terça-feira, 30 de abril de 2019

OUTROS CONTOS

«O Espírito», por Manel do Giro.

«O Espírito»
Tristão, o Mahatma Gandhi

1284- «O ESPÍRITO»

Sentado num banco de jardim
Esperei que o espírito falasse...
Antes que alguém perguntasse,
Respondeu ele assim por mim...

- Então, lá foi dizendo...
Enquanto a lua não escurecer, 
O melhor mesmo é esquecer
Isso que tu estás querendo.

- Bolas!... mas eu não espero
Que a lua escureça...
Espírito, mal não te pareça

Mas a lua escurecer, não quero!
Para te ser sincero,
Antes desse mal eu padeça.

Manel do Giro

OUTROS CONTOS

«Amor Adiado», por Manel do Giro.

«Amor Adiado»
Poema de Manel do Giro

1283- «AMOR ADIADO»

Tu guardas o rebanho
Sem tempo pra namorar...
Não te consigo chegar,
Fico assim meio estranho!
Se um dia te apanho
Do lado de cá da rede,
Juro que mato a sede
E não mais te deixo ir...
Ainda nos havemos de rir,
Quem é que nos impede?

Manel do Giro

segunda-feira, 29 de abril de 2019

OUTROS CONTOS

''A Borboleta'', por Jaime Cortesão.

''A Borboleta''
Poema de Jaime Cortesão

1282- ''A BORBOLETA''

Filha da larva que o Inverno hostil
Gelou numa dureza concentrada
Ao aquecer do flavo Sol d’Abril
Surgiu de forma leve e curva alada.

Íris que voa, aspiração subtil
Da flor que quis ser ave, e transformada
Libra no ar a pétala gentil,
Asa da cor, paleta iridiada,

Poisa tão breve que se um sopro a agita
Ergue-se a bambolina num fulgor...
Aflora os lábios duma margarita.

Abrindo manchas, vai de flor em flor,
Flutua, anseia, embala-se e palpita...
Como um bailado trémulo da cor.

Jaime Cortesão

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

KING CRIMSON - ''Heroes"

Poet' anarquista

HERÓIS

Eu, eu serei rei
E você, você será rainha
Embora nada os afaste
Nós podemos vencê-los, apenas por um dia
Nós podemos ser heróis, apenas por um dia

E você, você pode ser mau
E eu, eu vou beber o tempo todo
Porque somos amantes, e isso é um facto
Sim, somos amantes, e isso é que conta

Embora nada nos mantenha juntos
Nós poderíamos enganar o tempo
Apenas por um dia
Nós podemos ser heróis, para todo o sempre
O que você diz?

Eu, eu gostaria que você pudesse nadar
Como os golfinhos, como os golfinhos podem nadar
Embora nada, nada vai nos manter juntos
Nós podemos vencê-los, para todo o sempre
Oh, nós podemos ser heróis, apenas por um dia

Eu, eu serei rei
E você, você será rainha
Embora nada nos afaste
Nós podemos ser heróis, apenas por um dia
Nós podemos ser nós, apenas por um dia

Eu, eu me lembro (eu me lembro)
De pé, junto à parede (na parede)
E as armas, dispararam acima de nossas cabeças (sobre nossas cabeças)
E nós nos beijamos, como se nada pudesse cair (nada pudesse cair)
E a desonra, estava do outro lado
Oh nós podemos vencê-los, para todo o sempre
Então poderíamos ser heróis, apenas por um dia

Nós podemos ser heróis
Nós podemos ser heróis
Nós podemos ser heróis
Só por um dia
Nós podemos ser heróis

Nós não somos nada, e nada vai nos ajudar
Talvez estejamos mentindo
Então é melhor não ficar
Mas poderia ser mais seguro, apenas por um dia

Oh-oh-oh-ohh, oh-oh-oh-ohh, apenas por um dia

King Crimson
Banda Britânica

sexta-feira, 26 de abril de 2019

OUTROS CONTOS

''Olhos d' Mel'', por Manel do Giro.

''Olhos d' Mel''
Manchinha, Olhos d' Mel

1281- ''OLHOS D' MEL''

Manchinha, Olhos d' Mel
Beleza incomparável...
Seu ar doce, muito afável,
Deixa ver mansidão incrível!
Esta companheira fiel
Segue-me nas ruas da vila,
Com jeito digo desorpila
Imediatamente pra casa...
A gata arrasta a asa,
Eu ralho, ela põe-se na fila!

Manel do Giro

quinta-feira, 25 de abril de 2019

OUTROS CONTOS

''A Múmia", por Fernando Pessoa.

''A Múmia"
Poema de Pessoa

A MÚMIA

I

Andei léguas de sombra
Dentro em meu pensamento.
Floresceu às avessas
Meu ócio com sem-nexo,
E apagaram-me as lâmpadas
Na alcova cambaleante.

Tudo prestes se volve
Um deserto macio
Visto pelo meu tacto
Dos veludos da alcova,
Não pela minha vista.
Há um oásis no Incerto
E, como uma suspeita
De luz por não-há-frinchas,
Passa uma caravana.

