segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

GIOACHINO ROSSINI
«William Tell Overture - Finale»

Poet'anarquista

Giochino Rossini
Caricatura do Compositor Italiano

OUTROS CONTOS

«A Guerra», por Anais Vaugelade.
«A Guerra»
Duelo no Campo de Batalha/ Eugene Delacroix

745- «A GUERRA»

Era a guerra. Todas as manhãs os homens partiam para os campos de batalha. Os que regressavam à noite traziam os mortos e os estropiados. Havia guerra há tanto tempo que já ninguém se lembrava da razão por que ela tinha começado.

Vítor II, rei dos Vermelhos, contava e recontava os soldados do seu reino. “Dez mais vinte faz trinta; ainda posso acrescentar cinquenta… Oitenta homens! Oitenta homens não chegam para ganhar a guerra.” E começava a chorar. Felizmente para ele, Vítor II, rei dos Vermelhos, tinha um filho que se chamava Júlio. Júlio entrava na sala do trono e dizia: — Coragem, Pai! — E o rei tornava a ter coragem.

Armando – XII, rei dos Azuis, também só tinha oitenta soldados e um filho. Mas, quando Armando XII ficava desanimado, o filho não sabia o que dizer. O filho de Armando XII chamava-se Fabiano e interessava-se pouco pela guerra. Passava os dias no parque, sentado num ramo. Um dia, Fabiano recebeu uma carta do príncipe Júlio:

Os nossos pais já quase não têm soldados; portanto, se és homem, pega no teu cavalo e na tua armadura. Marco-te encontro para amanhã de manhã no campo de batalha; bater-nos-emos em duelo e aquele que ganhar o combate ganhará ao mesmo tempo a guerra.
Assinado: Júlio

Fabiano suspirou. Nem por isso gostava muito de montar a cavalo. No dia seguinte, Fabiano chegou ao encontro montado numa ovelha.

— Em guarda! — disse Júlio.

— Béééé! — fez a ovelha.

Isto assustou o cavalo que se empinou na vertical. Júlio caiu.

— Estás ferido? — perguntou Fabiano.

Mas Júlio estava mais do que ferido, estava morto. Os soldados vermelhos berraram: — O combate foi falseado!

Fabiano quis explicar-lhes que tinha sido um acidente, mas, como eles tinham piques e lanças, preferiu fugir.

Armando XII, rei dos Azuis, esperava-o.

— Devias ter vergonha! — ralhou ele.

— Mas eu não fiz nada — disse Fabiano.

— Justamente — respondeu o pai. — Vergonha e vergonha a dobrar; expulso-te do meu reino.

Fabiano escondeu-se no parque. Era de tarde e os soldados tinham recomeçado a guerra; então, Fabiano decidiu fazer uma coisa: decidiu escrever duas cartas, uma para Armando XII e outra para Vítor II. As duas cartas diziam exactamente a mesma coisa:

Estou em casa do rei Amarelo, Basílio IV, que me deu um grande exército. Portanto, se sois homens, pegai nos vossos cavalos e nas vossas armaduras. Marco-vos encontro para amanhã de manhã no campo de batalha.
Assinado: Fabiano

Armando XII recebeu a carta nessa noite. — A nulidade do meu filho, um grande exército? — disse ele. — Devem ser só para aí uns oito e eu faço picado deles.

Quando Vítor II recebeu a carta, encolheu os ombros; declarou que esmagaria esse vencedor de combates falseados. Meteu a carta no bolso e foi deitar-se.

Quando viu chegar o exército Azul, o rei dos Vermelhos exclamou:

— Que fazeis vós aqui, Senhores? Nós temos encontro marcado com o exército Amarelo; portanto, abandonem este local.

— Imaginai, Senhores, que nós também temos encontro marcado com o exército Amarelo.

— Não compreendo — disse Vítor II, rei dos Vermelhos.

— Eu também não — disse Armando XII, rei dos Azuis.

Compararam as duas cartas.

— Na sua opinião, quantos serão os soldados Amarelos?

— Talvez oito ou oitenta ou, talvez, oitocentos…

— Que importa, se os Azuis são verdadeiros heróis? — disse Armando XII.

E Vítor II replicou: — Os Vermelhos não temem ninguém.

