quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

FRANZ SHUBERT 
«Waltz In B Minor, Op. No 6, D 145»

Poet'anarquista

Franz Shubert
Compositor e Pianista Germânico

OUTROS CONTOS

«Poema de Amor», por Fernando Namora.

«Poema de Amor»
Pintura de Ernesto García Peña

1217- «POEMA DE AMOR»

Se te pedirem, amor, se te pedirem 
que contes a velha história 
da nau que partiu 
e se perdeu, 
não contes, amor, não contes 
que o mar és tu 
e a nau sou eu. 

E se pedirem, amor, e se pedirem 
que contes a velha fábula 
do lobo que matou o cordeiro 
e lhe roeu as entranhas, 
não contes, amor, não contes 
que o lobo é a minha carne 
e o cordeiro a minha estrela 
que sempre tu conheceste 
e te guiou — mal ou bem. 

Depois, sabes, estou enjoado 
desta farsa. 
Histórias, fábulas, amores 
tudo me corre os ouvidos 
a fugir. 

Sou o guerreiro sem forças 
para erguer a sua espada, 
sou o piloto do barco 
que a tempestade afundou. 

Não contes, amor, não contes 
que eu tenho a alma sem luz. 

...Quero-me só, a sofrer e arrastar 
a minha cruz. 

Fernando Namora

quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

TANGERINE DREAM - «Loved by the Sun»

Poet'anarquista

Tangerine Dream
Banda Germânica

OUTROS CONTOS

«Traição», por José Luís Peixoto.

«Traição»
Traição/ Gustavo Ludgero

1216- «TRAIÇÃO»

Hoje é dia 21 de Outubro de 2008. Estou a beber chá.

O meu marido anda lá fora, no quintal. Na paisagem imóvel da janela, uma brisa ligeira nas folhas mais altas, vejo-o às vezes. Furtivo, o meu marido passa com a pá, ou o ancinho, ou a mangueira, ou a tesoura de podar. Na nossa casa, os catálogos de jardinagem terminam sempre como leitura de casa de banho. O meu marido anda de botas e chapéu. Não há sol, mas aquele é o chapéu da jardinagem. Também as calças dobradas na canela e as botas. Agradeço a Deus pela jardinagem. Obrigado, Senhor, pela jardinagem. O meu marido precisa de distracções. Não lhe chega a televisão, adormece. O meu marido é doente cardíaco. O vidro da janela é grosso e eu ouço mal. Ouço bem um apito fininho, constante, branco, uma linha, ouço mal tudo o resto. O vidro da janela, eu ouço mal, mas sei que o meu marido está a assobiar. As pequenas plantas fazem-no feliz.

Actualmente, o meu clitóris não é mais sensível do que qualquer outra parte do meu corpo. É feito de pele, como os meus ombros, cotovelos, joelhos. Creio que endureceu. Ainda é de tarde, são quase cinco horas, mas já se sente o início da noite. Aqui, nos arredores de Reggensburg, há pássaros que só aparecem a esta hora. Não sei porquê, alguém deve saber. São pássaros pequenos que fazem barulho. No passado, o meu clitóris deu-me grandes alegrias. Marcou o meu epicentro. Sou uma mulher, não deixei de ser uma mulher, mas agora tenho outros interesses. Não sei ainda quais são. Talvez a mágoa. Talvez a mágoa seja agora um dos meus interesses. Presto bastante atenção à mágoa, é certo. Neste verão que terminou, parecia-me que a mágoa tinha um cheiro entre os primeiros instantes de cada dia, uma nesga de luz matinal na janela do quarto. O meu marido na cozinha, acordado há horas, as chávenas a chocarem umas nas outras, e eu a decidir se estava acordada, se era outra manhã, se queria outra manhã, acordar, e a parecer-me que a mágoa tinha um cheiro. O meu marido nunca se apercebeu. O meu marido esqueceu-se de tocar-me há talvez quinze, dezasseis anos, nunca mais se lembrou. Em Fevereiro, faço setenta anos. Esta parte do ano, Outubro, ficou sempre ligada na minha cabeça aos Outubros de quando era adolescente e ia para a escola. Na minha imagem mental dos meses, agora parece maio. Há cinco meses, em maio, eu ainda estava chocada. Ontem, ao lavar-me, passei a mão pelo clitóris e, instintivamente, admirei-me. Por instantes, pensei que pudesse ser uma verruga, um sinal, um caroço.

Os arredores de Reggensburg têm asseio, os muros estão sempre acabados de pintar. Temos vizinhos a boa distância. Gosto do vento, mesmo daquele vento frio a meio do inverno. Reggensburg fica a cerca de 225 quilómetros de Amstetten. Nunca fiz essa viagem, nem para um lado e nem para o outro. Quando saímos de Amstetten, fomos viver para Dortmund, ficámos lá dez anos. Depois, fomos para Weimar, ficámos lá dois anos, até o meu marido se reformar. Podíamos ter procurado casa em qualquer lado. O meu marido insistiu na Baviera porque ficava perto da Áustria, acabamos por concordar com Reggensburg. Quando pede alguma coisa, o meu marido gagueja. Às vezes dizia: Amstetetetetetten. Sozinho, planeava fins-de-semana em Amstetten. Dizia: vivemos cinco dos nossos melhores anos naquela cidade, porque não queres voltar? Eu começava por negar que não quisesse voltar. Depois, inventava desculpas sem tentar sequer fazer sentido. Não sei o que ele pensava de mim. Até podemos ficar no teu hotel, dizia o meu marido, sem saber o que dizia. Literatura. Adorava que o meu marido gostasse de ler. Tenho a certeza de que adoraria os russos: Tolstoi, Dostoievski, Gogol. Ah, Gogol. Quando quis trabalhar, o meu marido conseguiu-me uma posição a gerir uma pousada quase no centro de Amstetten. Após uma semana de serviço, meados de Setembro, o Josef possuiu-me na cama dupla do quarto 28.

Sempre usámos este verbo um pouco antigo, talvez um pouco livresco, século XIX. Quando o Josef começava a rosnar, eu dizia-lhe: possui-me, possui-me. Tenho de falar dos seus olhos azuis. Os olhos azuis do Josef brilhavam, seriam suficientes para iluminar uma sala. Não estou a exagerar. Ou talvez só um pouco. Quando o Josef me sorriu, me tratou por menina, quando me apontou o olhar cheio de entoações, desfiz-me invisivelmente. A partir daí, tratou-se de seguir um sentido. Às vezes, quando deixávamos cair a cabeça sobre as almofadas da cama, eu ficava a fazer-lhe festas no pequeno bigode colado aos lábios. Não era ridículo. Eu sorria, enquanto a nossa respiração abrandava ao mesmo tempo. Depois, ele olhava para mim e sorria também. O Josef sabia sorrir. À noite, o meu marido contava-me todos os pormenores da vida dos seus colegas, mas eu não o ouvia. O Josef gostava de sexo de pé. Eu inclinava-me na direcção da janela e ele ficava por trás, apreciava a paisagem. Em certos assuntos, muitos, eu considerava o Josef um poeta. Amstetten era uma cidade sem sobressaltos, as campainhas das bicicletas, as estações do ano nos dias certos. O Josef tinha umas pernas firmes, que eu gostava de apertar no interior das minhas.

Quando estava bom tempo, aos sábados, o meu marido e eu fazíamos piqueniques. O Josef tinha cinquenta e oito anos, mais quatro do que eu, e bastava que me tocasse com um dedo. Se nos cruzávamos na rua, eu tremia. Ninguém podia suspeitar. Ele sorria sem olhar para mim. Uma vez, estava num restaurante, e o meu marido perguntou-me: estás com frio? Era o Josef. Quando ganhei coragem para olhar melhor, não era o Josef, não era sequer parecido, mas tremi, não consegui controlar-me. Quando o Josef punha a cabeça no meio das minhas pernas, eu fazia-lhe festas no cabelo. Havia semanas em que nos víamos duas vezes, três vezes, havia semanas em que não nos víamos. Dependia de muitos factores. Conheci o Josef quando tive aulas de dança, salsa. Estive em três aulas. Depois de conhecê-lo, desisti. Deixei de ter tempo. Precisava de todos os instantes para pensar nele.

O meu marido estava muito triste na noite em que me contou que tínhamos de partir para Dortmund. Eu disse-lhe algumas frases inacabadas, palavras incompletas. O meu marido disse: pois é. O meu marido nasceu na Saxónia, a meia dúzia de quilómetros de Dresden e, no entanto, já tinha adoptado um sotaque austríaco. Artificial, enjoativo, mas sentido. O meu marido é obediente. O Josef tinha verdadeiro sotaque austríaco, claro. Os seus érres davam-me tesão. Durante anos, eu corava só de lembrar-me dos seus érres. Nessa noite, o meu marido tinha a cabeça entre as mãos, a realidade. Eu não podia fazer outra coisa. Desde esse dia, até à partida, eu e o Josef comemo-nos como animais, como lobos, em todas as camas da pousada. Engolimo-nos. Em Dortmund, eu sonhava com ele. No duche. Em Weimar, comecei a conformar-me. Em Weimar, tivemos uma cadela, Lassie. O meu marido apareceu com ela pequenina, quando chegámos. Morreu uma semana antes de partirmos para Reggensburg, bem-educada. Conformei-me que não voltaria a ver o Josef. Por isso, nunca quis voltar a Amstetten. O Josef era um segredo para sempre. Havia momentos em que me parecia que só tinha existido na minha imaginação, mas isso é algo que me acontece com todo o passado. Há momentos em que me parece claramente que algum detalhe do passado, a minha mãe, sexo oral quando namorava com o meu marido, sopa de abóbora, só existiu na minha imaginação.

Eu não tinha qualquer fotografia do Josef. Mesmo já em Reggensburg, havia vezes em que me sentava no sofá, de braços cruzados, a esforçar-me para recordar o seu rosto. Quando não conseguia, ia à cozinha e fazia panquecas. Era uma espécie de compensação e, ao mesmo tempo, um hábito. Depois, noutros dias, via-o em tudo. Havia um calor. O rosto dele era como uma chama. Tentei aprender a bordar. Via o rosto dele nos novelos de linha, no pano esticado. Foi talvez por isso que, quando apareceu a imagem dele na televisão, não me admirei logo. Acho que não gerei sequer um pensamento, não reagi. Analisando, reconheço agora que a ordem dos meus instintos perante a sua imagem seria não verbalizar. Foi com alguns segundos de atraso que me apercebi que o Josef, o Josef, o meu Josef, estava na televisão. Não sei qual foi o meu aspecto. Perdeu-se para sempre a imagem do meu rosto porque estava sozinha, não estava ao espelho, estava em brasa, a ouvir. Eu não queria acreditar. Foi em abril. Quando acordo a meio da noite com pesadelos, acredito por instantes que posso sentir-me aliviada, que não é real, mas depois, acordada, o pesadelo é ainda mais intenso porque é real. O Josef punha a língua toda dentro da minha boca. Abril, abril, quando desliguei a televisão, cambaleei pela sala. Agarrei-me a móveis para não cair. E pensei: não. Pensei: não. Até cheguei a sorrir. Não pode ser. Em roupão, tirei o carro da garagem e fui comprar revistas e jornais. Nenhum tinha a notícia. Liguei o rádio do carro e não falavam de outra coisa. No dia seguinte, todos os jornais tinham a notícia.

O Josef tinha mantido a filha presa na cave durante vinte e quatro anos. Tinha-a violado repetidamente e tinha tido sete filhos com ela, um dos quais morreu. Na televisão e no rádio, chamavam-lhes filhos-netos. A filha do Josef e alguns dos seus filhos-netos viviam na cave. Um deles, uma rapariga com dezanove anos, nunca tinha visto o sol. Eu era obrigada a ouvir o meu marido comentar esta história e a repetir: em Amstetten, quem diria em Amstetten, e nós lá, quem diria. E perguntava-me se eu conhecia aquela rua. Eu respondia. Já me tinha perdido naquela parte da cidade. Este ano, em abril, choveu muito pouco. Tenho saudades de quando chovia em Abril. Eu fixava a imagem do Josef na televisão e acreditava que os seus olhos líquidos me viam. Não tinham envelhecido. Eram os mesmos. Os lábios eram os mesmos. O Josef traiu o nosso segredo com o seu próprio segredo. Mas, agora, o seu segredo já não existe, toda a gente o conhece. Agora, só existe o nosso. 

José Luís Peixoto

quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

THE ROLLING STONES - «Hoo Doo Blues»

Poet'anarquista

HOO DOO BLUES

Agora, quando sua mulher começar a atinar, engraçado
E começar a correr à volta
É melhor levá-la a alguém
Porque ela está afim para colocá-lo para baixo
Melhor deixá-la ir
Tão rápido quanto você puder
Você sabe que a menina
Vai com todo o homem

Você conhece minha mulher ela me pegou de surpresa
Em algo que eu não posso entender
Como eu a olhar para ela correndo com outro homem
Depois de tudo o que fiz, tudo neste mundo que eu posso
Você sabe que essa menina
Ela vai com todo o homem

Ela pegou todo o meu dinheiro e gastou por toda a cidade
E quando eu quero amá-la
Agora ela diz que não pode ser
Agora eu ando e choro
Lágrimas secam à distância com a mão
Você sabe que a menina
Ela vai com todo o homem

The Rolling Stones
Banda Britânica

quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

OUTROS CONTOS

«O Vagabundo de Lisboa», por João Ubaldo Ribeiro.
Imagem relacionada
O Vagabundo/ Charlie Chaplin

1215- «O VAGABUNDO DE LISBOA»

Subindo aqui a avenida que dá para os fundos de minha casa, cumprimentando os passantes, parando para ver os meninos jogando bola no parque e assobiando uma musiquinha cujo nome não sei mas que, nesta manhã, não me sai da cabeça, detenho-me na Pastelaria Brasil-América, para comprar uma caixa de fósforos. Não sou muito chegado a essa pastelaria — cuja única qualidade (e, assim mesmo, questionável) é ser perto aqui de casa — porque as iscas que nela servem são de baixa qualidade e há um irmãozinho lusitano que nela trabalha que gosta de me gozar. Mas esqueci o isqueiro em casa, tenho de comprar fósforos. Encontro o mesmo irmãozinho, ele me diz o preço, eu me confundo todo com as moedas, ele me goza outra vez. “Um dia eu ainda lhe pego”, penso eu, fingindo que não ligo, mas muito mal-intencionado intimamente.