Esquece-me de súbito
Como é o espaço, e o tempo
Em vez de horizontal
É vertical.

A alcova
Desce não sei por onde
Até não me encontrar
Ascende um leve fumo
Das minhas sensações.
Deixo de me incluir
Dentro de mim. Não há
Cá-dentro nem lá-fora.

E o deserto está agora
Virado para baixo.
A noção de mover-me
Esqueceu-se do meu nome.

Na alma meu corpo pesa-me.
Sinto-me um reposteiro
Pendurado na sala
Onde jaz alguém morto.

Qualquer coisa caiu
E tiniu no infinito.

II

Na sombra Cleópatra jaz morta.
Chove.

Embandeiraram o barco de maneira errada.
Chove sempre.

Para que olhas tu a cidade longínqua?
Tua alma é a cidade longínqua.
Chove friamente.

E quanto à mãe que embala ao colo um filho morto —
Todos nós embalamos ao colo um filho morto.
Chove, chove.

O sorriso triste que sobra a teus lábios cansados,
Vejo-o no gesto com que os teus dedos não deixam os teus anéis.
Porque é que chove?

III

De quem é o olhar
Que espreita por meus olhos?
Quando penso que vejo,
Quem continua vendo
Enquanto estou pensando?
Por que caminhos seguem,
Não os meus tristes passos,
Mas a realidade
De eu ter passos comigo?

Às vezes, na penumbra
Do meu quarto, quando eu
Para mim próprio mesmo
Em alma mal existo,
Toma um outro sentido
Em mim o Universo —
É uma nódoa esbatida
De eu ser consciente sobre
Minha ideia das coisas.

Se acenderem as velas
E não houver apenas
A vaga luz de fora —
Não sei que candeeiro
Aceso onde na rua —
Terei foscos desejos
De nunca haver mais nada
No Universo e na Vida
De que o obscuro momento
Que é minha vida agora:

Um momento afluente
Dum rio sempre a ir
Esquecer-se de ser,
Espaço misterioso
Entre espaços desertos
Cujo sentido é nulo
E sem ser nada a nada.

E assim a hora passa
Metafisicamente.

IV

As minhas ansiedades caem
Por uma escada abaixo
Os meus desejos balouçam-se
Em meio de um jardim vertical.

Na Múmia a posição é absolutamente exacta.

Música longínqua,
Música excessivamente longínqua,
Para que a Vida passe
E colher esqueça aos gestos.

V

Porque abrem as coisas alas para eu passar?
Tenho medo de passar entre elas, tão paradas conscientes.
Tenho medo de as deixar atrás de mim a tirarem a Máscara.

Mas há sempre coisas atrás de mim.
Sinto a sua ausência de olhos fitar-me, e estremeço.

Sem se mexerem, as paredes vibram-me sentido.
Falam comigo sem voz de dizerem-me as cadeiras.
Os desenhos do pano da mesa têm vida, cada um é um abismo.
Luze a sorrir com visíveis lábios invisíveis
A porta abrindo-se conscientemente
Sem que a mão seja mais que o caminho para abrir-se.

De onde é que estão olhando para mim?
Que coisas incapazes de olhar estão olhando para mim?
Quem espreita de tudo?

As arestas fitam-me.
Sorriem realmente as paredes lisas.

Sensação de ser só a minha espinha.

As espadas.

Fernando Pessoa

OUTROS CONTOS

''Adolescentes'', por Tomaz Jorge.

''Adolescentes''
Poema de Tomaz Jorge

1279- ''ADOLESCENTES"

Não podes negar que bebeste leite
Da teta negra da mamã Ama

Tu mesmo o dizes
Teus lábios vermelhos
Como o sangue puro da mamã Ama
São quentes com palavras brandas

São a saudade da mamã Ama
Das brincadeiras antigas
Gajajeira e quintal de ripado
Sol nas casas de barro vermelho
Nós dois unidos em luta
Disputando o colo da mamã Ama

Nossas cabecinhas batendo
Nas tetas grandes da mamã Ama

Ela foi envelhecendo
Seus cabelos viraram brancura
Nós fomos crescendo

Do teu peito nasceram fontes de vida
Teus lábios ficaram mais cálidos
Minha menina branca por nebulosidade
Meu amor sem pecado

Meu peito também cresceu
Meu coração também cresceu
Amar-te?

Nego-me!
Agora seria desgostar a nossa mamã Ama
Seria fazê-la chorar lá no céu
Meu amor é pecado
Eu não sei a quem amo

A mamã Ama recomendou cuidado
Disse-nos que éramos irmãos

Minha branca de uma avó negra
Negra Isabel que faleceu desgostosa
Pela filha que não casou
Branca de um pai que se negou

Para mim
És aquela sempre menina bantu
— Minha irmã da infância
De olhos verdes de ternura
Boiando candidamente
Num corpo de nebulosidade nórdica

És a saudade da mamã Ama
Num corpo que faz lembrar
Um jardim de rosas brancas
Com toda a pureza de expressão bantu
Da nossa mamã Ama.

