente quanto a luz
sombreada da lâmpada lhe mostrava sua página. Por que ele não podia levantar os
olhos era assunto somente dele, pois a situação seguia regras — como era
natural — de profundas subtilezas e delicados receios, por temor de um progresso
demasiado súbito ou demasiado descortês. O que pairava no ar com maior
intensidade era que, se Doyne estava lá, não era tanto por si mesmo
quanto pelo jovem sacerdote em seu altar. Ele hesitava e protelava, ia e vinha
e, em meio aos livros e papéis, movia-se quase como um silencioso, discreto
bibliotecário, a executar certas tarefas, a oferecer auxílios discretos, tal como
aprazia aos homens de letras.
O próprio Withermore, entrementes, ia e vinha, mudava de
lugar, vagueava em buscas ora definidas, ora vagas; e mais de uma vez, descendo
um livro de uma estante e nela encontrando marcas do lápis de Doyne, ele
sentira-se estimulado e perdido, ouvira documentos sobre a mesa atrás de si
suavemente moverem-se e agitarem-se, encontrara literalmente, ao seu retorno,
alguma carta que pusera em lugar inadequado ser colocada novamente à vista, uma
miscelânea desfeita ao abrir-se um velho periódico na data exacta que ele
desejava. Como lhe fora possível, certa vez, dirigir-se a uma caixa ou gaveta
em especial, em meio a cinqüenta receptáculos, que o auxiliaria, não fosse pelo
fato de que seu místico ajudante, numa bela previsão, balançar sua tampa ou
entreabri-la, exatamente de modo a lhe atrair a atenção? — a despeito, não
obstante, de interrupções e períodos nos quais, caso se pudesse realmente
ter olhado, ver-se-ia alguém em pé, ao lado da lareira, ligeiramente afastado e
profundamente atento — alguém a fitar outro com um olhar um pouco mais duro do
que na vida real.
III
Que essa relação auspiciosa de fato existira, permanecera
durante duas ou três semanas, estava suficientemente provado pelo despertar da
angústia mediante a qual nosso jovem tornou-se consciente de que havia, por
algum motivo, desde uma certa noite, começado a perdê-la. O sinal disso foi uma
percepção abrupta, atônita — quando ele perdera uma página maravilhosa não
publicada que, por mais que procurasse, permanecia tolamente, irremediavelmente
perdida —, de que esse estado protegido corria, afinal, o risco de alguma
confusão e até mesmo de algum enfraquecimento. Se, para a felicidade do
trabalho, Doyne e ele haviam, desde o início, estado juntos, a situação, poucos
dias após a primeira vez em que desconfiara dela, passou pela estranha mudança
de deixar de sê-lo. Foi isso que ocorreu, ele disse para si, a partir do
momento em que a impressão de simples amontoado e de abundância
surpreendentemente, na satisfação com que via seu material, substituiu sua
presunção prazerosa de um curso desimpedido e de uma marcha veloz. Durante
cinco noites ele lutou; e então, sempre longe de sua mesa, caminhando a esmo
pela sala, consultando suas referências somente para deixá-las de lado, olhando
através da janela, atiçando o fogo, pensando estranhos pensamentos e à escuta
de sinais e sons, não como os supunha ou imaginava, mas os que inutilmente
desejava e conjurava, ele decidiu que estava, ao menos naquele momento,
desamparado.