Ao meio-dia, os Amarelos ainda não tinham chegado. Embora bravos e não receando ninguém, o que é certo é que a espera enerva:

— Senhores — disse Armando XII — creio que, face a oitocentos homens, devíamos aliar os nossos exércitos.

— É justo! — respondeu Vítor II.

Esperaram ainda toda a tarde. Às sete, os reis discutiram se haviam de regressar aos seus castelos, mas decidiram que não, que era melhor ficar, para o caso de os Amarelos chegarem de noite; e mandaram vir sanduíches. No dia seguinte, os Amarelos continuavam sem chegar. Então, começaram a instalar tendas e a acender fogueiras. Ao terceiro dia, as mulheres dos soldados vieram com as suas caçarolas e colheres, porque não era possível sustentar dois exércitos a sanduíches. Ao quarto dia, trouxeram os bebés. E, ao quinto dia, as outras crianças, que se aborreciam sozinhas em casa. Os mais velhos montaram comércios. Ao décimo dia, o campo de batalha parecia uma aldeia.

Fabiano pensou: “Não tenho exército nem nunca tive; mas, graças a mim, a guerra acabou.” Então Fabiano foi a casa de Basílio IV, rei dos Amarelos, para lhe contar a história. Basílio riu muito quando ele falou no exército imaginário, mas chorou um pouco pelo príncipe Júlio, morto tão estupidamente; e chorou até por todos os soldados dos quais nem mesmo sabia o nome.

Basílio IV achou que Fabiano era o mais esperto e também o mais ajuizado; e, como não tinha filhos, pediu-lhe que fosse o príncipe dos Amarelos e que reinasse, mais tarde, no seu reino. O rei Fabiano foi um excelente rei. E, é claro, durante o seu reinado, nunca houve nenhuma guerra.

Anais Vaugelade

domingo, 28 de fevereiro de 2016

SÁTIRA...

Catarina Arrependida
HenriCartoon

«CATARINA ARREPENDIDA»

Eu, Aspirina confesso:
Os Pais meti ao sarilho...
Ajoelho perante o Filho,
A seus pés, perdão peço!
Virei tudo do avesso…
Muita virgem ofendida,
Madalena prostituída
Até me sinto pecadora…
Valha-me Nossa Senhora
Pra que fique absolvida!

POETA

OUTROS CONTOS

«O Guarda e o Contrabandista», conto poético por Matias José.

«O Guarda e o Contrabandista»
Dois amigos: José Rosado ex-guarda fiscal, 
e José Inácio Vitória antigo contrabandista, 
também conhecido como 'Corre-Corre' e 'Atleta'

744- «O GUARDA E O CONTRABANDISTA»

- Que levas no saco,
Zé ‘Corre-Corre’?
- Só a mim me ocorre!...
Terra daquele buraco,
Mas não lucro pataco
Nesta vida que ando...
Sobre rodas vai andando
O negócio de bicicleta.
Antes era o ‘Atleta’,
Famoso no contrabando.

Matias José

sábado, 27 de fevereiro de 2016

OUTROS CONTOS

«Lágrimas e Testosterona», por Moacyr Scliar.

«Lágrimas e Testosterona»
Detalhe/ Gustav Klimt

743- «LÁGRIMAS E TESTOSTERONA»

Atenção, mulheres, está demonstrado pela ciência: chorar e golpe baixo. As lágrimas femininas liberam substâncias, descobriram os cientistas, que abaixam na hora o nível de testosterona dos homens que estiverem por perto, deixando os sujeitos menos agressivos. Os cientistas queriam ter certeza de que isso acontece em função de alguma molécula liberada — e não, digamos, pela cara de sofrimento feminina, com sua reputação de derrubar até o mais insensível dos durões. Por isso, evitaram que os homens pudessem ver as mulheres chorando. Os cientistas molharam pequenos pedaços de papel em lágrimas de mulher e deixaram que fossem cheirados pelos homens. O contacto com as lágrimas fez a concentração da testosterona deles cair quase 15%, em certo sentido deixando-os menos machões.

(Publicado no caderno Ciência, 7 de Janeiro de 2011)

Ele vivia furioso com a mulher. Por, achava ele, boas razões. Ela era relaxada com a casa, deixava faltar comida na geladeira, não cuidava bem das crianças, gastava de mais. Cada vez porém, que queria repreendê-la por urna dessas coisas, ela começava a chorar. E aí, pronto: ele simplesmente perdia o ânimo, derretia. Acabava desistindo da briga, o que o deixava furioso: afinal, se ele não chamasse a mulher à razão, quem o faria? Mais que isso, não entendia o seu próprio comportamento. Considerava-se um cara durão, detestava gente chorona.