Tomaz Jorge

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

VÁRIOS ARTISTAS - ''Aromas de Abril"

Poet'anarquista

Zeca e Amigos
Cantores, compositores e músicos portugueses

quarta-feira, 24 de abril de 2019

OUTROS CONTOS

''A Consoada'', por Abel Botelho.

''A Consoada''
Consoada na Aldeia/ Alcindo Barbosa

1278- ''A CONSOADA''

Tinham chegado, havia um instante, da igreja.

No silêncio álgido da noite retinia ainda alegre o bimbalhar dos sinos. A mesa estava posta — velhos candelabros de cobre, acesos sobre a alva toalha imaculada, e em volta de cogulo fumegando as iguarias. Na cal fendilhada da parede resplandecia, esta noite carinhosamente festoada de flores, uma grande oleografia, em retábulo dourado, de uma das celebradas Virgens de Murillo, fresca, menineira, a alma toda nos olhos, e em volta pelas nuvens sua graciosa farândola de amorinhos cor-de-rosa. O ar estava tépido, embalsamado. E no retângulo negro das vidraças a opaca radiação da noite, basto rasgada pelos farrapos da neve que caía, realizava visualizações fantásticas, luarentos contrastes de diorama.

Toca de arrimar na cozinha, ao canto da chaminé, os guarda-chuvas pingando, largam-se as capas, descalçam-se as galochas, ruidosamente sacodem-se os vestidos; enquanto de rodilhão invade a sala a tropeada cantante das crianças; e erguendo-se de salto do escabelo, a esfregar os olhos, a velha serva Leonor, perdida de sono, resmoneia num alívio:

— Ora louvado seja Deus!

E já à mesa o bom do Simeão se dirigia, direito à grande poltrona de couro. Toma-lhe a direita sua mulher — irrepreensível companheira de cinquenta anos — uma pequenina e interessante nonagenária, de vagos olhos espirituais e longas mãos de cera; e à esquerda senta-se-lhe a sua boa e paciente Eugénia, a filha mais nova, de preto, fisionomia macerada e longa, repassada toda desta austera diafanidade tranquila que é feita de castidade e abstenção, de isolamento e saudade. Seguia a variegada profusão de toda a mais parentela — os filhos que vieram de longe, empregados no comércio, na magistratura, no Governo Civil em Viseu; um cunhado, capitão do 14; as respetivas esposas, tias, sobrinhas, primas — ao todo trinta e tantos comensais, afora a galhofeira e turbulenta assistência das crianças, que redonditas e chilreantes se aninhavam sobre almofadas postas nas cadeiras, avançando o queixo, cotovelos na toalha, e abrindo para as travessas com os doces uns grandes olhos ávidos.

Nos primeiros minutos, um guloso silêncio se intervalou, cortado apenas do discreto tinir de louças e metais. Só o velho patriarca de carinho insinuou à filha:

— Eugénia, então! Vá de pesares hoje…

E ela, com infinita tristeza:

— Eu não lhe dizia, pai?…

E esmorecida arredava de diante de si o prato, para melhor apoiar na mesa o cotovelo, de antebraço ao alto, e de peso o rosto afogado no lenço, a breve trecho empapado de lágrimas.

Era casada à quase sete anos. Casada com o José Ventura, um honrado e perfeito rapaz, vizinho seu na cidade, cuja garbosa imagem logo os seus olhos infantes se tinham acostumado a ver inseparável dos brinquedos. Depois, na adolescência, a mesma comunicativa e franca liberdade afeiçoara-lhes os corações, irmanando-lhes os destinos. Falado o casamento o rapaz era sério, honesto, trabalhador, tinha bens bastantes —, os pais da Eugénia consentiram. Em boa hora, mercê de Deus! Ao cabo de três anos de inalterável bonança conjugal, três inocentes eram o vivo penhor do seu afeto.

Mas as coisas da vida iam mal… Pegara brava a moléstia nas oliveiras e nos castanheiros, o «míldio» acabava de lhe devastar a vinha, já os estra ngeiros lhe não visitavam a adega, o «pulgão» comia-lhe as searas. A continuarem as coisas por aquele pendor, era uma fatalidade! 

— Tinha ali assim três anjinhos… E o mais que viria… Tinha obrigação de lhes deixar que comer!

Depois de muita hesitação, muita tormentosa luta interior, muita lágrima represada — não havia remédio… Dolorosamente concertou com a mulher e partiu para Lourenço Marques.

E ela, a pobre, ficou-se em casa dos pais, paralelamente morta para o exterior, para a luz, para a alegria, arrastando, como um burel, a sua resignada saudade, paresiada na mansidão de uma irremediável tristeza.