E prossigo avenida Estados Unidos acima, para pegar o metrô, que aqui se chama metro. O dia não está nem quente nem frio, há um belo sol, as sacadas dos apartamentos estão todas floridas e vou ao Rossio em missão de vagabundagem. Acho-me um cidadão lisboeta e me vejo tomado de um certo sentimento de orgulho, ao cruzar com minhas concidadãs, a maioria plenamente imbuída do mesmo espírito primaveril e portanto usando umas blusinhas leves por cima da pele e balançando todos os tipos de simpáticos e risonhos peitinhos, como é — o Senhor seja louvado — do hábito de tantas raparigas aqui. Respiro fundo, paro um pouco na subida, aproveito para prestar atenção na moça que de lá vem, usando um chapeuzinho e uma espécie de colete em cima da tal blusinha, a qual mal esconde os tais peitinhos. Decido que não será necessária uma discrição excessiva, consideradas as circunstancias atmosféricas tão amenas e mais a minha exuberante lusofilia, de forma que, com tanta elegância quanto é possível aos baianos, ponho as mãos nos bolsos do casaco, detenho o passo e espero a moça passar, com interesse. Ela ajeita a mecha do cabelo que lhe sai por um lado do chapéu, sorri vagamente como se estivesse lembrando de repente alguma coisa agradável e passa triunfal a meu lado, reconhecendo tácita e cordialmente o meu silencioso cumprimento e meus encômios à boa forma de seu equipamento, tão afavelmente mostrado. Uma safadeza minúscula e inocente, que não me deixa remorsos e me faz achar o resto do caminho até o metro muito agradável. Safadezazinha, aliás, que, combinada com as milhares de outras safadezazinhas que, nesta manhã ensolarada e irresponsável, haverão de estar sendo cometidas em toda a nossa querida Lisboa, deixam a pessoa que respira fundo e não tem mal na consciência, deixam essa pessoa — como direi? — assim meio peralta.

Minha estação é a estação de Roma. O metro é pequeno e não mete medo, como o de Nova Iorque. Nem tem primeira classe, como tinha o de Paris antes de Mitterrand. Na gare, giro rapidamente o corpo para cumprimentar a moça que tripula a lojinha de fazer cópias xerox de que sou freguês. “Como passou?”, inquiro na minha melhor forma lusitana. “Olá, como está?”, responde ela, rindo com um certo encanto tímido. Por alguma razão, considero esse episódio entusiasmante, resolvo comemorar, apresento cem escudos ao bilheteiro e compro uma caderneta! Uma caderneta é um conjunto de bilhetes de metro que você pode usar a qualquer tempo e que saem a dez escudos, quando o bilhete individual custa quinze. Considero-me um mago das finanças por haver concebido tão fantástica economia.

Dentro do metro, a única cautela que cabe observar é, se sentar, ficar atento para senhoras grávidas e outras pessoas a quem a lei e o costume garantem assento. Se a gente não se levantar imediatamente, ao ingresso de uma dessas pessoas, a reação do público feminino, principalmente da parte de senhoras de preto e de bigode agudamente parecidas com uma tia-avó nossa que morreu antes de termos idade para realmente apreciá-la, é das mais sonoras. Há discursos, estabelecem-se debates. Como o meu sotaque, suspeito eu, é considerado primitivo, procuro abster-me e, além disso, não quero envergonhar Ruy Barbosa — o que é, como se sabe, obrigação de todo baiano. Logo no Areeiro entra o cego da ocarina, que, acompanhado por um senhor de boné e aspecto grave, toca seu instrumento com aquele ar destacado e longínquo dos cegos de feira do Nordeste, mas alguma coisa em sua expressão, alguma coisa desamparada e ansiosa, como também há nos cegos de feira do Nordeste, alguma coisa nos dedos que cobrem e descobrem rapidamente os buracos de barro da ocarina, como há nos dedos nordestinos que percutem as cordas das violas, alguma coisa impõe uma reverência instantânea, um ar de contrição, que a gente nota se espalhar como tinta por um mata-borrão, entre os passageiros. E depois há o som que ele tira dessa ocarina, estranhamente entrelaçado com o barulho do trem correndo por aqueles túneis de Lisboa, um som meio árabe, meio sertanejo, meio misturado com tantas memórias absurdas. As mulheres remexem nas bolsas, à espera de que passem o músico cego e seu digno auxiliar, que utiliza o boné pan recolher as moedas. Os homens metem as mãos nos bolsos, esperam disfarçando, como se houvesse alguma paisagem para ver através das janelas. O trem vai chegar a Arroios, chia numa curva e o cego, indiferente ao gemido metálico das rodas, multiplica repentinamente as notas da ocarina, causando emoção visível entre os passageiros, emoção que ele não enxerga mas presume, o que se depreende de um esboço de sorriso orgulhoso, que deixa passar pelos cantos da boca ocupada em soprar. Olha-se assim em torno, não é o metro de Lisboa, são os fantasmas amáveis de nossas infâncias, são sons já ouvidos, momentos já vividos, saudades resgatadas, somos nós. Ali parados, segurando uma alça no metro de Lisboa, coisas ancestrais, nós. Disfarçando também, cato uma moeda, enfio-a no boné meio dobrado do assistente do cego. Cego este que sente a chegada à estação de Arroios, tem mais encantamentos a obrar em outras partes, e então sai acompanhando seu auxiliar e segue pelas escadas da gare acima, deixando uma trilha de sons da ocarina como uma fita espiralada no ar, que, mesmo depois de fechadas; as portas e retomada a nossa marcha, ainda persiste em nossa pequena comunidade.

Meu lugar favorito de Lisboa, naturalmente, é o Rossio, onde invariavelmente desemboco pela mesma saída do metro, em cima da Suíça, uma pastelaria de dezenas de mesas na calçada, em que as pessoas passam o dia todo tomando um cafezinho (uma “bica”) mordiscando bolinhos e paquerando as nórdicas que ali vêm fazer a praça. Graves decisões: vou na direção do Café Nicola ou passo antes pela Praça da Figueira? Nós, vagabundos, temos problemas como quaisquer outros mortais. Pela Praça da Figueira, eu pego a rua da Madalena, onde se situa minha ervanária favorita. Julgo de bom alvitre passar pela ervanária,afinal há muito tempo que não vou lá, preciso saber das novidades. E, assim, imerso num incrível rebuliço de gente, cheiros, cores e ruídos, marcho para a Praça da Figueira. Há um camelô muito sério, demonstrando um fantástico cortador de vidro. Pega laminas de vidro de uma caixa e, conversando em alta velocidade, corta fatias de vidro como alguém tiraria rodelas de uma cenoura. “Quanto é o cortador aí?” pergunto eu, subitamente, achando que não posso passar sem um cortador de vidro — não há coisa mais indispensável para um escritor. São 150 escudos, pago sem discutir e vou de cortador em punho para a ervanária, cujo cheiro indescritível já começo a sentir desde a esquina. Lembro os prospectos: há chás e tisanas para tudo, inclusive para duas doenças que pretendo divulgar bastante, quando voltar ao Brasil: a fraqueza nervosa (da qual já padeço, esporadicamente) e o afrontamento de senhoras. Ainda não consegui informações precisas a respeito do que é o afrontamento de senhoras e tive vergonha de perguntar ao caixeiro meu amigo, na ervanária. Mas qualquer um concordará que se trata de uma enfermidade a ser gravemente considerada. Resolvo levar alguns sacos de chá para afrontamento de senhoras, quando voltar ao Brasil, em meio a minha bagagem de ervas milagrosas, com as quais pretendo receitar todo mundo. Na ervanária, não muitas novidades, a não ser umas pílulas de alho de fabricação revolucionária, que o caixeiro me recomenda com ênfase. Mas, as antigas? — pergunto eu, hesitante. Continuam boas, responde ele, mas nestas cá vê-se o óleo através das cápsulas. De fato, vê-se o óleo. É um argumento irresistível. Compro duas caixas, umas certas pílulas de pau d’arco, uma garrafinha de extrato de ginseng, mais umas miudezas e, com meu saquinho, volto pausadamente à Praça da Figueira, parando para olhar as vitrinas (as montras, perdão) de comida, arrumadas das maneiras mais caleidoscópicas pelas ruelas em volta do Castelo de São Jorge: sapatas, amêijoas, santolas, chamuças, carapaus, fiambres, chouriços, ginjinhas. De vez em quando, eu entro num desses estabelecimentos, só para ver a exposição das comilanças. Eles vêm ver o que eu quero e, quando explico que estou ali somente para uma espécie de fruir estético, eles até me oferecem, de vez em quando, uma excursão turística pela despensa e pela cozinha. Marco mentalmente o meu almoço: vou ao restaurante de Mimi, no Parque Meyer, comer na varanda, entre as plantas e alguns velhos atores de teatro de revista, conversando com os gatos e tomando o vinho da casa.

Mas isto só depois, porque me emociona estar aqui de volta ao Rossio, na boca da Baixa e do Chiado, esperando o sinal abrir e os ônibus de dois andares pararem de querer me atropelar. Gente que não acaba mais e meus amigos da porta do Café Nicola e do Pic-Nic — os angolanos, moçambicanos cabo-verdeanos e guineenses, todos vestidos de Bob Marley e todos muito loucos, transando haxixe. O comércio não é tão discreto como se esperaria, dada a sua natureza, digamos, delicada. Brazuca, um angolano assim chamado porque morou muito tempo no Brasil (de onde foi, lamentavelmente, expulso devido “a um problemazito de uma maconhazita”, me cumprimenta amavelmente. Os negócios devem ir bem, ele está de blusão novo e passado, barba feita e transas com fitinhas impecáveis. “Não quer lá um chuculate, homem?”, me pergunta ele, sacudindo na minha cara um pedaço de haxixe deste tamanho. “Que é isso, Brazuca?”, digo eu. “Olhe os homens aí”.Aproveita — responde ele como se não me tivesse ouvido — que é coisa finíssima que chegou hoje do Marrocos. “Depois, Brazuca, depois”, respondo eu levemente embaraçado, inclusive porque, junto a mim, um senhor que me parece hindu, muito sério e de paletó e gravata, reclama com outro transeiro do tamanho do pedaço de “chuculate” que acaba de lhe ser vendido por mil escudos. “Mas um conto, isto, um conto!”, diz o senhor hindu, obviamente achando tudo um absurdo e exibindo aos passantes a prova de sua alegação, diante do sorriso desdentado do seu transeiro. “Um conto, isto!”, repete o senhor hindu, mostrando a mim o pedacinho do chuculate. De fato, achei pequeno, mas não considerei apropriado continuar a envolver-me no processo em andamento, de forma que me fiz de desentendido e prossegui na direção da rua do Carmo. Lembrei que tinha compromissos inadiáveis: curtir as livrarias, comprar cigarros na tabacaria de um feroz comunista amigo meu, tomar uma cerveja n’A Brasileira e dedicar algum tempo a apenas me sentir maravilhosamente bem ali mesmo naquele formigueiro da Baixa. Lembrei Dorival Caymmi, uma vez explicando, antes de a Bahia haver sido destruída como Lisboa, felizmente, não foi — e como não foi, em tantos sentidos! —, umas certas cores uns certos ares que era imperativo ficar curtindo, em vez de trabalhar. Não há tempo para trabalhar, dizia ele, a pessoa fica muito ocupada vivendo.

Pois então, pois cá tenho vivido muito em Portugal. Não propriamente vendo coisas, embora haja, é claro, coisas para ver, mas sentindo. Não propriamente aprendendo, mas me acrescentando de tantas formas sutis e fortes, por tantas vias antes insuspeitadas. E então, sobraçando minhas ervas, meus livros, meus postais velhos, meu cortador de vidro, desço de novo ao Rossio. Vou caminhar pela avenida da Liberdade, em ponderado passeio para o Parque Meyer. O dia fica cada vez mais luminoso, só consigo pensar em coisas boas. A velha estação dos comboios parece uma catedral, a avenida se abre como se fosse haver uma parada, eu adoro Lisboa. E, se você não aproveitar a primeira chance que tiver para vir curtir esta minha cidade, você é bobo.

João Ubaldo Ribeiro

segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

OUTROS CONTOS

«O Que Vem a Ser o Meu Talento», por Stig Dagerman.

«O Que Vem a Ser o Meu Talento»
Longa viagem ao mundo das palavras azuis/ 
Cruzeiro Seixas

1214- «O QUE VEM A SER O MEU TALENTO»

(...)

Decido encher todas as minhas páginas em branco
com as mais belas combinações de palavras
que seja capaz de engendrar.
E depois, porque quero assegurar-me
que a vida não é absurda
e não me encontro só sobre a terra,
reúno-as todas num livro
e ofereço-o ao mundo.
Este, retribui-me com a riqueza,
a glória e o silêncio.
Mas não sei que fazer com este dinheiro,
nem que prazer tirar
de contribuir para o progresso da literatura,
pois só desejo o que jamais obterei
- a certeza de que as minhas palavras
tocaram o coração do mundo.

É então que me pergunto
o que vem a ser o meu talento,
e descubro que não passa de uma forma
de me consolar da solidão.

Risível consolo - que apenas me torna
cinco vezes mais pesada
a solidão.

Stig Dagerman

sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

MICK TAYLOR - «Slow Blues»

Poet'anarquista

Mick Taylor
Guitarrista Britânico

OUTROS CONTOS

«O Relógio», por José Carlos Ary dos Santos.

«O Relógio»
O Relógio/ Salvador Dalí

1213- «O RELÓGIO»

Pára-me um tempo por dentro
passa-me um tempo por fora.

O tempo que foi constante
no meu contra tempo estar
passa-me agora adiante
como se fosse parar.
Por cada relógio certo
no tempo que sou agora
há um tempo descoberto
no tempo que se demora.

Fica-me o tempo por dentro
passa-me o tempo por fora.

José Carlos Ary dos Santos

terça-feira, 15 de janeiro de 2019

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

FRANZ LISZT - «Love Dream»

Poet'anarquista

Franz Liszt
Compositor e Pianista Húngaro

OUTROS CONTOS

«Uma Ave e o Poeta», por Teixeira de Pascoaes.

«Uma Ave e o Poeta»
Poema de Teixeira de Pascoaes

1212- «UMA AVE E O POETA»

I

Sobre aquele pinheiro aureolado
De inerte e vegetal melancolia,
Um passarinho alegre e alvoroçado,
Cantou, cantou durante todo o dia...