Mas o extraordinário foi tornar-se esse fato motivo não
somente de tristeza por não sentir a presença de Doyne, mas também de profunda
inquietação. De certo modo, era mais estranho que ele não estivesse lá do que
fora sua presença constante — na verdade, tão estranho, por fim, que
os nervos de Withermore acabaram por ser afetados de modo bastante
despropositado. Eles haviam se afeiçoado bastante complacentemente ao que
constituía uma ordem inexplicável e reservado seu estado mais agudo ao retorno
ao normal, à substituição do falso. E estavam excepcionalmente descontrolados
quando, finalmente, uma noite, após resistir por uma ou duas horas, ele
simplesmente saiu intempestivamente da sala. Tornara-se agora, pela primeira
vez, impossível para ele permanecer lá. A esmo, mas ofegando um pouco e
indubitavelmente como um homem assustado, ele caminhou pelo seu corredor
costumeiro e alcançou o topo da escada. Lá, viu a sra. Doyne embaixo, olhando
para ele exatamente como se soubera que ele viria; e o mais singular de tudo
era que, embora estivesse consciente de que não tivera nenhuma intenção de
recorrer a ela e de que fora impelido somente a acalmar-se pela fuga, vê-la
naquela atitude fez com que ele reconhecesse seu fundamento, rapidamente a
sentisse como parte de alguma opressão monstruosa que se estava fechando em
torno de ambos. Foi maravilhoso como, num simples e moderno salão londrino,
entre os tapetes de Tottenham Court Road e a luz elétrica, da senhora alta e em
negro até ele e dele novamente até ela, lá embaixo, veio-lhe a certeza de que
sabia o que significava o fato de ela olhar para ele como se ele o soubesse.
Ele desceu imediatamente, ela entrou em sua sala particular no andar térreo e
lá, em seguida, com a porta fechada, eles confrontaram, ainda em silêncio e nos
rostos uma expressão estranha, as confissões que haviam nascido subitamente
desses dois ou três movimentos. A descoberta do motivo pelo qual seu amigo o
abandonara fez com que Withermore ofegasse. “Ele esteve com você? ”
Com isso expressou-se tudo — expressou-se tão completamente
que nenhum deles teve de explicar e, quando um “O que você imagina estar
acontecendo?” de súbito ouviu-se, entre eles, pareceu que tanto um quanto outro
o havia dito. Withermore olhou em volta da pequena e iluminada sala na qual, noite
após noite, ela estivera a viver sua vida do mesmo modo que ele estivera
vivendo a sua lá em cima. Ela era bonita, aconchegante, rosada; mas
ela sucessivamente ali sentira o que ele sentira e ali ouvira o que ele ouvira.
O efeito que a sra. Doyne produzia ali — negro irreal, ostentoso e
extravagante, sobre rosa escuro — era o de uma estampa colorida “decadente”, um
cartaz da escola da moda. “Você compreendeu que ele me abandonou?”, perguntou
ele.
Ela visivelmente desejava esclarecê-lo. “Esta noite — sim.
Eu compreendi tudo.”
“Você sabia... antes... que ele estava comigo?”
Ela hesitou novamente. “Senti que ele não estava comigo. Mas
na escadaria...”
“Sim?”
“Bem... ele passou, mais de uma vez. Ele estava na casa. E à
sua porta...”
“Então?” ele continuou, quando ela mais uma vez vacilou.
“Se eu parasse, poderia algumas vezes saber. E por sua
expressão”, acrescentou ela, “esta noite, de qualquer forma, eu sabia como você
estava.”
“E foi por isso que você saiu?”
“Julguei que você viria até mim.”
A estas palavras, ele estendeu a mão para ela, e eles assim,
por um mi-nuto, em silêncio, mantiveram as mãos apertadas. Não havia uma
presença singular para ambos, agora — nada mais singular do que a de um para o
outro. Mas o lugar subitamente tornara-se como que santificado, e Withermore
transmitiu-lhe novamente sua ansiedade. “O que está acontecendo,
então?”
“Eu apenas quero fazer a coisa realmente certa”, replicou
ela após um momento.
“E nós não o estamos fazendo?”
“Não sei. Você não está?”
Ele ponderou também. “O melhor que posso, creio eu. Mas
precisamos pensar.”
“Precisamos pensar”, ecoou ela. E eles realmente pensaram —
pensaram intensamente, juntos, pelo resto da noite, pensaram cada qual em seu
canto — Withermore pelo menos podia responder por si — durante os muitos dias
que se seguiram. Ele interrompeu brevemente suas visitas e seu trabalho,
tentando, em meditação, apanhar-se no ato de algum erro que pudesse explicar a
perturbação de ambos. Haveria ele tomado, sobre alguma questão importante — ou
parecera haver tomado — alguma passagem errada ou um ponto de vista errado?
Teria ele em algum lugar inadvertidamente mentido ou insistido inadequadamente?