Com uma resignação de freira, alheia por completo ao mundo, vivendo na perpétua lembrança do marido, na exclusiva preocupação dos filhos, passou anos Eugénia sem sair de casa, levando uma vida toda crepuscular, na inteira abdicação do seu querer, colada ao dever como a lapa ao rochedo, iluminada e forte sempre a alma do alimento ázimo do Passado, o seu fino rosto austero idealizado por uma transcendente, uma inabalável expressão de confiança e de doçura… Sem um queixume, sem uma revolta, sem uma indignada apóstrofe ao Destino, ela sofria mas esperava, esperava sempre… Forte dessa poética submissão, dessa fidelidade sem termo, essa irredutível e santa conformidade de que a nossa província ainda conserva o segredo. Embalde vinham as amigas desafiá-la: «que estava dando cabo de si… Não tinha jeito nenhum…Que faria se fosse viúva!» Esquivava-se invariável às mais inocentes diversões. Ouvia, ouvia tudo, num desdenhoso silêncio, e ao cabo abanava negativamente a cabeça, cerrando as pálpebras.

Escrevia amiúde o marido. Sempre cartas consoladoras, ainda era o que valia! Passados os dois primeiros anos, estava fazendo rapidamente fortuna. Tivera uma hospedaria; agora era já senhor de prédios, tomava empreitadas de construções, era grande acionista de uma companhia mineira.

O Simeão esfregava as mãos, contente, e exclamava, descendo aos netos os olhos húmidos:

— Abençoada resolução!

Eugénia, porém, nas suas cartas, extensos e adoráveis breviários de coisas de família — a saúde dos pais, a saudade que a ralava, os progressos, as graças, as doenças dos filhinhos —, passava sempre de alto, num leve roçagar de desdém, pela questão de interesses, e invariavelmente terminava com esta
frase:

— Quando te tornarei eu a ver?… Ultimamente anunciara ele uma próxima vinda à metrópole — para matar saudades, para revigorar a saúde. Dizia o paquete em que vinha, designava o dia da partida. Foi então na modesta casa do rossio de Pinhel uma alegria doida… Não se falava noutra coisa; aos quatro ventos da cidade se confiou a consoladora notícia. Dia por dia com alvoroço se contava o tempo de viagem do vapor.

Liam-se com avidez no Século os telegramas marítimos, a ver quando davam conta das sucessivas estações da sua rota. Sem entender nada de geografia, arranjou no entanto Eugénia um mapa, e aí, de olhos húmidos, como de instinto ia seguindo o progressivo e moroso avançar do ídolo da sua alma. Fez roupitas novas aos pequenos, para aparecerem ao pai. Dava repetidas ações de graças ao Céu; o seu entusiasmo, a sua fé, o seu amor não conheciam limites.

Pela mais feliz das coincidências, acontecia que o seu José devia ter desembarcado na véspera em Lisboa, e chegaria a casa portanto exatamente naquela mesma noite de Natal! Eugénia queria de força ir, com os filhos, esperá-lo abaixo, à estação, a Vila Franca das Naves. Entretanto, frustrou -lhe a resolução a inclemência do tempo. A família opôs-se. — Sempre eram 18 quilómetros de mau caminho, desabrigado, ínvio… E a chuva, o vento, a neve… Uma imprudência! Seria o mesmo José o primeiro a censurar… — Resignou-se portanto a ficar.

Mandaram-lhe à estação a melhor alimária de cavalaria que havia na terra, a mula do senhor abade, cedida com a mais pronta decisão; e para o espírito inquieto, para a alma ansiosa de Eugénia se foram então fechando interminavelmente as horas. Repercutia-lhe doloroso o bater da pêndula no pulsar do coração, e o seu adorado marido não vinha!

Por fim, perdera já por completo a esperança. E agora à mesa perante a ingénua e comunicativa alegria do momento, a dolorida tristeza da sua alma cerrava-se cada vez mais intensa e mais profunda.

* * *

Entretanto, continuava meigamente o pai a querer animá-la:

— É que o vapor não entraria a barra ontem, filha… Isso que admira, com o mau tempo que faz?…

— Sei lá o que foi!

— É isto. Não podia ser outra coisa… Se tivesse entrado, bem vês… O comboio passa em Vila Franca às 8… Depois, pra cima, a mula do senhor abade desunha bem… São três horas da estação aqui.

— Ora! Nem que viesse a pé… — corroborou o capitão — já estava farto de cá estar!

— Tudo isto é assim, tudo muito belo… — redarguiu, apreensiva, Eugénia — mas é que eu não faço senão pensar…

— E de repente, depois de uma hesitação, com ar aflito: — Ai, Deus do Céu! Receio muito que lhe tenha sucedido alguma coisa…

— Então porquê?… — interrogou mansamente, com uma bondosa doçura incrédula, do outro lado do Simeão, a espiritual velhinha.

— Ora, a mãezinha bem sabe… As mulas diz que são amaldiçoadas. Antes queria que lhe tivessem mandado outro animal! Porque não pediram ao médico?

— Está sempre a precisar… — aclarou o pai. — Isso são histórias!

— Não são tal! — insistiu Eugénia com vigor. — No Presépio a vaca chegava palhinhas ao Menino, para o agasalhar, e vai a mula comia-as. Por isso a Senhora a amaldiçoou.

— É verdade! É verdade! Assim diz a mestra… — aqui acudiu com interesse o filho mais velho, o Josezito, abrindo em claras convicções os olhos.