Estive a ouvi-lo mudo e extasiado...
Mas, por fim, perguntei-lhe: Que alegria,
Se fez em ti, ó corpo acostumado
À cruz das tuas asas de agonia?

Dize: que viste tu, no céu profundo?
Que foi que aconteceu sobre este mundo?
Grande coisa de certo adivinhaste...

Ou revelou-te a Luz o seu mistério?
E divina canção de amor etéreo,
Em procura do sol, alevantaste?

II

E a avezinha serena e confiada,
N´um olhar de ternura me envolveu;
E em sua doce voz iluminada
E tão cheia de graça, respondeu:

Meu canto é luz do sol em mim filtrada;
Vou a cantar... e canta a luz do céu.
E das aves da noite a voz cerrada,
É penumbra que n´elas se embebeu.

Sonho a perfeita e mística alegria!
Desejo ser apenas harmonia;
Canção de luz que todo o espaço inflama!

Ser a Esperança viva, a Eternidade;
Não ser a estrela e ser a claridade;
Ser apenas o Amor, não ser quem ama.

Teixeira de Pascoaes

[O Poeta Cósmico]

quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

ROD STEWART - «Sailling»

Poet'anarquista

NAVEGANDO

Eu estou navegando, estou navegando
De volta para casa, através do mar.
Estou navegando sobre águas tempestuosas,
Para estar perto de você, para ser livre.

Eu estou voando, estou voando
Como um pássaro, através do céu.
Estou voando, passando por nuvens altas,
Para estar perto de você, para ser livre

Você consegue me ouvir? Você consegue me ouvir?
Através da noite escura, muito distante.
Eu estou morrendo, sempre chorando,
Para estar com você, quem pode dizer?

Você consegue me ouvir? Você consegue me ouvir?
Através da noite escura, muito distante.
Eu estou morrendo, sempre chorando,
Para estar com você, quem pode dizer?

Nós estamos navegando, estamos navegando
De volta para casa, através do mar.
Estamos navegando sobre águas tempestuosas,
Para estar com você, para ser livre.

Oh, Senhor, para estar perto de você, para ser livre.
Oh, Senhor, para estar perto de você, para ser livre.
Oh, Senhor...

Rod Stewart
 Cantor e Compositor Britânico

OUTROS CONTOS

«Vi Apenas Uma Vez», por Jaroslav Seifert.

«Vi Apenas Uma Vez»
Poema de Jaroslav Seifert

1211- «VI APENAS UMA VEZ»

Vi apenas uma vez
um sol tão ensanguentado.
E nunca mais
Descia funesto sobre o horizonte
e parecia
que alguém havia escancarado as portas do inferno.
Perguntei pelo observatório astronómico
e hoje sei o porquê.

O inferno, conhecemos: está em toda parte
e caminha sobre duas pernas.
E o paraíso?
Talvez o paraíso nada mais seja
além de um sorriso
por muito tempo esperado
e lábios
que murmuram o nosso nome.
E aquele frágil instante fabuloso
quando depressa podemos esquecer-nos
do inferno.

Jaroslav Seifert

quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

JIMMY PAGE & ROBERT PLANT
«Kashmir»

Poet'anarquista

CAXEMIRA

Ah, que o Sol ilumine o meu rosto
Que as estrelas preencham meus sonhos
Sou um viajante do tempo e do espaço
Por ter estado onde já estive

Por me ter sentado com anciões da raça gentil
Que este mundo raramente viu
Eles falam sobre os dias pelos quais eles sentam e aguardam
Em que tudo será revelado

Palavras e canções em línguas de um alegre encanto
Cujos sons acariciam meu ouvido
Mas nem uma palavra que ouvi eu poderia contar
A história era absolutamente clara

Oh, oh, oh, oh

Ah, eu voei
Meu bem, não se pode negar
Ah, sim, eu voei
Meu bem, não se pode negar, negar

Tudo que vejo torna-se marrom conforme o Sol queima a terra
E meus olhos se enchem de areia
À medida que examino esta terra devastada tentando descobrir
Tentando descobrir onde eu estive

Ah, piloto da tempestade que não deixa rastros
Como pensamentos dentro de um sonho
Preste atenção no caminho que me conduziu àquele lugar
Um riacho no deserto amarelo

Minha Shangri-lá sob a lua de verão
Eu retornarei novamente
Certo como a poeira sobe alta em junho
Enquanto me dirijo a Caxemira

Ah, pai dos quatro ventos, encha minhas velas
Através do mar dos anos
Sem nenhuma provisão, excepto um rosto descoberto
Ao longo dos dilemas do medo

Oh, oh, oh, oh

Quando eu estiver
Quando eu estiver no meu caminho, sim
Quando eu enxergar
Quando eu enxergar o caminho, você ficará, sim

Ah, sim, sim, ah, sim, sim
Quando eu estiver triste
Ah, sim, sim, ah, sim, sim
Quando eu estiver triste
Ah, meu bem, meu bem
Me deixe te levar até lá

Jimmy Page & Robert Plant
Guitarrista e Cantor Britânicos

OUTROS CONTOS

«Funeral de um Lavrador», por João Cabral de Melo Neto & Chico Buarque de Hollanda.

«Funeral de um Lavrador»
Morte e Vida Severina

1210- «FUNERAL DE UM LAVRADOR»

Esta cova em que estás com palmos medida
É a conta menor que tiraste em vida
É a conta menor que tiraste em vida

É de bom tamanho nem largo nem fundo
É a parte que te cabe deste latifúndio

É a parte que te cabe deste latifúndio

Não é cova grande, é cova medida
É a terra que querias ver dividida

É a terra que querias ver dividida

É uma cova grande pra teu pouco defunto
Mas estarás mais ancho que estavas no mundo

Estarás mais ancho que estavas no mundo

É uma cova grande pra teu defunto parco
Porém mais que no mundo te sentirás largo

Porém mais que no mundo te sentirás largo

É uma cova grande pra tua carne pouca
Mas a terra dada, não se abre a boca
É a conta menor que tiraste em vida
É a parte que te cabe deste latifúndio
É a terra que querias ver dividida
Estarás mais ancho que estavas no mundo
Mas a terra dada, não se abre a boca.

João Cabral de Melo Neto & Chico Buarque de Hollanda

terça-feira, 8 de janeiro de 2019

SÁTIRA...

Vara- A Razão da Demora
Sátira...

«VARA- A RAZÃO DA DEMORA»

Quero uma cama à maneira
Estilo Neo-Renascentista,
Com bastante ouro à vista
E soalho da melhor madeira.
Quero também uma lareira
Em mármore de cor verde,
Um Rembrant naquela parede
Senão mando tudo às favas…
Cu lavado com água de malvas,
Bom uísque pra matar a sede!

POETA

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

BLUE OYSTER CULT & ROBBY  KRIEGER
«Roadhouse Blues»

Poet'anarquista

BLUES DA HOSPEDARIA DA ESTRADA 

Mantenha seus olhos na estrada, suas mãos no volante,
Estamos indo para a hospedaria da estrada
E vamos nos divertir bastante.

Atrás da hospedaria da estrada existem alguns bangalós,
E isso é para as pessoas
Que gostam de ir bem devagar.

Deixe rolar, baby, rolar...
Deixe rolar
A noite inteira.

Faça isso, amor, faça isso!

Você tem que rolar, rolar, rolar...
Você tem que excitar minha alma, isso aí!
Role, role, role, role...
Excite minha alma!

Dama apaixonada, dama apaixonada,
Desista de seus votos...
Salve a nossa cidade, salve a nossa cidade
Agora mesmo.

Bem, eu acordei essa manhã e tomei uma cerveja...
O futuro é incerto e o fim está sempre perto

Deixe rolar, baby, rolar...
Deixe rolar
A noite inteira.

Blue Oyster Cult & Robby Krieger
Banda Estadunidense e Guitarrista dos Doors

OUTROS CONTOS

«Juventude», por Joseph Conrad.

«Juventude»
A Nau Catrineta/ Almada Negreiros

1209- «JUVENTUDE»

Só poderia mesmo ter acontecido na Inglaterra, onde homens e mar se confundem, por assim dizer — o mar entrando na vida da maioria dos homens e os homens sabendo alguma coisa ou quase tudo sobre o mar, seja como lazer, como viagem ou como o pão nosso de cada dia.

Estávamos sentados em volta de uma mesa de mogno que reflectia a garrafa, os copos de vinho e os nossos rostos, na medida em que nos apoiávamos nos cotovelos. Um diretor de empresa, um guarda-livros, um advogado, Marlow e eu. O director fora grumete do Conway, o guarda-livros servira quatro anos no mar e o advogado — um Tory educado mas endurecido, homem da Igreja Alta, companheiro excelente, a honra em pessoa — fora primeiro oficial da P&O nos velhos tempos em que os navios dos Correios e Telégrafos eram aparelhados pelo menos com dois mastros, e costumavam andar pelo Mar da China, sob monção favorável, com as velas de cutelo e as varreduras enfunadas. Nós todos começamos a vida na Marinha Mercante. E entre nós cinco, eram fortes os laços marítimos e a camaradagem de tripulação que nenhum entusiasmo deyachting, dos cruzeiros e outras coisas do género, pode fomentar porque é só prazer de vida, enquanto o outro e a própria vida.

Marlow (acho, pelo menos, que assim é que se escreve seu nome) contava a história, ou antes a crónica, de uma viagem:

“Sim, conheço alguma coisa dos mares do Oriente, mas o que me lembro melhor é a primeira viagem por aquelas bandas. Vocês, companheiros, sabem que há viagens : que parecem destinadas a ilustrar uma vida e podem ficar como símbolo de uma vida. A gente luta, trabalha, sua, quase se mata, às vezes se mata mesmo, tentando realizar determinada coisa— e não consegue. Não que a culpa seja nossa. Simplesmente não se pode fazer nada, de grande ou de pequeno — nada deste mundo — nem mesmo casar com uma solteirona ou levar a miséria de umas 600 toneladas de carvão a seu porto de destino.

Foi, mesmo assim, um caso memorável. Era minha primeira viagem ao Oriente e a primeira como segundo-piloto; era também o primeiro comando do capitão. Temos de admitir que já era tempo. Ele tinha 60 anos; um homenzinho de costas largas e não muito aprumadas, ombros caídos e uma perna menor do que a outra, com a aparência retorcida e estranha que encontramos muitas vezes no pessoal que trabalha no campo. Tinha a cara de um quebra-nozes — queixo e nariz tentando se encontrar por cima da boca sumida — que era emoldurada pelos cabelos soltos, grisalhos da cor de ferro e encaracolados, parecendo algodão salpicado de pó de carvão. E tinha olhos azuis naquele rosto velho, autênticos olhos de garoto, com a candura que certos homens bastante comuns conservam até o fim de seus dias, graças a um raro dom de simplicidade de coração e rectidão de alma. O que o levou a me aceitar é até hoje um ponto de interrogação. Eu vinha de um famoso clipper australiano, onde trabalhara como terceiro-piloto e, ao que parece, ele alimentava um certo preconceito contra este tipo e veleiro, aristocrático e de grande tonelagem. Ele me disse: ‘Sabe de uma coisa, neste navio você vai ter de trabalhar’. Respondi-lhe que havia trabalhado em todos os navios em que embarcara. ‘Sim, mas este é diferente e vocês que vem de grandes navios. . . Bem, acho que você serve. Apresente-se amanha’.

Apresentei-me no dia seguinte. Foi há 22 anos; eu tinha 20 anos. Como o tempo passa! Foi um dos dias mais felizes da minha vida. Imaginem! Pela primeira vez, segundo-piloto. . . um oficial realmente responsável! Não trocaria meu novo lugar nem por uma fortuna. O imediato me observou de cima a baixo, com todo cuidado. Era também um velho marujo, mas de outro tipo. Tinha um nariz romano, uma longa barba cor de neve e se chamava Mahon que insistia para que pronunciássemos “Mann”. Era bem relacionado. Mas havia alguma coisa de errado com sua sorte pois nunca foi em frente.

Quanto ao capitão, passara anos em navios da cabotagem, depois no Mediterrâneo, finalmente no comércio das Índias Ocidentais. Nunca dobrara o Cabo da Boa Esperança ou o Horn. Poderia ter escrito alguma coisa mas não se dava ao trabalho. Claro que ambos eram bons marinheiros e entre esses dois velhos marujos eu me sentia como um garoto entre dois avós.

Também o navio era velho. Chamava-se Judea. No­me esquisito, não acham? Pertencia a um homem chamado Wilmer. . . Wilcox, qualquer coisa assim, pois há vinte anos ou mais entrou em falência e morreu e seu nome não importa. O navio havia ficado muito tempo no ancoradouro de Shadwell. Imaginem o estado em que se encontrava! Era só ferrugem, poeira, imundície — fuligem nos mastros, lixo no convés. Para mim era como sair de um palácio e entrar numa cabana em ruinas. Carregava cerca de 400 toneladas, com um poleame primitivo, trincos de madeira nas portas, sem nenhuma ponta de metal e uma grande popa quadrada. Na grinalda havia, sob o nome em grandes letras, umas inscrições semi apagadas e uma espécie de escudo com a divisa “Fazer ou Morrer" na parte de baixo. Lembro que aquilo despertou imediatamente minha fantasia. Havia um toque de romantismo naquilo. qualquer coisa que me fez amar o velho navio. . . alguma coisa que apelava para minha juventude!

Saímos de Londres com lastro — lastro de areia — para apanhar uma carga de carvão num porto do Norte e rumar para Bangkok. Bangkok! Cheguei a me arrepiar. Eu tinha seis anos de mar e conhecia apenas Melbourne e Sid­ney, ótimos lugares, cidades encantadoras a sua maneira. . . mas Bangkok!

Para sair do Tâmisa largamos à vela, com um prático do Mar do Norte a bordo. O seu nome era Jeremyn e ele passou o dia todo na cozinha secando seu lenço diante do fogão. Aparentemente nunca dormia. Era um homem triste, com uma lagrima eterna a brilhar na ponta do nariz, um homem que tivera, tinha ou esperava vir a ter, problemas. . . que só podia ser feliz se alguma coisa de ruim lhe acontecesse. Desconfiou da minha juventude, do meu senso co­mum, da minha experiência de mar e fazia questão de demonstrar esta desconfiança de todas as maneiras possíveis. Creio que tinha razão. Naquela época acho que eu sabia muito pouco — e não sei muito mais hoje — mas até agora sinto ódio por esse tal Jeremyn.