Por que o pranto da mulher o comovia tanto? E comovia-o à distância, inclusive. Muitas vezes ela se trancava no quarto para chorar sozinha, longe dele. E mesmo assim ele se comovia de uma maneira absurda.

Foi então que leu sobre a relação entre lágrimas de mulher e a testosterona, o hormônio masculino. Foi urna verdadeira revelação. Fina!... mente tinha uma explicação lógica, científica, sobre o que estava acontecendo. As lágrimas diminuíram a testosterona em seu organismo, privando-o da natural agressividade do sexo masculino, transformando-o num cordeirinho.

Uma ideia lhe ocorreu: e se tomasse injeções de testosterona? Era o que o seu irmão mais velho fazia, mas por carência do hormônio.

Com ele conseguiu duas ampolas do hormônio. Seu plano era muito simples: fazer a injeção, esperar alguns dias para que o nível da substância aumentasse em seu organismo e então chamar a esposa à razão.

Decidido, foi à farmácia e pediu ao encarregado que lhe aplicasse a testosterona, mentindo que depois traria a receita. Enquanto isso era feito, ele de repente caiu no choro, um choro tão convulso que o homem se assustou: alguma coisa estava acontecendo?

É que eu tenho medo de injeção, ele disse entre soluços. Pediu desculpas e saiu precipitadamente. Estava voltando para casa. Para a esposa e suas lágrimas.

Moacyr Scliar

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

BUDDY MILLES - «Texas»

Poet'anarquista

Buddy Milles
Baterista Norte-Americano

POEMA DE AUGUSTO GIL

Luar de Janeiro
Augusto Gil

LUAR DE JANEIRO

Luar de Janeiro,
Fria claridade
À luz dele foi talvez
Que primeiro
A boca dum português
Disse a palavra saudade...

Luar de platina,
Luar que alumia
Mas que não aquece,
Fotografia
D'alegre menina
Que há muitos anos já... envelhecesse.

Luar de Janeiro,
O gelo tornado
Luminosidade...
Rosa sem cheiro,
Amor passado
De que ficasse apenas a amizade...

Luar das nevadas,
Álgido e lindo,
Janelas fechadas,
Fechadas as portas,
E ele fulgindo,
Límpido e lindo,
Como boquinhas de crianças mortas,
Na morte geladas
-E ainda sorrindo...

Luar de Janeiro,
Luzente candeia
De quem não tem nada,
-Nem o calor dum braseiro,
Nem pão duro para a ceia,
Nem uma pobre morada...

Luar dos poetas e dos miseráveis,
Como se um laço estreito nos unisse,
São semelháveis
O nosso mau destino e o que tens...

De nós, da nossa dor, a turba ri-se
-E a ti, sagrado luar ... ladram-te os cães!

Augusto Gil

OUTROS CONTOS

«Desejos», conto poético por Victor Hugo.

«Desejos»
Pedra dos Namorados/ São Pedro do Corval

742- «DESEJOS»