— Pois sim, filha… — insistia com amor o velho a derivar — mas come…

— Não tenho vontade… Estes bolos de bacalhau.., estão ótimos!

— A mim amargavam-me como piorno!

E o bom do pai, largando a travessa, desistia.

— Valha-te Deus! — E, sempre no empenho de espertar a animação, arredando daquela festa as sombras, agora interrogava o neto: — Então que histórias foram essas que te ensinou a mestra?

— Sim senhor! — acudiu pronta a criança, com o mesmo tom de convicção escampe. — Sei essa história toda da fugida pró Egipto. Ainda há mais coisas… Ao atravessar a burrinha um tremoçal, quase seco, as ervas faziam muito barulho, dando sinal aos perseguidores… E vai a Senhora amaldiçoou-as também.

— Meu anjinho! — exclamou com ternura a avó desvanecida.

— E também está amaldiçoada a perdiz — continuou muito sério o rapaz.

— Só a pena…

— Conta lá… — disse-lhe a mãe, momentaneamente distraída.

— Foi assim… Quando Nossa Senhora fugia, um bando de perdizes, levantando-se-lhe na frente, assustadas, espantou-lhe a burrinha e deu sinal ao inimigo. Vai a Senhora exclamou: «Malditas sejais!» São José perguntou: «Por inteiro, carne e tudo?» E a Virgem respondeu: «Não, coitadas! A carne, não… Só as penas.»

Aplaudiram todos, encantados, o pequenino narrador, cujos lábios de cereja
a mãe comia de beijos.

De súbito — que estranho estrupido é este?! — no pleno sossego daquela hora alta, áspero e vibrante ressoou no pátio um significativo tropear de ferraduras. Logo um trinado silvo familiar, num segundo, quando, à instantânea impulsão do espanto, mal tinham tido ainda os convivas tempo de se erguer da mesa, já o José Ventura invadia de rompão a sala e estrangulava a mulher de comoção nos braços, balbuciando entre soluços de escachoante amor:

— A Geneta! A minha querida Geneta!

Enquanto, pequeninos e dobrados, todos em lágrimas, dele se aproximavam os pais, trémulos na ansiosa suplicação de uma carícia; e aturdida, boquiaberta, a velha Leonor exclamava, limpando os olhos à serguilha do avental:

— Parece mentira!

— Mentira me parece a mim mas é eu estar de volta outra vez! — bradava na veemência da sua ardente emoção o rapaz.

— Aqui assim na nossa casa… Junto da minha mulher, dos meus filhos, dos meus velhos, dos amigos!…

E ia e vinha, a um e outro lado, irrequieto, gárrulo, feliz… Dava abraços, palmadas, beijos, entregava-se, dispersava-se… Num trasbordar suave de efusão prodigalizava o melhor e o mais íntimo do seu ser, irreprimivelmente expandia a sua sentimentalidade represa de tantos anos.

— Mas que horas são estas de aparecer?…

— Com efeito!

— Já ninguém fazia conta de ti!

— Que ralações aqui iam!…

— Faço ideia… Bem me lembrou! — disse o José Ventura, olhando com amor a mulher. — Mas que querem?… O comboio vinha atrasado, os caminhos estão péssimos!

— Louvado seja Deus Nosso Senhor! — murmurou de mãos postas a santa velhinha, considerando o filho.

— Como tudo isto me parece bem! — exclamou num ímpeto o recémchegado, sentando-se, com todos os mais, à mesa. — Que bela compensação a todas as minhas penas e trabalhos! Que saúde ao corpo, que refrigério à alma!

— Comes? — perguntou-lhe o pai.

— Ai, não! Trago uma fome de pedras… Vou já começar aqui por estes ovos verdes.

— Agora também eu como! — rompeu, sentando-se junto dele, a mulher.

E reatando conversa, patriarcalmente, como se de princípio também ali estivesse, como se nada de anormal, desde o começo da ceia, se houvera ali passado, disse ainda, todo natural, o José:

— Mas que conversa era essa então com que estavam, de maldições?… Eu
ainda ouvi…

— Falava-se de quando foi da fuga da nossa Senhora, com São José e o Menino. Diz que ela amaldiçoara então a mulinha do Presépio, os tremoços, as perdizes…

— E então dos noitibós e das cotovias, não sabem?… Disse o José, sorrindo.

— O quê!?

— Ainda me lembro!

— Sabes mais do que nós…

— Pois então! Contava-me aquela nossa criadita velha, a Emília… Ora espera, como era?… Ah! Quando Nossa Senhora ia a caminho, os bisbilhoteiros dos noitibós iam na frente, a gritar: «Ela aqui vai! Ela aqui vai!»

E atrás as cotovias, apagando as pegadas da burra com as patitas, diziam:

«Mentira! Mentira!» Por isso Nossa Senhora abençoou estas e amaldiçoou
aqueles.

— É verdade, mamã? — perguntou com interesse o Josezito.

— O papa nunca mente.