Foi preciso uma semana de trabalho até chegarmos a Yarmouth Roads quando apanhamos um temporal pela frente... o famoso temporal de Outubro de 22 anos atrás. Era vento, trovoada, granizo, neve e um mar de meter medo O navio estava leve e vocês podem imaginar como a coisa ficou feia se eu lhes disser que a amurada arrebentou e o convés ficou inundado. Na segunda noite o lastro escorregou para os lados da proa e por pouco não fomos jogado  pela ventania para qualquer lado do Dogger Bank. Não havia outra coisa a fazer senão descer com as pás e tentar aprumar o navio — e ali estávamos nós naquele imenso porão, sinistro como uma caverna, os condutos de graxa arrebentados e vazando sobre as vigas, o temporal a rugir lá em cima e o navio aos solavancos como um louco; lá estávamos nós, Jeremyn, o capitão, toda aquela gente que mal se aguentava em cima das pernas, todos empenhados num trabalho de coveiro, tentando atirar pazadas de areia molhada contra o vento. A cada balanço do navio, podíamos ver, vagamente, contra a luz frouxa, homens que caiam numa grande confusão de pás. Impressionado com o fantástico da cena, um dos grumetes do navio (tínhamos dois) chorava de cortar o coração. Podíamos ouvi-lo em algum lugar, por entre as sombras.

No terceiro dia, o temporal amainou e logo depois um rebocador do Norte nos socorria. Levamos, ao todo, dezasseis dias para ir de Londres a Tyne! Quando entramos na doca já tínhamos perdido a nossa vez de carregar e fomos levados para um ancoradouro onde permanecemos um mês. A Sra. Beard (o nome do capitão era Beard) veio de Colches­ter visitar o velho. Instalou-se a bordo. A tripulação eventual desembarcara e só ficaram no navio apenas os oficiais, um grumete e o encarregado da despensa, um mulato que atendia pelo nome de Abraham. A Sra. Beard era uma velha de rosto enrugado e avermelhado como uma maça de inverno, mas com uma silhueta de garota. Viu-me um dia pregando um botão e insistiu em consertar as minhas camisas. O que era bem diferente das esposas de capitães que eu tinha visto a bordo dos veleiros australianos. Quando lhe levei as camisas, ela disse: ‘E as meias? Tenho certeza que precisam ser cerzidas; as coisas do John — do capitão Beard — já estão em ordem. Gosto de ter alguma coisa para fazer.’ Abençoada velhinha! Remendou meu uniforme enquanto eu lia pela primeira vez Sartor Resartus e Ride to Khiva, de Burnaby. Naquela época, não entendi muito o primeiro, mas me lembro que preferi o soldado ao filósofo, uma preferência que se confirmou ao longo de minha vida. Um era homem e o outro mais do que homem... ou menos. No entanto, ambos estão mortos, a Sra. Beard está morta, e juventude, força, génio, ideias, conquistas, os corações simples... tudo acabou... Não importa.

Finalmente, carregamos o navio. Arrumamos uma tripulação. Oito marinheiros experientes e dois grumetes. Zarpamos certa noite em direção às boias da entrada das docas, prontos para partir, já que eram boas as perspectivas de iniciar a viagem no dia seguinte. A Sra. Beard deveria voltar para casa num trem nocturno. Depois de lançar as amarras do navio fomos ao chá. Lanchamos em silêncio — Mahon, o velho casal e eu. Fui o primeiro a terminar e sai para fumar pois o meu camarote ficava num alojamento da cobertura, na popa. A maré estava alta, soprava um vento fresco e chuviscava; as portas duplas das docas permaneciam abertas e os carvoeiros a vapor entravam e saiam no escuro, com suas luzes brilhando, um barulho grande de hélices, tinidos de ferragens e muitas vozes que chegavam dos molhes. Eu olhava a procissão de faróis de proa que subiam e de luzes verdes que desciam na noite quando, de repente, um clarão vermelho desapareceu, surgiu de novo e permaneceu visível. A proa de um navio a vapor surgiu bem próximo. Eu gritei para baixo: ‘Venham a tona, depressa!’ — e depois escutei uma voz assustada dizendo ao longe, no escuro: ‘Pare o navio, senhor.’ Uma campainha soou. Outra voz gritou, em tom de advertência: ‘Estamos indo em cima desse barco, senhor.’ A resposta foi um ríspido ‘muito bem’, e em seguida houve um choque violento – o vapor raspou a saliência da proa, contra o nosso cordame de vante. Houve um momento de confusão, gritos e correrias. O vapor apitou. Depois alguém falou: ‘Tudo certo senhor...’ A voz ríspida perguntou: ‘Tudo bem?’ Eu dei um pulo para a frente a fim de ver o dano causado, e respondi: ‘Acho que sim’. A voz ríspida disse: ‘Devagar com a ré.’ Uma campainha tocou. ‘Que vapor e esse?’, perguntou Mahon. Nesse momento o vapor era apenas uma massa de sombra para nós, manobrando a pouca distância. De lá nos gritaram um nome — um nome de mulher, Miranda, Melissa, qualquer coisa assim. ‘Isso significa mais um mês neste buraco dos infernos’, me disse Mahon ao nos aproximarmos, a luz de lanternas, da amurada estilhaçada e das vergas partidas. ‘Mas onde esta o capitão?’

Durante todo o tempo não o havíamos visto nem escutado sua voz. Fomos olhar na popa. Uma voz triste surgiu de algum ponto no centro da doca. ‘Ó de bordo do Judea!’ Como diabo tinha ele ido parar naquele lugar? ‘Alo!’, respondemos. ‘Estou á deriva e sem remo no bote’, gritou ele. Um barqueiro retardatário ofereceu seus serviços e Mahon combinou com ele, por meia coroa, para rebocar o capitão até o barco. Mas foi a Sra. Beard quem primeiro subiu a escada. Tinham ficado flutuando nas aguas da doca durante cerca de uma hora, molhados por uma chuva miúda, sem falar no frio. Nunca fiquei tão espantado na vida.         

Parece que, ao ouvir o meu grito de ‘venham a tona, depressa’ o capitão compreendeu logo-logo do que se tratava, agarrou a mulher, correu pelo convés e desceu o bote que estava amarrado junto a escada. Não era pouco para um homem de 60 anos. Imaginem esse homem salvando heroicamente sua velha mulher nos braços — a mulher de sua vida. Fez com que ela sentasse no banco do bote e se apressara a voltar para bordo quando, de algum modo, o bote começou a deslizar — e ficaram os dois a deriva. Na confusão, naturalmente, não escutamos seus gritos. Ele parecia abatido, mas ela falou jovialmente: ‘Creio que não tem importância se eu perder o trem... ‘Não, Jenny’, resmungou o capitão. ‘Desça e vá se aquecer.’ E para nos: ‘É o que eu digo, um marinheiro não pode andar com a mulher nas costas. Lá estava eu fora do navio... Bem, desta vez nada de grave aconteceu. Vamos ver o que esse diabo desse vapor andou estragando.’

Não era muita coisa mas acabou nos atrasando três semanas. Ao final deste período, como estivesse o capitão reunido com seus agentes, levei a mala da Sra. Beard até a estação e deixei-a num vagão de terceira classe. A velha desceu o vidro da janela do vagão para me dizer: ‘Você é um bom rapaz. Se encontrar John, o capitão Beard, sem o cachecol a noite, pode lembrar-lhe, da minha parte, que deve manter a garganta bem protegida.’ ‘Certamente, Sra. Beard,’ disse eu. ‘Você é um bom rapaz. Observei como você e atencioso com John, o capitão. . .’ O trem arrancou de repente. Tirei o gorro para me despedir da velha. Nunca mais a vi... Passe a garrafa...

*    *    *

No dia seguinte, fizemo-nos ao mar. Quando iniciamos a viagem para Bangkok, já fazia três meses que estávamos fora de Londres. Tínhamos calculado que esse tempo seria de uma quinzena de dias ou pouco mais.
Era Janeiro e o tempo estava bonito — o belo tempo ensolarado de inverno que tem mais encanto do que o verão por ser inesperado e frágil, e sabemos que não ira durar muito, que não poderá durar muito. É como um presente, uma pechincha, um inesperado golpe de sorte.

O tempo bom durou toda a travessia do Mar do Norte e do Canal, e até chegarmos a 300 milhas mais ou menos a oeste das Lizards; depois o vento virou para sudoeste. Dois dias mais tarde soprava a tempestade. O Judea dançava no Atlântico como um velho caixote de velas. O vento soprou dias inteiros, rancoroso, sem parar, sem misericórdia, sem descanso. O mundo nada mais era do que uma imensidão de grandes ondas de espuma que se jogava sobre nós sob um céu tão baixo que podíamos tocá-lo com as mãos, tão sujo como um teto enegrecido de fumaça. O espaço de tempestade que nos cercava tinha tanto vapor d’água quanto ar. Dia após dia, noite após noite, nada mais havia em torno do navio além do uivo dos ventos, do tumulto do mar, do ruído da água caindo sobre o convés. Não havia des­canso, nem para o navio nem para nós. O navio oscilava e pulava, mergulhava de nariz, caia, sentava-se na traseira, rebolava, gemia, e tínhamos de aguentar de pé agarrados no convés, segurando nos beliches lá em baixo num permanente esforço do corpo e numa constante inquietação mental.

Certa noite Mahon me falou pela pequena vigia que dava directamente sobre o beliche onde eu estava deitado, insone, ainda de botas, com a impressão de não dormir há anos e sem poder pegar no sono mesmo que tentasse. Ele me disse, excitado: “Marlow, você tem por aí a sonda do porão? Não consigo por as bombas para funcionar. Valha-me Deus que o caso não é pra brincadeira!’

Dei-lhe a sonda do porão e me deitei novamente, tentando pensar em varias coisas — mas pensei somente nas bombas. Quando cheguei ao convés, ainda se trabalhava nas bombas e o meu turno aliviou o pessoal. A luz da lanterna, voltada para o convés a fim de se examinar a sonda do porão, vi num relance os rostos sérios e cansados dos homens. Bombeamos durante quatro horas no meu turno. Bombeamos toda a noite, todo o dia, toda a semana — turno após turno. O navio respondia um pouco aos nossos esforços e jogava agua por todos os lados — não o bastante para irmos a pique de uma vez mas o suficiente para nos matar com aquele trabalho de bombear. E enquanto bombeávamos, o navio ia desaparecendo aos poucos: as amuradas tinham desaparecido, os estais se partiram, os ventiladores se estragaram, a porta do camarote rachou. Não havia um lugar seco sequer no navio, que se desfazia aos poucos. Por um passe de mágica a baleeira se transformou num monte de madeira no lugar onde estava. Eu mesmo a tinha amarrado e ficara orgulhoso do meu trabalho, que por tanto tem­po resistira as maldades do mar. E bombeávamos. E o tempo não mudava. O mar estava branco como um lençol de espuma, parecia um caldeirão de leite fervendo. Não havia uma claridade nas nuvens, nem mesmo do tamanho da mão de um homem, que durasse mais de dez segundos. Era como se não houvesse céu, nem estrelas, nem sol, nem o Universo – nada, a não ser vagas enraivecidas e o furioso mar. Bombeávamos, turno após turno, em luta pela vida; e a luta parecia durar meses, anos, toda a eternidade, como se tivéssemos morrido e descido a um inferno para marinheiros. Não nos lembrávamos mais do dia da semana, do nome do mês, em que ano estávamos, e não sabíamos se já tínhamos estado alguma vez em terra firme. As velas se rasgaram, o navio adernava, o oceano se abatia sobre nós — e não nos importávamos. Com olhar de idiotas rodeávamos os manípulos das bombas. Quando éramos arrastados para o convés, eu passava um cabo em volta dos homens, das bombas e do grande mastro — e então rodávamos e rodávamos a bomba, com água até o peito, até o pescoço, por cima das nossas cabeças. Era uma cabeça só. Não sabíamos mais o que era se sentir seco.

Mas num lugar bem dentro de mim havia um pensamento fixo: Por Deus do céu, que aventura! Igual àquelas que lemos nos livros! E era a minha primeira viagem como segundo-piloto — e eu tinha apenas 20 anos — e ali estava resistindo tão bem quanto qualquer daqueles homens e mantendo a rapaziada em forma. Estava contente. Por nada deste mundo trocaria aquela experiência. Tinha momentos de exaltação. Quando o velho e desmantelado casco pulava mais violentamente, com a popa indo para o alto, parecia-me que atirava, como um apelo, como um desafio, como um grito para as nuvens sem misericórdia, as palavras escritas na popa: “Judea, Londres. Fazer ou morrer.”

Ó juventude! Ó vigor, a fé, a imaginação da juventude! Para mim o Judea não era uma velha ratoeira a transportar frete de carvão — para mim era o esforço, a provação, a experiência de vida. Penso nele com prazer, com afeição, com saudade — como vocês pensariam num morto querido. Jamais o esquecerei... Passe aí a garrafa.

Certa noite, quando bombeávamos amarrados ao mastro, ensurdecidos pelo vento e sem ânimo sequer para desejar a morte, um grande vagalhão se abateu sobre o navio e nos colheu em cheio. Assim que consegui respirar, gritei ‘Aguenta firme, pessoal!’ — quando, de repente, senti alguma coisa de duro flutuando no convés e que bateu na minha perna. Tentei agarrá-la, mas errei. Estava tão escuro que não podíamos ver o rosto uns dos outros a um palmo de distância. Vocês entendem.

Depois desse tombo o navio se manteve quieto por algum tempo e a coisa, fosse lá o que fosse, bateu novamente na minha perna. Desta vez consegui agarrá-la. Era uma panela! A princípio, embrutecido de cansaço como estava, e sem outro pensamento que não fosse as bombas, não compreendi o que e que tinha na mão, mas de repente percebi e gritei: ‘Pessoal, lá se foi a cabine do convés! Larguem tudo e vamos procurar o cozinheiro’.