Desejo primeiro que você ame,
E que amando, também seja amado.
E que se não for, seja breve em esquecer.
E que esquecendo, não guarde mágoa.
Desejo, pois, que não seja assim,
Mas se for, saiba ser sem desesperar.
Desejo também que tenha amigos,
Que mesmo maus e inconsequentes,
Sejam corajosos e fiéis,
E que pelo menos num deles
Você possa confiar sem duvidar.
E porque a vida é assim,
Desejo ainda que você tenha inimigos.
Nem muitos, nem poucos,
Mas na medida exata para que, algumas vezes,
Você se interpele a respeito
De suas próprias certezas.
E que entre eles, haja pelo menos um que seja justo,
Para que você não se sinta demasiado seguro.
Desejo depois que você seja útil,
Mas não insubstituível.
E que nos maus momentos,
Quando não restar mais nada,
Essa utilidade seja suficiente para manter você de pé.
Desejo ainda que você seja tolerante,
Não com os que erram pouco, porque isso é fácil,
Mas com os que erram muito e irremediavelmente,
E que fazendo bom uso dessa tolerância,
Você sirva de exemplo aos outros.
Desejo que você, sendo jovem,
Não amadureça depressa demais,
E que sendo maduro, não insista em rejuvenescer
E que sendo velho, não se dedique ao desespero.
Porque cada idade tem o seu prazer e a sua dor e
É preciso deixar que eles escorram por entre nós.
Desejo por sinal que você seja triste,
Não o ano todo, mas apenas um dia.
Mas que nesse dia descubra
Que o riso diário é bom,
O riso habitual é insosso e o riso constante é insano.
Desejo que você descubra, com o máximo de urgência,
Acima e a respeito de tudo, que existem oprimidos,
Injustiçados e infelizes, e que estão à sua volta.
Desejo ainda que você afague um gato,
Alimente um cuco e ouça o João-de-Barro
Erguer triunfante o seu canto matinal
Porque, assim, você se sentirá bem por nada.
Desejo também que você plante uma semente,
Por mais minúscula que seja,
E acompanhe o seu crescimento,
Para que você saiba de quantas
Muitas vidas é feita uma árvore.
Desejo, outrossim, que você tenha dinheiro,
Porque é preciso ser prático.
E que pelo menos uma vez por ano
Coloque um pouco dele
Na sua frente e diga ‘Isso é meu’,
Só para que fique bem claro quem é o dono de quem.
Desejo também que nenhum de seus afetos morra,
Por ele e por você, mas que se morrer, você possa chorar
Sem se lamentar e sofrer sem se culpar.
Desejo por fim que você sendo homem,
Tenha uma boa mulher,
E que sendo mulher,
Tenha um bom homem
E que se amem hoje, amanhã e nos dias seguintes,
E quando estiverem exaustos e sorridentes,
Ainda haja amor para recomeçar.
E se tudo isso acontecer,
Não tenho mais nada a te desejar.

Victor Hugo

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

SÁTIRA...

A Geringonça
HenriCartoon

«A GERINGONÇA»

- E diziam os PAFistas
Que a geringonça não andava?
Era só o que mais faltava!...
Anda e bem, sem europeístas.
- Pra longe dos capitalistas
Será o próximo destino,
Deixa cá ver se eu atino...?
- Tudo menos prá Europa!...
- À esquerda a gente topa!!...
- Esta malta perdeu o tino!!!

POETA

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

MILT JACKSON - «Old Devil Moon»

Poet'anarquista

Milt Jackson
Vibrafonista de Jazz Norte-Americano

«BLOQUEIO», POR MATIAS JOSÉ

Bloqueio
Décimas por Matias José

«BLOQUEIO»

Bloqueado na escrita
Sem ter o que escrever,
Surge esta quadra maldita
Do nada pra desenvolver.

A puta da poesia
Por vezes é fodida,
Anda desaparecida
E eu sem companhia.
Isto provoca arrelia
O que muito me irrita,
Não encontrar a dita
Cria este mau estar…
Fico até com falta d’ar
Bloqueado na escrita!

Nem preciso sequer
Procurar explicação…
A resposta à questão:
- Aparece quando quer!
Que venha se quiser
Quero lá disso saber,
Não vou decerto morrer
Só faz falta quem está…
A mim tanto se me dá,
Sem ter o que escrever.

Quando menos espero
Resolve bater à porta (?)
- Afinal estás de volta!?...
Remato em tom austero.
De seguida pondero
Deixar entrar a visita,
Fica-me a alma aflita
Com tal pensamento…
Nesse preciso momento
Surge esta quadra maldita!

 - Ora entre, se faz favor,
(Digo eu bem educado…)
Acomode-se aqui ao lado
Deste pobre escritor.
- Anuncio com rigor
O que precisas fazer:
Simplesmente esquecer...
Verás como se enquadra,
Surgirá então a quadra
 Do nada pra desenvolver.

Matias José

OUTROS CONTOS

«O Sal e a Água», por Teófilo de Braga.

«O Sal e a Água»
Mar Morto, Israel

741- «O SAL E A ÁGUA»

Um rei tinha três filhas; perguntou a cada uma delas, por sua vez, qual era a mais sua
amiga. A mais velha respondeu:

– Quero mais a meu pai do que à luz do Sol.

Respondeu a do meio:

– Gosto mais de meu pai do que de mim mesma.

A mais moça respondeu:

– Quero-lhe tanto como a comida quer o sal.