E a cada instante o papá, radiante, cheio de si, na amorosa incidência da atenção de todos, e com os filhos pendurados em cacho dos ombros, do colo, do pescoço, demandava a mulher com os olhos rasos de água, numa expressão fundente de ternura:

— A minha Geneta!

Abel Botelho

terça-feira, 23 de abril de 2019

OUTROS CONTOS

''A Gata Bigas", por Manel do Giro.

''A Gata Bigas"
Bigas, a Resgatada

1277- ''A GATA BIGAS"

A Bigas tira-me do sério
Pela noite no reboliço...
Mando parar com isso,
Largo um impropério!
É doutro hemisfério...
Chego eu a pensar,
Ordens não quer acatar
Pouca sorte a minha...
Quando chamo santinha,
Ainda se põe a gozar!!

A pinta preta no nariz
Não engana ninguém,
O que ela sabe bem
É não fazer o que se diz.
Se alguém a contradiz
Sobe escadas na brasa,
No quarto extravasa
Pra descer logo a seguir...
Eu grito, não quer ouvir,
É o diabo cá em casa

Manel do Giro

OUTROS CONTOS

«Horas Mortas», por Alberto de Oliveira.

«Horas Mortas»
Pietà/ Michelângelo

1276- «HORAS MORTAS»

Breve momento após comprido dia
De incómodos, de penas, de cansaço
Inda o corpo a sentir quebrado e lasso,
Posso a ti me entregar, doce Poesia.

Desta janela aberta, à luz tardia
Do luar em cheio a clarear no espaço,
Vejo-te vir, ouço-te o leve passo
Na transparência azul da noite fria.

Chegas. O ósculo teu me vivifica
Mas é tão tarde! Rápido flutuas
Tornando logo à etérea imensidade;

E na mesa em que escrevo apenas fica
Sobre o papel — rastro das asas tuas,
Um verso, um pensamento, uma saudade.

Alberto de Oliveira

segunda-feira, 22 de abril de 2019

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

THE POGUES - ''Summer in Siam"

Poet'anarquista

VERÃO NO SIAM

Quando é verão no Siam
E a lua cheia de arco-íris

Quando é verão no Siam
E vamos passar por muitas mudanças

Quando é verão no Siam
Então, tudo que eu realmente sei

É que eu realmente estou
No Verão em Siam

The Pogues
Banda Irlandesa

sábado, 20 de abril de 2019

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

SUPERTRAMP - ''Goodbye Stranger"

Poet'anarquista

ADEUS ESTRANHO

Ontem de manhã,bem cedo
Eu levantei antes de alvorecer, e
Realmente, aproveitei minha paragem
Mas tenho que ir embora

Como um rei sem castelo
Como uma dama sem trono
Fico muito disposto de manhã
E tenho que me mandar

Agora acredito no que você diz
É a verdade indiscutível
Mas as coisas precisam ser do meu jeito
Para manter-me jovem

Como um barco sem âncora
Como um escravo sem correntes
Apenas a opinião daquelas doces mulheres
Emite um arrepio nas minhas veias

E avanço de forma brilhante
Reluzindo totalmente novo
Nunca olharei para trás
Meus problemas serão poucos

Adeus estranho,foi muito agradável
Espero que você encontre o paraíso
Conforme o seu ponto de vista
Espero que seus sonhos (todos) tornem-se reais

Adeus Mary, adeus Jane
Nos encontraremos de novo
Não sinta tristeza, não sinta vergonha
Volte amanhã, não sinta dor

Doce devoção
Isto não é para mim
Apenas me dê um aceno
E me liberte
E a Terra e o Oceano
Distante
É a vida que tenho escolhido
A cada dia
Adeus Mary, adeus Jane
Nos encontraremos de novo

Agora alguns destes (sentimentos) estão presentes, outros não,
E alguns você apenas não pode citar,
Alguns vão querer aparecer, e outros nem isso
Com alguns está tudo bem

Você pode rir das minhas maneiras
Isto nunca vai me aborrecer
Diga que o Diabo é meu Redentor
Mas eu não ando desatento

E avanço de forma brilhante
Reluzindo totalmente novo
Nunca olharei para trás
Meus problemas serão poucos

Adeus estranho, foi muito agradável
Espero que voce encontre seu paraíso
Tentei ver seu ponto de vista
Espero que todos seus sonhos realizem

Adeus Mary, adeus Jane
Sempre nos encontraremos novamente
Não sinta desculpa, não sinta vergonha
Venha amanhã não sinta dor

Doce devoção
Isto não é para mim
Apenas me dê um aceno
E me liberte
E a Terra e o Oceano
Distante
É a vida que tenho escolhido
A cada dia
Agora estou partindo, tenho de ir, pegar a estrada
Estou dizendo isso novamente
Oh sim estou partindo, tenho de ir, tenho de ir
Desculpe eu devo dizer a você
Adeus Mary, adeus Jane
Nos encontraremos de novo

Eu acredito, sim eu tenho de deixá-las

Supertramp
Banda Britânica

OUTROS CONTOS

''Fragância", por Bram Stoker.