Havia um alojamento na proa, sobre o convés, que compreendia a cozinha, os beliches do cozinheiro e da guarnição. Como esperávamos que o mar o invadisse há dias, os homens tinham ordem de dormir no camarote, único lugar seguro de todo o navio. Mas o despenseiro Abraham insistia em agarrar-se estupidamente a seu beliche, como um animal – por simples medo, penso eu, como um animal que não quer deixar o estábulo durante um terremoto. Fomos procura-lo. Era desafiar a morte pois, desamarrados, estávamos tão expostos como se estivéssemos numa jangada. Mas fomos. O alojamento estava destroçado como se uma bomba houvesse explodido lá dentro. A maior parte dos objetos sumira borda afora — o fogão, as camas dos tripulantes, seus pertences, tudo se fora; mas as duas barras, que seguravam o beliche de Abraham, tinham permanecido como que por milagre. Abrimos caminho por entre as ruínas, chegamos às barras e ali estava ele, sentado na cama, cercado de espuma e destroços, falando sozinho e muito alegre. Estava louco, completamente e para sempre louco varrido. Aquele choque atingira o extremo de sua resistência. Nós o agarramos e o puxamos e descemos de cabeça para baixo pela escotilha do camarote. Vocês devem entender que não havia tempo para carregá-lo com extremo cuidado, nem para ver como ele estava. Aqueles que se encontravam no camarote o agarrariam. Tínhamos pressa de voltar as bombas, serviço que não podia esperar. Um furo na tubulação seria fatal.

Pode-se dizer que o único propósito desse diabólico temporal foi transformar o pobre-diabo do mulato num lunático. Antes da alvorada o temporal amainou; no dia seguinte, o céu manteve-se limpo e, a medida que o mar acalmava, as bombas obtinham melhores resultados. Quando foi possível envergar novo jogo de velas, a tripulação exigiu que regressássemos — e realmente nada mais havia fazer. Os botes tinham caído n’água, o convés fora varrido pelo mar, o camarote estava quebrado, os homens sem um pedaço de pano a não ser o que vestiam, as provisões estragadas, o navio combalido. Aproamos para a terra. Será que vocês vão acreditar? O vento começou a soprar de leste directamente na nossa cara. Soprava fresco e contínuo. Tivemos de trabalhar durante cada polegada do caminho, mas o navio não fazia tanta água e o mar se mantinha comparativamente calmo. Duas horas de trabalho nas bombas e cada quatro horas não chegam a ser brincadeira, mas isso manteve o navio à superfície ate Falmouth.

A boa gente que mora em Falmouth vive dos desastres marítimos e não tenham duvidas que ficaram satisfeitos quando nos viram. Uma multidão faminta de operários navais começou a afiar as ferramentas assim que avistaram carcaça do navio. E, valha-nos Deus, tiveram muito que fazer! Calculo que o proprietário já estivesse em dificuldades. A coisa atrasou um pouco. Depois ficou decidido que se deveria retirar parte da carga e calafetar o casco. Foi o que se fez: acabaram os reparos, carregaram novamente os porões, uma nova tripulação chegou a bordo e partimos, finalmente. para Bangkok. No fim de uma semana novamente estávamos de volta. A tripulação disse que não ia para Bangkok — uma viagem de 150 dias — naquela espécie de casca-de-noz que precisava ser bombeado oito horas em cada vinte e quatro horas. E os jornais marítimos voltaram a nos dedicar um parágrafo nas suas colunas: “Judea.Bangkok. De Tyne para Bangkok; carvão; regressou a Fal­mouth fazendo água e com a tripulação se recusando a trabalhar.”

Houve novos atrasos, novos reparos. O proprietário passou um dia em Falmouth e disse que o navio estava um verdadeiro brinco. O pobre do capitão Beard parecia o fantasma de um capitão depois de tantos tormentos e humilhações. Lembrem-se que tinha 60 anos e era aquele seu primeiro comando. Dizia Mahon que as aventuras loucas acabam sempre mal, mas eu é que gostava cada vez mais do navio e desejava muitíssimo chegar a Bangkok. Bangkok! Nome mágico e abençoado! Ao seu lado, a Mesopotâmia não era nada. Lembrem-se que eu tinha 20 anos, era a minha primeira viagem como segundo-piloto e o Oriente estava me esperando!

Com uma nova — e terceira — tripulação, saímos e fomos ancorar na barra externa. O navio fazia mais água do que nunca. Era como se os diabos dos carpinteiros tivessem esburacado o casco. Desta vez nem mesmo saímos bar­ra afora. A tripulação simplesmente se recusou a por o poleame em funcionamento.

Fomos rebocados para o porto de dentro e nos tornamos uma peça de museu, uma curiosidade, uma instituição do lugar. As pessoas nos apontavam aos visitantes como ‘o barco que vai para Bangkok... está aqui há seis meses. . . já arribou três vezes.’ Nos feriados, os garotos, brincando nos botes, gritavam: ‘Ó de bordo do Judea!’ e se uma cabeça aparecia na amurada, gritavam: ‘Para onde vão? para Bangkok?,— e riam. Éramos apenas três a bordo. O velho capitão curtia o seu desgosto no camarote. Mahon tomou a si a cozinha e inesperadamente revelou um talento francês no preparo das refeições. Eu olhava através da vigia, descontraído. Tornamo-nos cidadãos de Falmouth. Todos os comerciantes nos conheciam. Na barbearia ou na tabacaria perguntavam-nos, com certa familiaridade: ‘Acham que ainda irão para Bangkok?’ Enquanto isso, o proprietário, os homens do seguro e os do frete discutiam em Londres os nossos honorários... Passe a garrafa.

*    *    *

Era horrível. Moralmente, era pior do que ficar bombeando toda a vida. Parecia-que o mundo tinha nos esquecido, que não nos relacionávamos com ninguém e não iríamos a lugar algum; como por encanto, parecia que teríamos de viver para sempre naquele porto, virar piada e escárnio para gerações de estivadores e barqueiros desonestos. Eu consegui receber três meses de pagamento e uma licença de cinco dias e corri para Londres. Levei um dia para chegar e mais um para voltar — mas o dinheiro dos três meses desapareceu logo. Não sei o que fiz com ele. Fui a um café-concerto, almocei, jantei e fiz uma ceia num bom restaurante de Regent Street e voltei a tempo, sem outra coisa além das obras completas de Byron e um novo cobertor — tudo por três meses de trabalho. O barqueiro que me levou para o navio me disse: ‘Olá! Pensei que você tivesse abandonado o velho navio. Aquilo nunca chegara em Bangkok.’ Com a: superior, respondi: ‘Acha mesmo?’ Mas a verdade é que não gostei da profecia.

De repente, um homem, espécie de agente sei lá de quem, apareceu com plenos poderes. Tinha espinhas por todo o rosto, uma energia indomável e uma alma jovial. De mergulho voltamos a vida, e um batelão encostou no navio e retirou a nossa carga e depois fomos atracar em um dique para substituir as chapas de cobre. Não era de se admirar que o navio fizesse água. Sacudido pelo temporal além de sua capacidade de resistência, o pobre do navio como por desgosto, jogava fora toda a estopa que lhe incomodava juntas. O navio foi novamente calafetado, provido de novas chapas de cobre e ficou tão estanque como uma garrafa. Voltamos ao batelão e reembarcamos a carga.

Foi a essa altura, numa linda noite de luar, que ratos começaram a abandonar o navio.

Os ratos até então tinham sido uma verdadeira praga. Destruíam velas, consumiam mais provisões do que a tripulação inteira, compartilhavam amigavelmente das nossas camas e dos nossos perigos. No momento em que o navio estava em condições de navegar em alto-mar, resolverão abandoná-lo. Chamei Mahon para apreciar o espectáculo. Ratos e ratos iam surgindo na amurada, atiravam um último olhar por cima dos ombros e saltavam, com um ruído seco para o mergulho no pontão vazio. Tentamos contá-los mas logo perdemos a conta. Mahon falou: ‘Bem... não me fale na inteligência dos ratos. Deviam ter saído antes, quando por um triz não fomos a pique. Aí está a prova de como é estupida a superstição sobre os ratos. Deixaram um bom navio por um velho batelão caindo de podre, onde não há nada para comer... Idiotas! Não acredito que saibam o que é bom e seguro para eles, como eu e você não sabemos.

Depois de prolongarmos um pouco mais a conversa concordamos que a sabedoria dos ratos era grandemente super estimada e que, na verdade, não era maior do que a homens.

A essa altura, a história do navio era bem conhecida em todo o Canal, de Lands End a Forelands, e não conseguíamos uma tripulação na costa sul. Mandaram-nos uma guarnição completa de Liverpool e partimos mais uma vez — para Bangkok.

Tivemos boas brisas, mar de rosas nos trópicos e velho Judea movimentava-se com dificuldade à luz do sol. Só fazíamos oito nós — e tudo estalava, segurávamos nossos gorros na cabeça; mas em geral o navio fazia uma média de três milhas por hora. Que outra coisa se podia esperar? O velho navio estava cansado. A juventude dele estava onde está a minha — onde está a de vocês que escutam estas peripécias. E que amigo atiraria a sua idade e o seu cansaço na cara de vocês? Não reclamávamos contra o navio. Para nós, pelo menos os da popa, era como se tivéssemos nele, sido criados ali, vivíamos nele há séculos, jamais conhecêramos outro navio. Seria mais fácil insultar a velha igreja de aldeia por nunca ter chegado a ser catedral.

E no meu caso havia a minha juventude para me tornar paciente. Tinha todo o Oriente diante de mim, toda a vida e o pensamento de que eu havia passado por uma dura prova naquele navio — e me saíra bem. E pensava nos homens de antigamente que fizeram há séculos o mesmo caminho em navios nada melhores em direcção a terra das palmeiras, das especiarias, das areias amarelas, das nações amorenadas sob o governo de reis mais cruéis do que Nero, o romano, e mais esplêndidos do que Salomão, o judeu. O velho navio balançava nas águas, curvado ao peso da idade e da carga, enquanto eu desfrutava da juventude, ignorante e cheio de esperança. O navio singrou as águas por uma interminável procissão de dias e a nova popa dourada reluzia ao sol poente, e parecia gritar sobre o mar que se envolvia na escuridão as palavras pintadas na grinalda: ‘Judea. — Fazer ou Morrer.

Depois entramos no Oceano Índico e velejamos para o Norte, para a Ponta de Java. Os ventos eram ligeiros, semanas passavam. O navio continuava sua marcha — fazer ou morrer —, e em terra já se pensava em nos dar como perdidos.

Uma noite de sábado, já fora de serviço, os homens me pediram um balde d’água extra para lavar as roupas. Como eu não estava querendo trabalhar tão tarde na bomba de agua fresca, saí assobiando com a chave na mão, a fim de abrir a escotilha da proa, pretendendo servir a água de um tanque de reserva que ali mantínhamos.

O cheiro vindo de baixo foi tão inesperado quanto assustador. Era como se centenas de lamparinas de parafina tivessem estado acesas, enchendo de fumaça durante dias inteiros aquela cavidade. Fiquei contente quando sai dali. O marinheiro que ia comigo pigarreou e falou: ‘Que cheiro mais engraçado, senhor.’ Respondi, com ar de indiferença: ‘Dizem que e bom para a saúde’ — e segui em direcção a ré.

A primeira coisa que fiz foi meter a cabeça na boca do ventilador central do navio. Quando levantei a tampa, um sopro visível, alguma coisa como uma leve neblina, uma lufada de falsa cerração subiu então da abertura. O ar que subia era quente e deixei cair a tampa. Não valia a pena me chatear. A carga estava incendiando.

No dia seguinte a carga começou a produzir mais fumaça. Era de se esperar, pois, embora o carvão fosse de boa qualidade, ele fora tão manipulado, tão desintegrado com a carga e descarga, que mais parecia carvão de forja de ferreiro. E depois havia se molhado — mais de uma vez. Choveu durante todo o tempo em que passávamos o carvão de volta do batelão para o navio, e agora, com esta longa viagem, o carvão se aquecera — e era mais outro caso de combustão espontânea.

O capitão nos chamou ao camarote. Estava com um mapa aberto em cima da mesa e parecia infeliz. ‘A costa oeste da Austrália está próxima mas pretendo prosseguir até o nosso destino. Este é o mês dos furacões; além disso, manteremos a proa em direcção a Bangkok e combateremos o fogo. Nada mais de arribar em parte alguma, nem mesmo se ficarmos assados. Tentaremos primeiro abafar esse diabo dessa combustão impedindo a entrada do ar.’

Tentamos. Tentamos de tudo — e a fumaça continuava saindo. Saía por frinchas imperceptíveis; forçava caminho através dos compartimentos e das cobertas; escapava por aqui, por ali, por toda a parte, em pequenos fios, numa invisível nuvem, de uma maneira incompreensível. A fumaça encontrou seu caminho até o camarote, até o castelo da proa, envenenou os lugares mais abrigados do convés. Claro que se a fumaça saia, o ar entrava. Era desanimador. A combustão se recusava a acabar.

Resolvemos tentar a água e abrimos as escotilhas. Enormes volumes de fumaça, esbranquiçada, amarelada, espessa, gordurosa, nevoenta, sufocante, se elevaram até os altos dos mastros. Todos os marinheiros correram para a ré. Então  a nuvem venenosa se desfez e voltamos a trabalhar dentro de uma fumaçada que já não era mais espessa do que a de uma chaminé comum de fabrica.

Instalamos uma bomba de incêndio e estendemos uma mangueira que logo rebentou. Era tão velha quanto o navio — uma mangueira pré-histórica, impossível de ser remendada. Em seguida, bombeamos com a fraca bomba da proa, retiramos água com balde e conseguimos despejar um pouco do Oceano índico dentro da escotilha. A corrente límpida brilhava à luz do sol, caia numa camada de fumaça branca e preguiçosa e desaparecia na negra superfície do carvão. O vapor subia, misturando-se com a fumaça. Derramávamos água salgada como se fosse num barril sem fundo. Era o nosso destino bombear naquele navio — para fora ou para dentro — e, depois de retirar água do navio para evitar que morrêssemos afogados, freneticamente lhe atirávamos água para não morrermos queimados.

E o navio se arrastava — fazer ou morrer — com tempo sereno. O céu era um milagre de pureza, um milagre de azul. O mar estava polido, azul, transparente, cintilava como uma pedra preciosa, estendendo-se para todos os lados do horizonte — como se todo o globo terrestre fosse uma joia, uma colossal safira, uma única gema modelada em forma de planeta. A superfície das grandes e tranquilas aguas, Judea deslizava, imperceptívelmente, envolvido em vapores lânguidos e sujos, numa nuvem preguiçosa que derivava para bombordo, leve e vagarosa, uma nuvem de peste que profanava o esplendor do mar e do céu.

Durante todo este tempo naturalmente não vimos o fogo. A carga queimava lentamente em algum lugar do fundo do navio. Certa vez Mahon, quando trabalhávamos lado a lado, me disse com um sorriso singular: ‘Se o navio fizesse água, como da primeira vez que deixamos o Canal, o fogo acabaria, não é mesmo?’ Observei, inoportunamente: ‘Lembra-se dos ratos?’