O rei entendeu por isto que a filha mais nova o não amava tanto como as outras e pô-la
fora do palácio. Ela foi muito triste por esse mundo e chegou ao palácio de um rei e aí se
ofereceu para ser cozinheira. Um dia, veio à mesa um pastel muito bem feito, e o rei, ao parti-
-lo, achou dentro um anel muito pequeno e de grande preço. Perguntou a todas as damas da
corte de quem seria aquele anel. Todas quiseram ver se o anel lhes servia: foi passando, até
que foi chamada a cozinheira e só a ela é que o anel servia. O príncipe viu isto e ficou logo
apaixonado por ela, pensando que era de família de nobreza.

O príncipe começou então a espreitá-la, porque ela só cozinhava às escondidas, e viu-
-a vestida com trajos de princesa. Foi chamar o rei seu pai e ambos viram o caso. O rei deu
licença ao filho para casar com ela, mas a menina tirou por condição5 que queria cozinhar
pela sua mão o jantar do dia da boda. Para as festas de noivado, convidou-se o rei que tinha
três filhas e que pusera fora de casa a mais nova. A princesa cozinhou o jantar, mas nos
manjares que haviam de ser postos ao rei seu pai não botou8 sal de propósito. Todos
comiam com vontade, mas só o rei convidado é que não comia. Por fim, perguntou-lhe o dono
da casa porque é que o rei não comia. Respondeu ele, não sabendo que assistia ao
casamento da filha:

– É porque a comida não tem sal.

O pai do noivo fingiu-se raivoso e mandou que a cozinheira viesse ali dizer porque é que
não tinha botado sal na comida. Veio então a menina vestida de princesa, mas, assim que
o pai a viu, conheceu-a logo e confessou ali a sua culpa, por não ter percebido quanto era
amado por sua filha, que lhe tinha dito que lhe queria tanto como a comida quer o sal e que,
depois de sofrer tanto, nunca se queixara da injustiça de seu pai.

Teófilo Braga

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

PENSAMENTO...

José Manuel Serqueira Afonso dos Santos
Poeta, Cantor e Compositor Português

Pensamento...

«Mal haja a noite assassina e quem domina sem nos vencer.»

José Afonso

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...
(A morte saiu à rua num dia assim...)

JOSÉ AFONSO - «A Morte Saiu à Rua»

Poet'anarquista

A MORTE SAIU À RUA

A morte saiu à rua num dia assim
Naquele lugar sem nome pra qualquer fim
Uma gota rubra sobre a calçada cai
E um rio de sangue dum peito aberto sai

O vento que dá nas canas do canavial
E a foice duma ceifeira de Portugal
E o som da bigorna como um clarim do céu
Vão dizendo em toda a parte o pintor morreu

Teu sangue, Pintor, reclama outra morte igual
Só olho por olho e dente por dente vale
À lei assassina à morte que te matou
Teu corpo pertence à terra que te abraçou

Aqui te afirmamos dente por dente assim
Que um dia rirá melhor quem rirá por fim
Na curva da estrada há covas feitas no chão
E em todas florirão rosas duma nação

José Afonso
Poeta, Cantor e Compositor Português

OUTROS CONTOS

«Difícil Poema de Amor», conto poético por Luiza Neto Jorge.

«Difícil Poema de Amor»
Conto Poético de Luiza Neto Jorge

740- «DIFÍCIL POEMA DE AMOR»
     
Separo-me de ti nos solstícios de verão, diante da mesa do juiz supremo
dos amantes. Para que os juízes me possam julgar, conhecerão primeiro o
amor desonesto infinito feito de marés ambulantes de espinhos nas pálpebras
onde as ruas são os pontos únicos do furor erótico e onde todos os pontos
únicos do amor são ruas estreitíssimas velocíssimas
que se percorrem como um fio de prumo sem oscilação.

      Ontem antes de ontem antes de amanhã antes de hoje antes deste
número-tempo deste número-espaço uma boca feita de lábios alheios beijou.
      Precipício aberto: ele nada revela que tu já não saibas.
      Porque este contágio de precipícios foste tu que mo comunicaste
maléfico como um pássaro sem bico.

      Num silêncio breve vestiu-se a cidade.   Muito bom-dia querido
moribundo. Sozinho declaraste a terceira grande paz mundial quando abrindo
os olhos me deste de comer cronometricamente às mil e tantas horas da
manhã de hoje.