Voltou por fim com a ideia de ter-se deparado com duas ou três questões às
quais ele poderia estar tratando de maneira equivocada; depois disso, ele teve,
no andar superior, outro período de agitação, logo seguido de outra
conversação, no andar inferior, com a sra. Doyle, que ainda estava perturbada e
ansiosa.
“Ele está aqui?”
“Ele está aqui.”
“Eu sabia!”, replicou ela com um estranho brilho de triunfo.
E então, como que para esclarecer: “Ele não esteve novamente comigo”.
“Nem comigo para ajudar”, disse Withermore.
Ela ponderou. “Não para ajudar?”
“Não consigo entender — estou desnorteado. Faça o que fizer,
sinto que estou errado.”
Ela cobriu-o por um momento com sua dor pomposa. “Como você
o sente?”
“Ora, por coisas que acontecem. As coisas mais estranhas.
Não consigo descrevê-las — e você não acreditaria.”
“Ah!, sim, eu acreditaria!”, murmurou a sra. Doyne.
“Bem, ele intervém”, Withermore tentou explicar. “Para onde
quer que eu me volte, encontro-o.”
Ela seguiu-o atentamente. “Encontra-o?”
“Deparo-me com ele. Ele parece surgir lá, diante de mim.”
A sra. Doyne, olhando-o fixamente, esperou um pouco. “Você
quer dizer que o vê?”
“Sinto como se a qualquer momento pudesse vê-lo. Estou
perplexo. Estou chocado.” E então acrescentou: “Tenho medo”.
“Dele? ”, perguntou a sra. Doyne.
Ele pensou. “Bem... do que estou fazendo.”
“O que, então, de tão terrível, você está fazendo?”
“O que você propôs que eu fizesse. Entrar na vida dele.”
Ela mostrou, em sua atitude solene, um novo sobressalto. “E
você não gosta disso?”
“Ele gosta? Essa é a pergunta. Nós o desnudamos.
Nós o apresentamos numa bandeja. Como se chama isso? Nós o mostramos ao mundo.”
A pobre sra. Doyne, como se sob uma ameaça e diante de uma
desventura de difícil reparação, ponderou sobre essas palavras, por um
instante, com uma tristeza mais profunda. “E por que não o faríamos?”
“Porque não sabemos. Existem naturezas, existem vidas que se
retraem. Ele pode não desejá-lo”, disse Withermore. “Nunca lhe perguntamos.”
“Como poderíamos? ”
Ele ficou em silêncio por um momento. “Bem, perguntemos a
ele agora. Foi isso, afinal, que nossa iniciativa, até agora, representou. Nós
o impusemos a ele.”
“Então — se ele tem estado connosco — tivemos sua resposta.”
Withermore falou agora como se soubesse no que acreditar.
“Ele não tem estado ‘com’ nós ambos — ele tem estado contra nós.”
“Então, por que você julga...”
“O que eu julguei, de início... que o que ele
deseja é fazer-nos sentir sua simpatia? Porque, em minha simplicidade inicial,
eu estava enganado. Eu estava — não sei como chamá-lo — tão empolgado e
encantado que não compreendi. Mas compreendo, finalmente. Ele apenas queria
comunicar-se. Ele esforça-se por sair da escuridão; de lá de seu mistério, ele
dirige-se a nós; ele nos faz débeis sinais de seu horror.”
“Horror?”, disse ofegante a sra. Doyne, com o leque à altura
de sua boca.
“Do que estamos fazendo.” Ele conseguia, agora, juntar todas
as peças. “Vejo agora que inicialmente...”
“Sim, o quê?”
“Tinha-se apenas que sentir que ele estava lá, e portanto
não indiferente. E a beleza disso me enganou. Mas ele está lá como um
protesto.”
“Contra a minha Biografia?”, gemeu a sra. Doyle.
“Contra qualquer biografia. Ele está lá para preservar sua
biografia. Ele está lá para ser deixado em paz.”
“Então você desiste?”, ela quase gritou.
Ele não poderia senão concordar com ela. “Ele está lá como
um aviso.”