Combatemos o fogo e velejamos cuidadosamente como nada estivesse acontecendo. O despenseiro cozinhava para nós. Dos outros doze homens, oito trabalhavam enquanto quatro descansavam. Todos tinham a sua vez, inclusive o capitão. Havia igualdade e, se não exactamente fraternidade, pelo menos boa dose de camaradagem. As vezes um dos homens, ao atirar um balde d’água pela escotilha, gritava: Viva Bangkok!’ — e os outros riam. Mas em geral estávamos preocupados e sérios — e com sede. Ah, que sede! Precisávamos ser cuidadosos com a água. Rações rigorosas. O navio soltava fumaça, o sol brilhava... Passe a garrafa.

*    *    *

Tentamos de tudo. Até mesmo isolar o fogo lá embaixo. Claro que não funcionou. Nenhum dos homens conseguiu ficar no porão mais de um minuto. Mahon, que desceu em primeiro lugar, desmaiou e o homem que foi socorrê-lo também. Arrastamos os dois para o convés. Depois desci para mostrar como era fácil, mas a essa altura os marinheiros já haviam aprendido e se contentaram em me pescar com uma corrente de gancho presa a um cabo de vassoura, creio eu. Nem mesmo me ofereci para recuperar a pá que deixara lá embaixo.

A coisa começou a ficar feia e lançamos o bote n’água. O segundo escaler também estava pronto para descer ao mar. Tínhamos ainda outro, de 14 pés, amarrado na popa.

De repente, então, a fumaçada diminuiu. Redobramos nossos esforços para inundar o porão do navio. Em dois dias já não havia mais fumaça. Todo mundo ria de contente. Isso foi numa sexta-feira. No sábado não se trabalhou, fizemos apenas coisas de rotina. Os homens lavaram as roupas e o rosto pela primeira vez em duas semanas e se reuniram num jantar especial. Falavam com desprezo da combustão espontânea e davam a entender que isso de combustão era com eles mesmos. Na verdade, sentiam-se todos como que herdeiros de uma grande fortuna. Mas um cheiro horrível de queimado pesava sobre o navio. O capitão Beard tinha os olhos no fundo, faces encovadas. Nunca notara antes co­mo era encurvado e manco. Ele e Mahon examinavam, dos, escotilhas e ventiladores, cheirando. De repente observei que Mahon era bem velho. Quanto a mim, estava contente e orgulhoso, como se tivesse ajudado a vencer uma grande batalha naval. Ah, juventude!

A noite estava belíssima. Pela manha passara por nós um navio rumo a pátria — o primeiro que víamos há meses. Mas, finalmente, estávamos próximos de terra, a Ponta de Java ficava a 190 milhas, ao norte.

No dia seguinte, das oito horas ao meio-dia, foi o meu turno no convés. No café da manha o capitão observou: ‘É espantoso, mas o cheiro chegou até o camarote!’ La pelas dez horas, estando o piloto na popa, andei até a primeira coberta por momentos. O banco do carpinteiro ficava atrás do mastro grande, Inclinei-me sobre ele, mordendo o cachimbo e o carpinteiro, um jovem marinheiro, veio falar comigo: ‘Acho que trabalhamos bem, não é mesmo?’ Em seguida, com irritação, percebi que o maluco estava tentando empurrar o banco. Disse, delicadamente: ‘Não faça isso, Chips’ — e imediatamente senti uma estranha sensação, uma absurda ilusão, parecia que de certa maneira me encontrava no ar. Escutei em torno de mim uma respiração suspensa exalada de repente, como se milhares de gigantes dissessem ‘fu-u-u’ — e senti um choque surdo que me fez todas as costelas doerem. Não havia duvida — eu estava no ar e o meu corpo descrevia uma rápida parábola. No entanto, embora curta, tive tempo de pensar em varias coisas, na seguinte ordem, na medida em que me recordo delas: ‘Não pode ter sido o carpinteiro — Que foi? Algum acidente — Um vulcão submarino? — Carvão, gases — Meu Deus vamos todos pelos ares — Todos mortos — Estou caindo na escotilha da ré — Estou vendo o fogo lá dentro...

O pó de hulha no momento de explodir ardera como um clarão vermelho suspenso no ar do porão. Num abrir e fechar de olhos, numa infinitíssima fração de segundo, depois do banco ser jogado, eu já estava estatelado ao comprido na carga. Levantei-me sozinho e fugi. Tão rápido como se desse um pulo. O convés transformara-se numa selva de paus de lenha, emaranhado como uma floresta após o tufão; uma imensa cortina de farrapos drapejava suavemente diante de mim — era a vela grande reduzida a farrapos. Pensei: ‘Os mastros estão a ponto de cair’ — e para sair do caminho me atirei de quatro pela escada do tombadilho abaixo. A primeira pessoa que vi foi Mahon, de olhos vidrados, boca aberta e os longos cabelos brancos arrepiados em volta da cabeça como um halo de prata. Estava para descer quando a visão da coberta estalou, saltou e se fez em pedaços diante de seus olhos, deixando-o literalmente petrificado. Olhei para ele, incrédulo, e Mahon me fitou com uma curiosidade chocante, única. Eu não sabia que estava sem cabelos, sem sobrancelhas, sem cílios, nem que meu bigode juvenil tinha desaparecido, nem que meu rosto estava negro e ferido, o nariz machucado, queixo sangrando. Perdera o gorro, um dos meus sapatos e a minha camisa estava toda rasgada. Não sabia de nada disso. Estava surpreso por ver o navio ainda a superfície, o tombadilho ainda inteiro — e mais do que tudo, por ver alguém vivo. Também a paz que reinava no céu e a tranquilidade do mar me eram surpreendentes. Acho que esperava vê-los convulsionados de horror... Passe a garrafa.

*    *    *

Ouvi uma voz vinda de algum lugar — do ar, do céu, não sei dizer. De repente vi o capitão a gritar como um doido ‘Onde está a mesa do camarote?’ — e escutar uma pergunta destas foi um choque terrível. Eu acabara de ser apanhado em cheio por uma explosão, vocês podem compreender, e tremia ainda devido aquela experiência — nem mesmo tinha a certeza de estar vivo. Mahon começou a bater com os pés e gritou para o capitão: ‘Meu Deus! Não esta vendo que o convés foi pelos ares?’ Recuperei a minha voz e gaguejei, como se estivesse consciente de uma grande falta: ‘Não sei onde está a mesa do camarote.’ Era tudo como um sonho absurdo.

Sabem o que é que o capitão queria, logo em seguida? Pois bem: queria as vergas. Placidamente, como se tivesse perdido a razão, insistiu para que se guarnecesse as vergas de vante. ‘Não sei se ha alguém vivo depois disso’, disse Mahon, com voz de choro. ‘Com certeza haverá alguém para guarnecer as vergas de vante’, disse o capitão.

Parece que o velho marinheiro estava no seu beliche dando corda nos cronómetros quando o choque o pôs fora de si. Imediatamente lhe ocorreu — como disse mais tarde — que o navio havia batido em alguma coisa, e correu para o camarote. La ele viu que a mesa havia desaparecido. Como o convés fora pelos ares, a mesa naturalmente caíra no paiol da popa. Onde tínhamos comido pela manha, o capitão vira apenas um grande buraco. Fato que lhe pareceu tão terrivelmente misterioso e o impressionou tanto que tudo o que viu e ouviu depois de chegar ao convés era quase nada comparativamente. E, vejam bem, notou logo o timão sem ninguém e o escaler fora de rumo — e seu único pensamento foi repor esta miserável carcaça de navio destripada, sem coberta, presa das chamas, com a proa dirigida para seu porto de destino. Bangkok !Era o que ele pretendia. Digo para vocês que aquele homenzinho tranquilo, encurvado, capenga, quase deformado, era enorme quando se tratava da obstinação de sua ideia e na sua plácida ignorância em relação a nossa agitação. Mandou-nos para a proa com um gesto de comando e pessoalmente guarneceu o timão.

Sim, esta foi a primeira coisa que fizemos — guarnecer as vergas daquela ruína! Ninguém havia morrido, ninguém ficara inválido, mas todos estavam mais ou menos feridos. Só vendo! Alguns ficaram esfarrapados, com os rostos enegrecidos, como carregadores de carvão, como limpa-chaminés, e as cabeças pareciam embutidas no ombro, mas na realidade estavam queimados, com as peles chamuscadas. Outros, que estavam no quarto da coberta, despertaram ao serem atirados para fora de seus beliches, e tremiam sem parar, resmungando, mesmo quando continuamos com o trabalho. Mas todos trabalharam. A tripulação de Liverpool era feita de gente boa. Pela minha experiência, sempre são boa gente. E o mar que faz isto — a vastidão, a solidão que cerca suas almas sombrias. .. Tropeçamos, arrastamo-nos, caímos, arranhamos as pernas por entre os destroços, manobramos. Os mastros aguentaram mas não sabíamos quantos estariam queimados na base. O tempo estava quase calmo mas uma longa rajada veio do oeste e fez o navio andar. Os mastros poderiam cair a qualquer momento. Olhávamos para eles, apreensivos. Para que lado cairiam, não se podia prever.

Em seguida recuamos para a proa e olhamos a nossa volta. O convés era uma confusão de pranchas, de lascas de pau, de madeira arrebentada. Os mastros se elevaram deste caos como grandes árvores acima de uma rasteira e intrincada vegetação. Os interstícios dessa massa de destro­ços estavam tomados por alguma coisa esbranquiçada, vagarosa, irritante — de alguma coisa que se assemelhava a uma névoa gordurosa. A fumaçada do incêndio invisível novamente se elevava, estava se arrastando como uma neblina espessa e venenosa num vale povoado de árvores mortas. Pequenas e preguiçosas faíscas já começavam a se elevar por entre os escombros. Aqui e ali, de pé, um pedaço de ma­deira parecia um poste. Metade de uma roda de leme fora cuspida através da vela de vante e o céu era um pedaço de azul por entre as velas terrivelmente sujas. Um feixe de tábuas caíra no corrimão, atravessadas, e um dos extremos despontava na borda como um trampolim que levasse a lugar algum, um trampolim sobre o mar profundo, sobre a morte — como se nos convidasse a andar rapidamente sobre a prancha e acabar assim com nossas ridículas inquietações. E o ar, o céu, pressentia-se, um fantasma, qualquer coisa de invisível continuava chamando o navio.

Alguém teve o bom senso de olhar para as águas: lá estava o homem do leme que impulsivamente havia se atirado ao mar, ansioso agora para voltar a bordo. Gritava e nadava com vigor, como um Tritão acompanhando o navio. Atiramos uma corda para ele e logo o timoneiro estava entre nós, escorrendo água, abatido. O capitão, que entregara o leme a outro, olhava fixamente o mar, com os cotovelos fixos na amurada, queixo na mão, solitário. Nós nos perguntávamos o que viria depois. Eu pensava: ‘Eis alguma coisa de grande! É espantoso! Gostaria de adivinhar o que nos espera.’ Ah, juventude De repente, Mahon avistou um navio pela popa. O capitão Beard disse: ‘Ainda podemos fazer alguma coisa.’ Içamos duas bandeiras, que na linguagem internacional do mar queriam dizer: ‘Incêndio a bordo. Precisamos de assistência imediata.’ O vapor parecia crescer e pouco depois falava com duas bandeiras no mastro: ‘Vamos ajudá-los.’

Meia hora depois emparelhava connosco, a barlavento e ao alcance da voz, maquinas paradas. Perdemos a calma e desatamos a gritar, juntos e excitados: ‘Sofremos uma explosão!’Um homem de capacete branco, na ponte, gritou: ‘Sim! Não há de ser nada! Não há de ser nada!’ e sacudiu a cabeça, sorriu e fez gestos tranquilizadores com a mão, como se falasse a um bando de crianças assustadas. Um dos botes desceu a água e veio em nossa direcção, na crista da onda, com seus remos compridos. Era movido por quatro calaches, a um ritmo bem balançado. Era a primeira vez que via marinheiros malaios. Vi-os depois, mas o que me surpreendeu então foi o seu descaso: chegaram ao costado do navio e nem mesmo o proeiro, de pé', segurando a escada de quebra-peito com o croque, se dignou a levantar a cabeça para olhar. Eu pensava que os tripulantes de um navio que sofrera uma explosão mereceriam maior deferência.

Subiu a bordo um homenzinho seco como uma palha e ágil como um macaco. Era o piloto do vapor. Passou os olhos pelo navio e gritou: ‘Olá, rapaziada! E melhor vocês abandonarem isso aqui!’ Ficamos em silêncio. O piloto conversou durante algum tempo a sós com o capitão. Pareciam discutir. Depois seguiram juntos para o vapor.


Quando o nosso capitão voltou, soubemos que o vapor se chamava Sommerville e era comandado pelo capitão Nash; ia de Singapura a Batávia levando correspondência, e que tinha chegado a um acordo para nos rebocar ate Anjer ou Batávia, se possível, onde poderíamos extinguir o fogo abrindo as escotilhas e em seguida prosseguir a nossa viagem — para Bangkok! O velho parecia excitado: ‘Haveremos de conseguir!’, disse a Mahon, sério. Fechou o punho num desafio ao céu. Ninguém disse uma palavra.

Ao meio-dia, o vapor começou a nos rebocar. Seguia na frente, elegante, aprumado, e o que restava do Judea seguia-o no extremo do cabo de reboque de 70 braças — seguia-o rapidamente como uma nuvem de fumaça da qual se elevavam borlas de mastros. Subimos aos mastros para ferrar as velas. Tossíamos nas vergas e tomávamos precauções com a boa armação das velas. Vocês podem nos ver lá em cima, ferrando novamente as velas daquele navio condenado a não chegar a parte alguma? Pois não havia um único homem que não pensasse que a qualquer momento os mastros poderiam desabar. De cima não podíamos ver o navio devido a fumaça, e trabalhávamos cuidadosamente dando o mesmo número de voltas nas antegalhas. ‘Ó de boreste, ferra com firmeza!’, gritava Mahon, do convés.