     Deito-me cedo contigo o meu sono é leve para a liberdade   acordas-
-me só de pensares nela. As casas e os bichos apoiam-se em ti. Não fujas não
te mexas: vou fixar-te para sempre nessa posição.

     Que há? Abrem-se fendas no ar que respiro   vejo-lhe o fundo. Tens os
olhos vasados. Qual de nós os dois "quero-Te" gritou?

     Bebe-me espaçadamente encostada aos muros. Se és poeta que fazes tu?
Comes crianças jogas ases sentado és uma estátua de pé a cauda de um cometa.

     Mães entretanto vão parindo. Os filhos morrerão ainda? Entregas-te a
cálculos. Amas-me demais.
     Confesso: não sei se sou amada por ti.

     Virás quando houver uma fala indestrutível devolvida à boca dos mais vivos. 
Então virás vivo também. Sempre esperei ver-te ressuscitado. Desiludiste-me.

     E iremos com o plural de nós nos leitos menores onde o riso, onde o
leito do rio é um filho entre os dois. Que farei de teus braços de meus cabelos
benignos que faremos?

     Nasci-te da minha pele com algumas fêmeas te deitei por vezes.
Conheces-me. Não me tens amor

     Grave esta corda cortada agudo seixo me ataste aos olhos para me
afundar.

     Só por grande angústia me condenas à morte se de mim te veio a cidade
e os minúsculos objectos que já amaste ou que irás amar um dia    espero.
     Ah a cratera o abismo eléctrico!

     Por isso o teu novo amor será comigo mais perigoso que este imaculado
com mais visco de amor cópula mortal.

     Calo-me.
     Reparei de repente que não estavas aqui. Pus-me a falar a falar. Coisas
de mulher desabitada. Sei que um dia desviarei sem ti os passeios rectos
esvaziarei os gordos manequins falantes. A razão é uma chapa de ferro
ao rubro: se acredito na tua morte começo o suicídio.

     Enquanto penetrantemente te espero a luz coalhou. Os pássaros
coalharam enquanto te espero. O leite enquanto te espero coalhou. Haverá
outro verbo?
    
Submersa, muito distante de qualquer inferno de um paraíso qualquer existo
eu. Existirão tais palavras?

     É a altura de escrever sobre a espera. A espera tem unhas de fome, bico
calado, pernas para que as quer. Senta-se de frente e de lado em qualquer
assento. Descai com o sono a cabeça de animal exótico enquanto os olhos se
fixam sobre a ponta do meu pé e principiam um movimento de rotação em
volta de mim em volta de mim de ti.

     Nunca te conheci - assim explico o teu desaparecimento. Ou antes:
separei-me de ti no solstício de um verão ultrapassado. As mulheres viajavam
pela cidade completamente nuas de corpo e espírito. Os homens mordiam-se
com cio. Imperturbável pertenceste-me. Assim nos separámos.

     Não calhasse morrer um de nós primeiro que o outro porque ambos ao
mesmo tempo será impossível enquanto não houver relógios que meçam
este tempo e as horas fielmente se adiantarem e atrasarem.

     Alguma vez pretendi dizer-te o que quer que fosse? Falava por paixão
por tibieza por desgosto por claridade por frio por cansaço
     nunca por pretender dizer o que quer que fosse.

     Não me desculpo. Se já me cai o cabelo se já não sinto os ombros é
porque o amor é difícil ou a minha cabeça uma pedra escura que carrego
sobre o corpo a horas e desoras ostentando-a como objecto público sagrado
purulento. O odor que as pedras têm quando corpos. O apocalipse de tudo
quando amamos. O nosso sangue em pó tornado entornado.

     O teu amor espreita o meu corpo de longe. De longe por gestos
lhe respondo. Tenho raízes nos vulcões ternuras íntimas medos reclusos
beijos nos dentes.

     A pobreza surge dentro de nós embora cautelosos deitados de manhã e
de tarde ou simplesmente de noite despertos. Ambos meu amigo estamos
sentados neste momento perfeitamente incautos já. Contemplamos um país
e sentamo-nos e vestimo-nos e comemos e admiramos os monumentos e
morremos.

     Inventei  a  nossa  morte em toda a impossível extensão das palavras.
Aterrorizei-me segundos a fio enquanto em corpo nu ouvindo-me   
adormecias devagar.

