Mia Couto
Escritor Moçambicano
Poet'anarquista publica a partir de hoje, 5 de Março de 2011, o livro de contos com o título «Contos do Nascer da Terra», da autoria do escritor moçambicano Mia Couto. Um conto por semana, de um total de 36 contos a serem publicados de forma aleatória. Já tinha feito referência a este escritor no espaço «Amigos d'Arte», a 3 de Fevereiro de 2010, com publicação da sua biografia, bibliografia e um poema do seu único livro de poesia editado, «Raiz de Orvalho e Outros Poemas». E o conto desta semana é...
Poet'anarquista
I CONTO - «Raízes»
«Raízes»
Frida Kahlo
RAÍZES
Uma vez um homem deitou-se, todo, em cima da terra. A areia lhe
servia de almofada. Dormiu toda a manhã e quando se tentou levantar não
conseguiu. Queria mexer a cabeça: não foi capaz. Chamou pela mulher e
pediu-lhe ajuda.
- Veja o que me está a prender a cabeça.
A mulher espreitou por baixo da nuca do marido, puxou-lhe
levemente pela testa. Em vão. O homem não desgrudava do chão.
- Então, mulher? Estou amarrado?
- Não, marido, você criou raízes.
- Raízes?
Já se juntavam as vizinhanças. E cada um puxava sentença. O
homem, aborrecido, ordenou à esposa:
- Corta!
- Corta, o quê?
- Corta essa merda das raízes ou lá o que é…
A esposa puxou da faca e lançou o primeiro golpe. Mas logo parou.
- Dói-lhe?
- Quase nem. Porquê me pergunta?
- É porque está sair sangue.
Já ela, desistida, arrumara o facão. Ele, esgotado, pediu que alguém
o destroncasse dali. Me ajudem, suplicou. Juntaram uns tantos, gentes da
terra. Aquilo era assunto de camponês. Começaram a escavar o chão, em
volta. Mas as raízes que saíam da cabeça desciam mais fundo que se podia
imaginar. Cavaram o tamanho de um homem e elas continuavam para o
fundo. Escavaram mais que as fundações de uma montanha e não se
vislumbrava o fim das radiculações.
- Me tirem daqui, gemia o homem, já noite.
Revezaram-se os homens, cada um com sua pá mais uma enxada.
Retiraram toneladas de chão, vazaram a fundura de um buraco que nunca
ninguém vira. E laborou-se semanas e meses. Mas as raízes não só não se
extinguiam como se ramificavam em mais redes e novas radículas. Até que
já um alguém, sabedor de planetas, disse:
- As raízes dessa cabeça dão a volta ao mundo.
E desistiram. Um por um se retiraram. A mulher, dia seguinte,
chamou os sábios. Que iria ela fazer para desprender o homem da inteira
terra? Pode-se tirar toda a terra, sacudir as remanascentes areias, disse
um. Mas um outro argumentou: assim teríamos que transmudar o planeta
todo inteiro, acumular um monte de terra do tamanho da terra. E o
enraizado, o que se faria dele e de todas suas raízes? Até que falou o mais
velho e disse:
- A cabeça dele tem que ser transferida.
E para onde, santos deuses? Se entreolharam todos, aguardando
pelo parecer do mais velho.
- Vamos plantar a cabeça dele lá!
E apontou para cima, para as celestiais alturas. Os outros devolveram
a estranheza. Que queria o velho dizer?
- Lá, na lua.
E foi assim que, por estreia, um homem passou a andar com a
cabeça na lua. Nesse dia nasceu o primeiro poeta.
Mia Couto
1 comentário:
Conto lindo, lindo, lindo. Adorei como termina: "Nesse dia nasceu o primeiro poeta".
Fico à espera dos outros contos...
Enviar um comentário