Conseguem compreender a situação? Não acho que nenhum daqueles marujos esperasse descer normalmente. Quando desci, escutei-os dizendo um para o outro: ‘Puxa! Pensei que íamos descer num salto por cima da borda, dos mastros e de tudo... macacos me mordam se não pensei... ‘Era o que eu também estava pensando’, respondeu, em voz cansada, outro espantalho sujo e esfarrapado. E lembrem-se que aqueles homens não tinham o hábito militar da obediência. Para um estranho seria um punhado de gente sem valor nenhum. Por que faziam aquilo? Por que obedeceram quando achei, muito convencido, que havia uma beleza evidente naquele trabalho e os mandei arrear duas vezes a vela do traquete para fazer o trabalho bem feito? O que! Não tinham reputação profissional a zelar — ne­nhum exemplo, nenhum elogio. Não era senso de dever; todos sabiam muito bem como fugir as tarefas, como fazer corpo mole, preguiçosos — quando queriam, e na maioria das vezes o queriam. Seriam as duas libras e dez xelins por mês? Não, nenhum deles achava que o pagamento pagasse a metade da canseira. Não. Era alguma coisa que havia neles, alguma coisa inata, sutil, duradoura. Não digo positivamente que a tripulação de um navio mercante francês ou alemão não fizesse a mesma coisa, mas duvido que o fizesse da mesma maneira. Havia certa plenitude, qualquer coisa tão solida como um principio e tão dominadora quanto um instinto —- a revelação de alguma coisa secreta, essa coisa oculta, esse dom do mal ou do bem que faz a diferença das raças e modela o destino das nações.

Foi nessa noite, às 10 horas que, pela primeira vez desde que o vínhamos combatendo, vimos o fogo. A rapidez do reboque estimulara a lenta destruição. Uma chama azul apareceu na proa refulgindo por baixo dos destroços do convés. Desdobrava-se em camadas, parecia estimular-se e tremeluzir como o pisca-pisca de um vagalume. Fui o primeiro a vê-la e avisei Mahon. ‘Então já perdemos a partida’, disse ele. ‘Seria melhor desistir do reboque caso contrario o navio poderá explodir de repente, da proa a ré, antes que a gente tenha tempo de cair fora.’ Gritamos; tocamos campainhas para atrair a atenção do vapor; o reboque continuou. Finalmente eu e Mahon tivemos de nos arrastar até a proa e cortar o cabo com uma machadinha. Não houve tempo para desfazer os nós. Línguas vermelhas de fogo lambiam a confusão de tábuas sob nossos pés, quando voltávamos para a popa.

Claro que notaram lá do vapor, tempos depois, que o cabo se partira. O vapor soltou um apito agudo, seus holofotes descreveram um grande círculo e o navio aproximou-se, emparelhou connosco e parou. Estávamos reunidos em grupo, na popa, olhando. Todos os homens haviam salvo um pequeno embrulho ou uma mala. De repente uma chama cónica, retorcida na ponta, se lançou para o alto e descreveu sobre o negro mar um círculo de luz, com os dois navios, juntos, balançando suavemente no centro. O capitão Beard estivera durante horas sentado na grade do tombadilho, em silêncio, mas levantou-se vagarosamente e avançou a nossa frente e foi em direcção a enxárcia da mezena. O capitão Nash gritou:

‘Vamos embora! Depressa, que tenho malas postais a bordo! Levarei o senhor e seus homens até Singapura.’

– ‘Não, obrigado’, disse o velho. ‘Temos de ficar até o fim.’

O outro gritou:

– ‘Não posso demorar mais! A correspondência, o senhor tem de compreender.’

– ‘Sim, sim estamos bem.’

– ‘Pois muito bem. Darei notícias de vocês em Sin­gapura... Até a vista!’

Acenou com a mão. Os nossos homens arriaram os embrulhos, tranquilamente. O vapor pôs-se em marcha e, saindo do círculo de luz, desapareceu imediatamente da nossa vista, ofuscado pelo fogo que resplandecia. Nesta altura fiquei certo que iria ver pela primeira vez o Oriente comandando um pequeno bote. Achei que seria bom — e a fidelidade ao velho navio era uma coisa bonita. Tínhamos de ficar até o fim. Ah, o esplendor da juventude! Ah, o seu fogo, mais ofuscante do que as chamas do navio incendiado, atirando uma luz mágica pela extensão do mundo, saltando audaciosamente para o céu — um fogo que será extinto pelo tempo, mais cruel, mais impiedoso, mais amargo do que o mar — e  — é como as chamas do navio incendiado, cercado por uma noite impenetrável!

O velho no seu jeitão suave e inflexível, nos avisou que fazia parte do nosso dever salvar todos os equipamentos que fosse possível para as agências de seguro. Começamos a trabalhar na popa, enquanto o navio permanecia bem iluminado pelas labaredas da proa. Retiramos uma porção de destroços. O que não salvamos nós? Um velho barómetro preso com uma absurda quantidade de parafusos quase me custou a vida: uma súbita coluna de fumaça caiu sobre mim e eu tive apenas o tempo necessário para correr. Havia vários depósitos, rolos de velas, maços de cabos; a popa se parecia a um bazar da Marinha e os botes estavam jogados contra a amurada. Era de se supor que o velho queria levar consigo tudo o que podia daquele seu primeiro comando. Estava tranquilo, mas era óbvio que perdera o equilíbrio mental. Podem acreditar? Ele quis levar na lancha um pedaço de cabo velho e um ancorote. Nos dissemos: ‘Pois não, senhor!’, com deferência, e tranquilamente deixamos essas coisas escorregarem pela borda. O pesado saco dos medicamentos desceu, também, da mesma maneira, dois sacos de café verde, latas de tinta — vejam só, latas de tinta! — e uma porção de coisas. Depois recebi ordens de baixar os botes, com mais dois marinheiros, e prepará-los para o mo­mento de abandonar o navio.

Pusemos tudo em ordem, arvorámos o mastro do bote para o capitão que deveria comandá-lo. Sentei-me por instantes. Sentia o rosto duro, meus membros doíam como se estivessem quebrados. Sentia todas as minhas costelas e sabia exactamente onde se encontravam todos os ossos da minha coluna vertebral. Os botes, amarrados à popa, estavam envolvidos em uma sombra profunda e à volta eu podia ver o circulo do mar iluminado pelo fogo. Uma chama gigantesca se elevou, clara e direta. Brilhava com violência, com ruídos semelhantes ao bater de asas, com rumores de trovão. Houve estalos, detonações e, do cone das chamas, as faíscas se elevaram no ar. O homem nasceu para a dificuldade, para os navios que fazem água e para os navios que se incendeiam.

O que mais me incomodava era ver que o navio adernava sob o brando vento — um simples sopro — e que os botes não se mantinham na proa, teimando, com a teimosia própria dos barcos, em se meter por baixo da popa e rodar até ficarem paralelos ao casco. Os botes dançavam perigosamente e se aproximavam da chama enquanto eram sacudidos pelo navio e naturalmente havia sempre o perigo dos mastros tombarem a qualquer momento. Eu e os dois marinheiros mantivemos os botes a distância da melhor forma que conseguimos, com remos e croques, mas este trabalho nos exasperava pois não havia razão para não abandonarmos imediatamente o navio. Não podíamos ver os que estavam a bordo, nem imaginar a causa daquele atraso. Os homens blasfemavam em voz baixa e eu devia não somente fazer a minha parte do trabalho como também fazer com que trabalhassem aqueles dois homens que manifestavam constante inclinação para largar tudo e deixar as coisas rolarem.

Finalmente, gritei:

– ‘Ó do convés!’ — e alguém apareceu. ‘Aqui já estamos prontos, disse eu. A cabeça desapareceu e logo depois surgiu novamente:

– ‘O capitão diz que tudo bem, senhor, e que mantenha os botes bem distantes do navio.’

Meia hora se passou. De repente houve um espantoso estrondo, um ruído de ferragens, correntes a chiar, um jato d’água e milhões de faíscas voaram para a tremula coluna de fumaça que se inclinava ligeiramente por cima do navio. Os guindastes haviam se alterado pelo fogo e os dois ferros em brasa tinham descido para o fundo do mar, arrastando consigo duzentas braças de amarras igualmente em brasa. O navio tremeu, a massa de chamas oscilou como se fosse cair e o mastaréu da proa tombou como uma flecha de fogo, ricocheteando. Logo em seguida, com um salto do tamanho de um dos nossos remos, ficou flutuando tranquilo e muito negro no mar resplandecente. Novamente chamei do convés. Passado um tempo, um homem com um tom de voz inesperadamente alegre, embora abafado como se tentasse falar com a boca fechada, me informou: ‘Estamos indo, senhor!’ — e desapareceu. Nada mais ouvi a não ser o estalar e o rugir do fogo durante algum tempo. Havia também assobios. Os botes saltavam, davam guinadas e puxavam pelas amarras, jogavam-se uns contra os outros, batiam seus cascos ou, a despeito de nossos esforços, se reuniam em grupo contra o navio. Não consegui aguentar mais e, pegando um cabo, subi para bordo pela popa.

Estava claro como um dia. Vindo do mar, o lençol de fogo que se apresentava diante de mim era uma visão terrível e o calor a principio mal parecia suportável. Num colchão retirado do camarote, o capitão Beard, de pernas estiradas e um braço debaixo da cabeça, dormia, com a luminosidade a brincar sobre seu corpo. Pois sabem o que os outros estavam fazendo? Estavam sentados no convés da popa em volta de um saco aberto, comendo pão com queijo e bebendo cerveja!

Sobre aquele fundo de chamas que se retorciam em esquisitas línguas de fogo acima de suas cabeças, pareciam estar em casa, como salamandras, e aparentavam um bando de piratas desesperados. O fogo reflectia-se no branco dos olhos, cintilava nos pedaços de pele branca que as camisas rotas mostravam. Em todos, os sinais de batalha: cabeças enfaixadas, braços na tipoia, um farrapo sujo em torno do joelho. .. e cada homem tinha uma garrafa entre as pernas e um pedaço de queijo nas mãos. Mahon se levantou. Com sua bela cabeça, perfil de anzol, longa barba branca, uma garrafa ainda fechada na mão, parecia um antigo bucaneiro entregando-se ao prazer em meio a violência e ao desastre.

– ‘A ultima refeição a bordo’, explicou solenemente. ‘Não comemos nada durante o dia e não valeria a pena deixar tudo isto pra trás.’ Com a garrafa indicou o capitão dormindo. ‘Ele disse que não podia beber, de maneira que lhe arrumei a cama’, continuou Mahon enquanto eu olhava para ele. ‘Não sei se esta sabendo, meu rapaz, que o homem não dormiu durante dias inteiros, e que haverá muito pouco tempo para se dormir nesses botes.’

Respondi, indignado:

– ‘Não haverá nenhum bote por perto se vocês continuarem nisso por muito tempo.’ Aproximei-me do capitão e o sacudi pelos ombros. Finalmente o velho abriu os olhos, mas não se moveu: ‘E hora de abandonar o navio, senhor’ — disse eu, em tom calmo.

Ele se levantou dolorosamente, olhou para as chamas, para o mar que cintilava à volta do navio e que mais longe permanecia negro como tinta; olhou para as estrelas que tremeluziam através de um delgado véu de fumaça num céu negro, negro como Érebo.

– ‘Os mais jovens em primeiro lugar’, disse ele.

E os marinheiros, limpando a boca com as costas das mãos, se levantaram, galgaram a amurada da popa e desapareceram. Os demais os seguiram. Um deles, na hora de saltar, parou um pouco para ver o fundo da garrafa e, abrindo os bravos, jogou-a ao fogo, gritando: ‘Toma isto!’

O capitão se demorava, desconsolado, e nos o deixamos em paz com a comunhão solitária de seu primeiro comando. Depois, subi novamente a bordo e o trouxe comigo, finalmente. Já era tempo. A ferragem da popa estava quente, quando a tocávamos Em seguida, cortamos o cabo da baleeira e as três embarcações, amarradas umas as outras, se afastaram do navio. Quando chegamos a abandoná-lo estávamos exactamente a dezasseis horas da explosão. Mahon estava no comando do segundo bote e eu tinha o menor — o de 14 pés. A lancha poderia conter todos nós, mas o capitão dissera que deveríamos salvar tudo o que fosse possível — para os homens do seguro — e assim eu tive o meu primeiro comando. Havia dois homens comigo, uma caixa de biscoitos, algumas latas de carne e uma barrica d’água. Recebi ordens de navegar perto da lancha para, em caso de mau tempo, passarmos para bordo.

Pois sabem o que eu pensei? Pensei que deveria dizer-lhes adeus tão logo fosse possível. Eu desejava ter o meu primeiro comando somente para mim mesmo. Não iria velejar numa esquadra, se houvesse oportunidade de um cru­zeiro independente. Chegaria a terra sozinho. Iria à frente dos outros botes. Juventude! Nada mais do que juventude! A estúpida, encantadora e bela juventude!

No entanto, não partimos de imediato. Devíamos ver o navio afundar. E por isso os botes vogaram e vagaram em torno do navio aquela noite, balançando-se nas ondas. Os homens cochilavam, despertavam, suspiravam, resmungavam. Eu olhava para o navio em chamas.

Entre a escuridão de mar e céu, o navio se consumia violentamente, sobre um círculo de água púrpura, desenhado pelas chamas cor de sangue sobre um disco de água rebrilhante e sinistro. Uma chama alta e esguia, uma imensa e solitária chama, se elevava do oceano e, do seu alto, a fumaça negra subia constantemente para o céu. O navio ardia furiosamente, imponente e aflitivo como uma peça de funeral plantada na noite, cercada pelo mar, vigiada pelas estrelas. Uma morte magnifica viera como uma graça, como uma dádiva, como uma recompensa para aquele velho brigue no final de seus dias laboriosos. A entrega de seu cansado fantasma à guarda das estrelas e do mar era excitante como a visão de um triunfo glorioso. Os mastros caíram pouco an­tes de raiar o dia e por um instante houve um redemoinho de faulhas que parecia encher de fogo volante a noite paciente e vigilante, a vasta noite silenciosa sobre o mar. À luz do dia, o navio era apenas oca carcaça flutuando, ainda sob uma nuvem de fumaça, transportando uma massa de carvão em brasa.

Depois recolhemos os remos e os botes, em linha, se movimentaram em torno dos restos do navio como numa procissão — a lancha à frente. Quando passávamos pela popa, uma leve língua de fogo arremeteu-se contra nós e, de repente, o navio foi a pique, da proa para baixo, cuspindo agua. A popa, que não fora consumida pelo fogo, foi a ultima a afundar; mas a pintura desaparecera, rachara, caíra e já não havia letras nem palavras, nada que fosse, nenhuma obstinada divisa que lhe desse a alma que fazia, ao sol nascente, que ele pudesse brilhar o seu credo e o seu nome.