     Com a precaução de quem tem flores fechadas no peito passeei de noite
pela casa. Um fantasma forçou uma porta atrás de mim. Gemendo como um
animal estrangulado acordei-te.

     Enterro o meu terror como um alfange na terra. Porque é preciso ter
medo bastante para correr bastante toda a casa celebrar bastantes missas negras
atravessar bastante todas as ruas com demónios privados nas esquinas.

     Só o amor tem uma voz e um gesto mesmo no rosto da ideia que me
impus da morte.
    
És tu tão único como a noite é um astro.

 Sobre a poeira que te cobre o peito deixo o meu cartão de visita o meu
nome profissão morada telefone.

     Disse-te: Eis-me.
    
  E decepei-te a cabeça de um só golpe.

     Não queria matar-te. Choro. Eis-me! Eis-me!

Luiza Neto Jorge

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

OUTROS CONTOS

«Sinto às Vezes», conto poético por António Corrêa d’Oliveira.

«Sinto às Vezes»
Soneto de António Corrêa d’Oliveira

739- «SINTO ÀS VEZES»

Sinto às vezes, tão negro abatimento,
Tão funda noite de alma, que parece
Que tudo se perturba e desfalece
Num fundo universal de pensamento.

E sofro. E choro; e logo cobro alento,
Como se em minhas lágrimas bebesse
O génio da revolta a que estremece
A terra do seu próprio fundamento.

Arde na treva a minha voz erguida;
- Acaso existe Deus? Aonde? Aonde?
Qual o sentido, a perfeição da vida? –

Cai um silêncio exânime do céu…
Mas eis que deste mundo me responde
Teu coração, batendo junto ao meu.

António Corrêa d'Oliveira

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

DEOLINDA - «Fado Toninho»

Poet'anarquista

FADO TONINHO

Dizem que é mau, que faz e acontece
arma confusão e o diabo a sete
agarrem-me que eu vou-me a ele
nem sei o que lhe faço
desgrenho os cabelos
esborrato os lábios
se não me seguram
dou-lhe forte e feio
beijinhos na boca
arrepios no peito
e pagas as favas
eu digo: - enfim,
ó meu rapazinho
és fraco para mim!

De peito feito ele ginga o passo
arregaça as mangas e escarra pró lado
anda lá, ó meu cobardolas
vem cá mano a mano
eu faço e aconteço
eu posso, eu mando
se não me seguram
dou-lhe forte e feio
beijinhos na boca
arrepios no peito
e pagas as favas
eu digo: enfim,
ó meu rapazinho
sou tão má p´ra ti!

Ó meu rapazinho, ai
eu digo assim:
"- Se não me seguram
dou cabo de ti!"

Deolinda
Banda Portuguesa

domingo, 21 de fevereiro de 2016

OUTROS CONTOS

«Abril é o mês mais Cruel», por Guillermo Cabrera Infante.

«Abril é o mês mais Cruel»
Conto de Guillermo Cabrera Infante

738- «ABRIL É O MÊS MAIS CRUEL»

Não soube se o que o despertou foi a claridade que entrava pela janela, o calor ou ambas as coisas. Ou quem sabe o barulho que ela fazia na cozinha preparando o café da manhã. Ouviu primeiro ela fritar os ovos e logo em seguida sentiu o cheiro da manteiga quente. Se esticou na cama e sentiu a frescura dos lençóis escorregando por debaixo de seu corpo e um arrepio agradável correu pelas costas até a nuca. Naquele momento ela entrou no quarto e ele se surpreendeu ao vê-la com o avental por cima do shorts. A lâmpada, que antes estava na mesinha ao lado da cama, já não estava mais ali e ali, ela pôs os pratos e os copos. Só então se certificou que ele estava acordado.

— Que me conta este dorminhoco? — perguntou ela brincando.

Em um bocejo ele respondeu: Bom dia.

— Como você se sente?

Ia dizer que muito bem, mas pensou que não era exactamente muito bem. Reconsiderou e disse:

— Admiravelmente.

Não mentia. Nunca tinha se sentido melhor. Mas se deu conta que palavras são traiçoeiras.

— Que bom! — disse ela.

Comeram. Quando ela terminou de lavar a louça, voltou ao quarto e propôs que eles fossem dar um mergulho.

— Faz um dia lindo — disse.

— Vi pela janela — disse ele.

— Viu?