''Fragância"
Poema de Bram Stoker

1275- ''FRAGÂNCIA''

Fragrância penetrante irradia pensamento
Minha respiração com medo
É aniquilada no suspiro da sua respiração
Sedução estranha ao vento
Meu corpo faz atacar os seus movimentos

É o seu toque febril na minha pele
Com carinho enche a sua busca com fervor,
E eu dominado por sondar seus lábios
Desesperado no encontro com sua boca
Eu espero me derreter nisso
Num grito para silenciar

Por favor você fez os meus desejos
Vítima do seu apetite feroz e culminante
E eu pareço chocolate
Drácula
Inimigo cruel do homem
Que da minha paixão você faz o seu amor
Acendendo o meu coração na pulsação de uma ilusão

Você derrete minha pele
Qual metal para fogo incandescente
A degustar o vinho de saída
Satisfazendo seu desejo no meu peito

Meu príncipe demónio perseguido
Assassino que faz o seu ninho em paixões humanas
Cavalheiro agora sou seu escravo na sensação
São as lágrimas que me inundam já por causa de tão terrível aflição
Ser amante de uma paixão tão fervorosa
Conseguir você da minha frustração de diamantes no coração.

Bram Stoker

sexta-feira, 19 de abril de 2019

OUTROS CONTOS

''Ataque Cardíaco", por Manel do Giro.

''Ataque Cardíaco"
Manel do Giro

1274- ''ATAQUE CARDÍACO''

Inquieto com o bisneto
(Estava sempre a suceder)
Acabou por se estender,
Nunca mais ficou erecto.
Não lhe vê bom aspecto
E o coracão fraco desliga,
Manel do Giro ainda fez figa
Mas nada disso resultou...
Ali mesmo se finou
O bisavô Manel Biga.

Manel do Giro

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

ROBERTO CARLOS & JENNIFER LOPEZ
''Chegaste"

Poet'anarquista

CHEGASTE

Tanto tempo já vai caminhando
E ainda me vejo recordando 
Lágrimas rolaram dos meus olhos, enxuguei mais de uma vez 
Tenho algumas marcas que ficaram em meu sorriso nesses anos 
E também lembranças tão bonitas que o tempo não desfez 

Quem diria que você viria sem dizer que vinha
Porque nunca é tarde 
Para apaixonar-se 

Chegaste
Senti na minha boca um te quero 
Como um doce com caramelo 
Necessitava um amor sincero 

Chegaste 
E ouvi da tua boca um te quero 
Pra se apaixonar sempre é tempo 
Necessitava um amor sincero 

E agora que eu conheço os caminhos
Que me levam para seus braços 
Agora que o silêncio é uma carícia que a felicidade traz 
Você e o seu sorriso iluminam minha vida e meus espaços 
E chega me dizendo num sorriso não me deixe nunca mais 

Quem diria…

Roberto Carlos & Jennifer Lopez
Dueto Brasileiro/ Norte-Americano

BOA PÁSCOA!

Há quem sofra por amor aos outros, pregado ou não a uma cruz...

Maria Madalena
JPGalhardas/ Lápis

Cristo Crucificado
JPGalhardas/ Rotering

A Face Oculta de Cristo
JPGalhardas/ Tinta da China
(Cercadura doirada a pingos de vela)

Cristo em Agonia
JPGalhardas/ Carvão 
(Em colchão de serapilheira)

Cristo Alucinando
JPGalhardas/ Esferográfica

Último Suspiro de Cristo
JPGalhardas/ Tinta da China

quarta-feira, 17 de abril de 2019

OUTROS CONTOS

''São Rosas", por Lenam Agib.

''São Rosas"
Sepultura de Amigo

1273- ''SÃO ROSAS"

Vejo rosas senhor
Renascidas na primavera...
Meu coracão desespera,
São rosas do nosso amor!
Sossega em paz esta dor
Junto da tua sepultura,
Eternamente perdura
O que não posso separar...
Aqui estou eu a cuidar
Das rosas com ternura!

Lenam Agib

OUTROS CONTOS

''Senhora da Consolação", por Manel Biga.

''Senhora da Consolacão"
Imagem da Santa

1272- ''SENHORA DA CONSOLAÇÃO''

Senhora da Consolação
Da ermida do Calvário,
Ouve o meu rosário
Que te fala ao coração.
Vieste doutra nação
Abençoar este povo,
Em boa hora louvo
Agora seres portuguesa...
Contemplo tua beleza,
E com ela me comovo!

Manel Biga

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

MICHAEL JACKSON - ''Earth Song''
Poet'anarquista

CANÇÃO DA TERRA

O que aconteceu com o nascer do sol?
O que aconteceu com a chuva?
O que aconteceu com todas as coisas,
Que você disse que iríamos ganhar?
O que aconteceu com os campos de extermínio?
Essa é a hora.
O que aconteceu com todas as coisas,
Que você disse que eram nossas?
Você já parou para pensar em
Todo o sangue derramado antes de nós?
Você já parou para pensar que
A Terra e os mares estão chorando?