Por um momento, diante disso, eles trocaram um olhar
intenso. “Você está com medo!”, disse ela finalmente.
Isso o afectou, mas ele insistiu. “Ele está lá como uma
maldição!”
Com isso eles se despediram, mas apenas por dois ou três
dias; de tal forma a última palavra dela continuou a soar em seus ouvidos que,
entre sua necessidade real de satisfazê-la e uma outra necessidade a ser
atendida no momento, ele sentiu que não deveria ainda arriscar-se. Por fim,
voltou na sua hora habitual e encontrou-a em seu lugar de sempre. “Sim, estou com
medo”, anunciou, como se houvesse examinado-o muito bem e soubesse agora o que
tudo aquilo significava. “Mas imagino que você não está.”
Ela vacilou, nada respondendo. “O que você teme?”
“Bem, que se continuar eu o verei.”
“E então...?”
“Ah!, então”, disse George Withermore, “eu deveria desistir!”
Ela ponderou com seu ar altivo, porém sincero. “Penso, você
sabe, que devemos ter um sinal claro.”
“Você quer que eu tente novamente?”
Ela hesitou. “Você sabe o que significa — para mim —
desistir.”
“Ah!, mas você não precisa”, disse Withermore.
Ela pareceu cismar, mas logo continuou. “Isso significaria
que ele não tomará de mim...” Mas ela deteve-se, tomada de desânimo.
“Bem, o quê?”
“Tudo”, disse a pobre sra. Doyne.
Ele encarou-a por mais um momento. “Eu também pensei em um
sinal claro. Tentarei novamente.”
Quando ele estava se afastando, contudo, ela lembrou. “Mas
acho que esta noite nada foi providenciado — nem lâmpada nem fogo.”
“Não importa”, disse ele, do pé da escadaria; “eu encontro
as coisas".
Ela respondeu que a porta da sala estaria, de qualquer modo,
provavelmente aberta; e retirou-se novamente, como que a aguardá-lo. Ela não
teve de esperar muito; embora, com sua própria porta aberta e a atenção
concentrada, possa não haver tido uma percepção do tempo semelhante à do seu
visitante. Ouviu-o na escada, após algum tempo, e ele logo surgiu à porta,
onde, embora não houvesse se precipitado, mas antes se aproximado cautelosamente,
relutante e incerto, apareceu por fim, lívido e estupefacto.
“Eu desisto.”
“Então você o viu?”
“Na soleira da porta... guardando-a.”
“Guardando-a?” Sua face afogueou-se acima do leque.
“Claramente?”
“Imenso. Mas indistinto. Sombrio. Terrível”, disse o pobre
George Withermore.
Ela continuou a inquirir. “Você não entrou?”
O jovem afastou-se. “Ele o proíbe!”
“Você diz que eu não preciso”, ela continuou após
um momento. “Bem, então eu preciso?”
“Vê-lo?”, perguntou George Withermore.
Ela esperou um instante. “Desistir.”
“Cabe a você decidir.” Quanto a ele, conseguiu apenas cair
por fim no sofá, o rosto apoiado nas mãos. Ele não se lembraria depois durante
quanto tempo; mas se lembraria de que somente se dera conta, em seguida, de
estar sozinho entre os objetos prediletos dela. Assim que ele se pôs de pé,
contudo, com essa sensação e a de abrir-se a porta do salão, deparou-se
novamente, envolvida na luz, na calidez, no espaço róseo, com a grande presença
negra, perfumada, da sra. Doyne. Ele percebeu imediatamente, diante dos olhos
enormes, mais soturnos, que o encaravam acima da máscara do leque, que ela
havia estado lá em cima; e assim foi que, pela última vez, eles enfrentaram
juntos sua estranha indagação: “Você o viu?”, perguntou Withermore.
Ele inferiria mais tarde, pelo modo extraordinário com que
ela fechou os olhos e, como se para equilibrar-se, apertou-os com força e
durante muito tempo, em silêncio, que, em comparação com a inominável visão da
esposa de Ashton Doyne, a sua própria poderia ser classificada como uma
libertação. Ele soube, antes que ela falasse, que tudo terminara. “Eu desisto.”
Henry James