*    *    *

Rumamos para o norte. Soprava uma brisa e mais ou menos ao meio-dia todos os botes se reuniram pela última vez. Eu, no meu, não tinha mastros nem velas, mas fiz um mastro com um remo sobressalente e icei um toldo de navio como vela; tendo um croque como verga. Certamente o bote estava com mastro demais mas eu tinha a satisfação de saber que, com o vento em popa, venceria os outros dois. Precisei esperá-los. Depois, todos examinamos o mapa do capitão e, após uma refeição em comum de pão duro e água, recebemos nossas ultimas instruções. Elas eram simples: velejar para o norte e nos mantermos tão jun­tos quanto possível. ‘Tenha cuidado com essa vela improvisada, Marlow’, me disse o capitão, e Mahon franziu seu nariz recurvo quando passei orgulhosamente por seu bote e advertiu: ‘Se não prestar atenção, você vai acabar jogando este bote no fundo, rapaz.’ Era um velhote irónico — que o mar profundo, onde agora dorme, o embale terna e suavemente até o fim dos tempos!

Antes do pôr-do-sol, um pesado aguaceiro passou por cima das outras duas embarcações que estavam bem atrás e durante algum tempo não voltei a vê-las. No dia seguinte, ao leme da minha casca-de-noz — o meu primeiro comando — só tinha mar e céu a minha volta. À tarde, avistei as velas altas de um navio muito distante, mas nada disse e os meus homens nada perceberam. Compreendam vocês, eu temia que o navio estivesse de regresso e absolutamente não me passava pela cabeça voltar das portas do Oriente. Eu estava velejando para Java — outro nome abençoado como Bangkok. Velejei durante dias e dias.

Não preciso dizer a vocês o que é estar a balançar num bote desabrigado. Me lembro de noites e dias de calmaria, quando remávamos e remávamos, e o bote parecia ficar tranquilo como que enfeitiçado dentro do circulo do horizonte marítimo. Me lembro do calor, do diluvio que nos obrigava a tirar água com balde para salvarmos a pele (mas pelo menos enchia o nosso barril) durante dezesseis horas sem fim, de boca seca como cinza e o remo da popa, a fim de manter o meu primeiro comando de proa contra a arrebentação. Não sabia até então que eu era o que se pode chamar de um homem! Lembro os rostos cansados, as figuras abatidas dos meus dois homens, me lembro da minha juventude e um sentimento que nunca mais haverá de voltar — o sentimento de que eu podia durar para sempre, mais do que o mar, do que a terra, do que todos os homens; o ilusório sentimento que nos atrai para alegrias, para perigos, para o amor, para o vão esforço — para a morte; a triunfante convicção de força, o calor da vida numa mão cheia de pó, a chama de coração que todo ano diminui, esfria, arrefece e expira — expira muito depressa, depressa demais, antes da própria vida.

E foi assim que eu vi o Oriente! Vi os seus lugares secretos e vislumbrei a sua alma; mas agora eu o vejo sempre de bordo de um pequeno barco, uma linha alta de montanhas, azuis e distantes na manhã; com uma leve neblina ao meio-dia; como uma muralha de púrpura recortada ao pôr-do-sol. Sinto o remo na minha mão, tenho a visão do mar azul nos meus olhos. E vejo uma baía, uma imensa baía, macia como um espelho e polida como gelo, cintilando no escuro. Uma luz vermelha arde a distância sobre a escuridão da terra e a noite está suave e cálida. Puxamos os remos com os nossos bravos doloridos e, de repente, um sopro de vento, um sopro leve, tépido de vento carregado de estranhos odores vegetais, de madeiras aromáticas, vem daquela noite tranquila — o primeiro suspiro do Oriente no meu rosto. Nunca mais poderei esquecer isto. Era impalpável e déspota como um encantamento, como uma sussurrada promessa de algum prazer misterioso.

Na ultima etapa tínhamos remado onze horas seguidas. Dois remavam e o que descansava segurava o leme. Havíamos visto a luz vermelha da baía e velejávamos em sua direcção, calculando que deveria representar algum pequeno porto costeiro. Passamos por dois navios estrangeiros, de popa alta e exóticos, que dormiam ancorados, e já próximos do farol esmaecido batemos com a proa do bote na ponta de um ancoradouro. Estávamos cegos de tanta fadiga. Os homens largaram os remos e caíram dos bancos, como mortos. Amarrei o bote numa estaca. Uma corrente de ar agitava brandamente as águas. A obscuridade da costa se agrupava em grandes massas, uma infinidade de camadas colossais de vegetação ao que parecia — mudas e fantásticas sombras. E embaixo, o semicírculo de uma praia reluzia debilmente — como uma ilusão. Não havia uma luz sequer, um movimento, um som. O misterioso Oriente estava diante de mim, perfumado como uma flor, silencioso como a morte, escuro como uma sepultura.

E lá estava eu, mais cansado do que saberia descrever, exultante como um conquistador, insone e em transe como estivesse frente a um enigma fatal e profundo.

Um bater de remos, um leve ruído rítmico ao nível da água, ampliado pelo silêncio da costa, me fez saltar. Um bote, um bote europeu estava chegando. Invoquei o nome do morto e chamei:

– “O de bordo, do Judea!”

Um pequeno grito me respondeu. Era o capitão. Eu havia ultrapassado sua lancha em três horas e estava contente por ouvir novamente a voz do velho, trémula e cansada.

– ‘É voce, Marlow?’

Gritei:

– ‘Cuidado com a ponta do molhe, senhor!’

O bote se aproximou cuidadosamente, manejado com a linha de prumo que havíamos salvo — para os homens do seguro. Folguei a boça do escaler e fiquei a seu lado. O capitão era uma figura abatida na popa, húmido de sereno, as mãos cruzadas no peito. Seus homens já dormiam.

– ‘Foi terrível’, murmurou. ‘Mahon ficou para trás, não muito distante.’
Conversávamos em voz baixa, como se receássemos despertar a terra. Canhões, trovoadas, terremotos não poderiam despertar os homens. Olhando a volta, enquanto conversávamos, vi, a distância, no mar, uma límpida luz navegando na noite.

– ‘La vai um vapor passando pela baía’, disse eu.

O vapor não estava passando, estava entrando — e até mesmo se aproximou e lançou âncora.

– ‘Gostaria que você descobrisse se é um navio inglês’, disse o capitão. ‘Talvez pudesse nos levar para algum lugar.’

Parecia excitado e nervoso. Assim, com murros e pontapés, coloquei um dos meus homens em estado de sonambulismo e, dando-lhe um dos remos, tomei o outro e remamos em direcção as luzes do vapor.

Havia um murmúrio de vozes a bordo, ruídos metálicos e cavos na casa de máquinas, passos no convés. As portinholas brilhavam, redondas como olhos dilatados. Sombras se movimentavam e surgiu a silhueta de um homem no alto da ponte de comando. Ele escutou o ruído dos meus remos.

E então, antes que pudesse abrir os lábios, o Oriente me falou, embora numa voz ocidental. Uma torrente de palavras foi despejada no silencio enigmático e fatídico; palavras exóticas, iradas, misturadas com palavras e mesmo frases inteiras em bom inglês, menos estranho mas ainda assim mais surpreendente. A voz praguejava e xingava violentamente; destroçava a solene paz da baía com uma enxurrada de injurias. Começou por me chamar de porco e dai em diante continuou em crescendo para adjectivos impossíveis de se reproduzir — em inglês. O homem que estava na ponte do comando se enraivecia em voz alta, em duas línguas, com uma sinceridade na sua fúria que quase chegou a me convencer de que, de alguma maneira, eu havia cometido um pecado contra a harmonia universal. Mai podia vê-lo mas comecei a pensar que ele acabaria tendo um acesso de loucura.

De repente, parou de praguejar e consegui escutá-lo, roncando e soprando como uma foca. Perguntei:

– ‘Por favor, que navio é este?’

– ‘Hem? O que é isto? E quem é você?’

– ‘Tripulação naufragada de um navio inglês que se incendiou no mar. Chegamos aqui hoje à noite. Sou o segundo-piloto. O capitão esta na lancha e deseja saber se vocês podem nos levar para algum lugar.’

– ‘Oh, meu Deus! Quer dizer... Este é o Celestial vindo de Singapura em sua viagem de retorno. Pela manha combinarei com seu capitão... e... o senhor me escutou gritando há pouco?’

– ‘Creio que toda a baía escutou.’

– ‘Pensei que se tratasse de um barco costeiro. Agora, escute aqui... esse diabo desse preguiçoso desse canalha do guarda esta dormindo de novo, maldito seja! As luzes estavam apagadas e eu quase jogo o navio de ponta nesse molhe do inferno. É a terceira vez que ele me prega uma peça dessas. Diga-me se alguém pode tolerar uma coisa destas... É o suficiente para deixar alguém maluco. Darei parte dele... Vou fazer com que o encarregado o demita...! Esta vendo, não tem luz!? Imagine só... sem luz. O senhor é testemunha que está apagada. Como deve saber precisa haver uma luz ali. Uma luz vermelha no...’

– ‘Mas havia uma luz’, disse eu, calmamente.


– ‘Mas apagou-se, homem! De que adianta ficar falando nisso. O senhor mesmo pode ver que ela desapareceu, não pode? Se o senhor tivesse de trazer um vapor caro como este ao longo de uma danada de uma costa, o senhor também iria querer uma luz. Mas hei de escorraça-lo daqui a pontapés. Ora, vai ver se não vou... Vou... ’

– “Portanto posso dizer a meu capitão que irão nos receber?”, interrompi.

– ‘Pode, vamos recebê-los. Boa noite’, disse ele, bruscamente.

– Retornei ao molhe, amarrei novamente o bote e finalmente dormi. Havia já enfrentado o silêncio do Oriente. Havia escutado um pouco de sua linguagem. Mas quando abri meus olhos de novo o silêncio era tão completo como se jamais tivesse sido interrompido. Eu estava deitado numa torrente de luz debaixo de um céu que nunca me pareceu tão distante e tão alto. Abri os olhos e fiquei assim mesmo, sem me mexer.

– Foi então que vi os homens do Oriente — eles estavam me olhando. Toda a extensão do navio estava cheia de gente. Vi rostos pardos, bronzeados, amarelos, olhos negros, o brilho, a cor da multidão oriental. E todo esse pessoal me olhava fixamente sem um murmúrio, sem um suspiro, sem um movimento. Fitavam os botes, os homens adormecidos que durante a noite o mar lhes trouxera. Nada se mexia. As copas das palmeiras mantinham-se tranquilas contra o céu. Nem um ramo oscilava ao longo da costa e telhados castanhos de casas ocultas surgiam por entre folhagens verdes, por entre os grandes galhos que pendiam brilhantes e tranquilos como folhas forjadas em metal pesado. Aquele era o Oriente dos antigos navegadores, velho misterioso, resplandecente e sombrio, vivo e inalterado, cheio de perigos e promessas. E aqueles homens eram seus homens. Sentei- me rapidamente. A multidão movimentou-se, como uma onda, de um extremo ao outro do molhe, balançando as cabeças, oscilando os corpos, ao longo do molhe como uma mareta sobre a água, como um sopro de vento no campo — e tudo voltou de novo a imobilidade. Posso vê-lo agora — a ampla baía, as areias refulgentes, a riqueza do infinito e variado verde, o mar azul como um mar de sonho, a multidão de rostos atentos, o esplendor de cores vividas — e a água reflectindo tudo, a curva da costa, o cais, o vapor estrangeiro de popa para o alto a flutuar mansamente e os três botes com os homens do Ocidente cansados, e dormindo, inconscientes da terra e das pessoas e da violência dos raios solares. Dormiam estendidos nos bancos dos botes, encolhidos no convés, em poses descuidadas de morte. A cabeça do velho capitão apoiada na borda da lancha deslizara para o peito e dava a impressão de que ele jamais despertaria. Mais distante, o rosto de Mahon se encontrava de frente para o céu, com a longa barba branca espalhada pelo peito, como se tivesse morrido de tiro ali mesmo onde estava, ao pé do leme; e um dos homens, encolhido na proa do bote, dormia com o rosto sobre a amurada, os bravos em volta do bico da proa. O Oriente olhava para eles sem emitir um som.

– Desde então tenho sentido o seu fascínio; vi as misteriosas praias, a tranquila água, as terras dos povos morenos, onde uma furtiva Nêmeses espreitava, perseguindo, dominando tantos homens de uma raça conquistadora que se orgulha de sua sabedoria, do seu conhecimento, de sua força. No entanto, para mim, todo o Oriente esta contido nesta visão da minha juventude. Está tudo nesse momento em que abri meus olhos juvenis sobre ele. Chegava ao Oriente depois de batalhar contra o mar — e eu era jovem, e eu o vi olhando para mim. É isto tudo o que restou. Apenas um momento — de juventude! Um raio de sol sobre uma costa estranha, o tempo de lembrar, o tempo de suspirar e... bem, adeus! Noite — adeus!”
Marlow bebeu.

“Ah, os bons tempos — os bons tempos. Juventude e mar. Sedução e mar. O bom e poderoso mar, o salgado e amargo mar que podia sussurrar, rugir ou tirar-nos o fôlego.”
Marlow bebeu novamente.

“Entre todas as maravilhas, é o mar, acredito, o mar em si mesmo — ou é a juventude em si? Quem pode dizer? Mas vocês aí — vocês que conseguiram alguma coisa da vida, dinheiro, amor, tudo o que se consegue na terra — vocês não acham que o melhor dos tempos foi aquele em que éramos jovens no mar, jovens que nada tinham, e no mar que não nos dá coisa alguma a não ser pancadas e por vezes uma oportunidade de sentirmos nossa própria força? Não seria somente esse o tempo que todos nos recordamos com saudade?”

E todos nos concordamos com ele: o homem de empresa, o guarda-livros, o advogado, todos nós concordamos com ele, mexendo a cabeça por sobre a mesa polida como um lençol tranquilo de água escura que reflectia nossos rostos vincados pelas rugas; nossos rostos marcados pelo trabalho, pelas decepções, pelo sucesso, pelo amor; nossos olhos cansados, procurando fixamente, sempre, com ansiedade, alguma coisa fora da vida que, enquanto se espera, já se foi – passa sem ser vista, como um suspiro, como um relâmpago – junto com a juventude, a força, o romance das ilusões.

Joseph Conrad