Aaaaaaaaah Oooooooooh
Aaaaaaaaah Oooooooooh

O que fizemos para o mundo?
Olhe o que fizemos.
O que aconteceu com toda a paz?
Que você prometeu a seu único filho?
O que aconteceu com os campos floridos?
Essa é a hora.
O que aconteceu com todos os sonhos
Que você disse serem nossos?
Você já parou para pensar
Sobre todas as crianças mortas pela guerra?
Você já parou para pensar que
A Terra e os mares estão chorando?

Aaaaaaaaah Oooooooooh
Aaaaaaaaah Oooooooooh

Eu costumava sonhar
Costumava viajar além das estrelas
Agora já não sei onde estamos
Embora saiba que fomos muitos longe

Aaaaaaaaah Oooooooooh
Aaaaaaaaah Oooooooooh

Aaaaaaaaah Oooooooooh
Aaaaaaaaah Oooooooooh

O que aconteceu com o passado?
(O que aconteceu connosco?)
O que aconteceu com os mares?
(O que aconteceu connosco?)
O céu está caindo
(O que aconteceu connosco?)
Não consigo nem respirar
(O que aconteceu connosco?)
E a apatia?
(O que aconteceu connosco?)
Eu preciso de você.
(O que aconteceu connosco?)
E o valor da natureza?
(ooo, ooo)
É o ventre do nosso planeta.
(O que aconteceu connosco?)
E os animais?
(O que aconteceu connosco?)
Fizemos de reinados, poeira.
(O que aconteceu connosco?)
E os elefantes?
(O que aconteceu connosco?)
Perdemos a confiança deles?
(O que aconteceu connosco?)
E as baleias chorando?
(O que aconteceu connosco?)
Estamos destruindo os mares
(O que aconteceu connosco?)
E as florestas?
(ooo, ooo)
Queimadas, apesar dos apelos
(O que aconteceu connosco?)
E a terra prometida?
(O que aconteceu connosco?)
Dilacerada pela ganância
(O que aconteceu connosco?)
E o homem comum?
(O que aconteceu connosco?)
Não podemos libertá-lo?
(O que aconteceu connosco?)
E as crianças morrendo?
(O que aconteceu connosco?)
Não consegue ouvi-las chorar?
(O que aconteceu connosco?)
O que fizemos de errado?
(ooo, ooo)
Alguém me fale o porquê
(O que aconteceu connosco?)
E os bebés?
(O que aconteceu connosco?)
E os dias?
(O que aconteceu connosco?)
E toda a alegria?
(O que aconteceu connosco?)
E o homem?
(O que aconteceu connosco?)
O homem chorando?
(O que aconteceu connosco?)
E Abraão?
(O que aconteceu connosco?)
E a morte de novo?
(ooo, ooo)
A gente se importa?

Aaaaaaaaah Oooooooooh
Aaaaaaaaah Oooooooooh

Michael Jackson
Cantor e Compositor Norte-Americano

OUTROS CONTOS

«A Roda», por Aimé Césaire.

«A Roda»
Poema de Aimé Césaire

1271- «A RODA»

A roda é a mais bela descoberta do homem e a única
existe o sol que roda
a terra que roda
existe o teu rosto que roda sobre o eixo do teu pescoço
quando choras
mas vós minutos não enrolareis na bobina da vida
o sangue lambido
a arte de sofrer aguçada como cotos de árvore
pelas facas do inverno
a corça louca de sede
que vem mostrar-me à beira de água
teu rosto de escuna desmastrada
teu rosto
como uma aldeia adormecida no fundo de um lago
e que renasce na manhã da relva
semente dos anos

Aimé Césaire
(Tradução de Armando da Silva Carvalho)

OUTROS CONTOS

«O Mistério da Palavra», por Adolfo Simões Muller.

«O Mistério da Palavra»
Poema de Adolfo Simões Muller

1270- «O MISTÉRIO DA PALAVRA»

Porque será que uma palavra aflora
correspondendo logo ao nosso apelo, 
com a medida justa, o justo emprego,
enquanto noutras vezes se demora
(rimmel, bâton, um jeito no cabelo...)
e chega em voo cego de morcego?

Porque será que uma palavra quase
vai buscar outra dentre a multidão,
e esta segunda, uma terceira e quarta,
e assim nasce de súbito, uma frase,
um belo verso, a quadra ou a canção,
a sentença de morte, a tua carta?

Porque será que uma palavra, impávida,
resiste aos séculos e fica jovem,
ou morre (cancro, enfarte, dor reumática),
enquanto outra, novinha, surge grávida,
e aos nove meses os filhinhos chovem
que é um louvar a Deus e à gramática?

Porque será que a rima atrai a rima,
e a rima nova é como o vinho novo
que salta e espuma e baila na garganta?
E outra rima! Outras rimas! A vindima
das palavras não pára... E, no renovo,
o poema é estrela que alumia e canta!

Porquê esta mistério, Poesia?
És tal e qual a electricidade:
existe mas nem sempre a gente a vê.
Porque foges um ano e mais um dia
e voltas, alta noite, claridade?
Porquê? Porque será? Porquê? Porquê?

Adolfo Simões Muller