— Bem, senti.

Se levantou, se lavou e colocou seu calção de banho. Por cima vestiu o roupão e foram a praia.

— Espere — disse ele na metade do caminho — Esqueci a chave.

Ela tirou a chave do bolso e mostrou. Ele sorriu.

— Você nunca esquece de nada?

— Sim — disse ela e o beijou na boca — Hoje tinha esquecido de te beijar. Quer dizer, depois de acordado.

Sentiu o ar do mar nas pernas, no rosto e respirou fundo. 

— Isso é vida — disse.

Ella tinha tirado as sandálias e enterrava os dedos na areia ao andar. Olhou para ele e sorriu.

— Você acredita? — disse.

— Você não acredita? — retorquiu ele.

— Oh, sim. Sem duvida. Nunca me senti melhor.

— Nem eu. Nunca na vida — disse ele

Se banharam. Ela nadava muito bem, com braçadas longas de profissional. Pouco depois ele regressou a praia e se deitou na areia. Sentiu que o sol secava a agua e os cristais de sal se grudavam nos seus poros. Ele pode observar onde estava se queimando mais e onde se formariam bolhas. Ele gostava de se bronzear ao sol. Ficar quieto, encostar a cara na areia e sentir a brisa formando e destruindo aquelas pequenas dunas e jogando grãos de areia para dentro de seu nariz, seus olhos, na boca e nos ouvidos. Parecia um deserto distante, imenso, misterioso e hostil. Cochilou.

Quando despertou, ela se penteava ao seu lado.

— Voltamos? — perguntou.

— Quando você quiser.

Ela preparou o almoço e comeram sem se falar. Tinha se queimado levemente no braço e ele foi até a farmácia que ficava a três quarteirões para comprar picrato. Depois ficaram no portal e até eles chegou o fresco, e as vezes rude, vento do mar que se levanta às tardes em abril.

Ele a olhou. Viu seus tornozelos delicados e bem desenhados, seus joelhos lisos e os músculos delineados com suavidade. Ela estava deitada na espreguiçadeira relaxada e em seus lábios grossos havia una tentativa de sorriso.

— Como você se sente? — perguntou.

Ela abriu seus olhos e voltou a fechar diante da claridade. Suas pestanas eram largas e curvas.

— Muito bem. E você?

— Muito bem também. Mas me conte... já saiu tudo?

— Sim — disse ela.

— E já não incomoda?

— Em absoluto. Te juro que nunca me senti melhor.

— Me alegro.

— Por quê?

— Porque incomodaria me sentir tão bem se você não está bem.

— Mas eu me sinto bem.

— Me alegro.

— Verdade. Acredite, por favor.

— Acredito.

Ficaram em silencio e ela falou:

— Damos um passeio pelas pedras?

— Você quer?

— Sem duvida. Quando?

— Quando queiras.

— Não, diga você.

— Esta bem, dentro de uma hora.

Em una hora tinham chegado aos penhascos e ela perguntou observando na praia o desenho da espuma das ondas que se estendia até as cabanas:

— Que altura você acha que deve haver até lá em baixo?

— Uns cinquenta metros. Talvez setenta e cinco.

— Cem não?

— Não creio.

Ela se sentou na pedra, de perfil para o mar com suas pernas contrastando com o azul do mar e do céu.

— Você já me fotografou assim? — perguntou ela.

— Sim.

— Me prometas que nunca fotografara outra mulher assim neste lugar.

Ele se zangou.

— As coisas que passam pela tua cabeça! Estamos em lua de mel, não? Como posso pensar em outra mulher.

—Não digo agora. Mais tarde. Quando você tenha se cansado de mim, quando a gente tenha se divorciado.

Ele a levantou e a beijou nos lábios com força.

— Você é boba.

Ela se aconchegou em seu peito.

— Não nos divorciaremos nunca?

— Nunca.

— Você vai me querer para sempre?

— Sempre.

Se beijaram. Quase em seguida escutaram que alguém lhes chamava.

— É com você.

— Não sei quem possa ser.  

Viram um velho se aproximar por trás das ramas da folhagem.

— Ah. É o encarregado.

Ele os cumprimentou.

— Vocês partem amanhã?

— Sim, pela manhã bem cedo.

— Bem, então prefiro que paguem agora. Pode ser?

Ele olhou para ela.  

— Vai você com ele. Eu quero ficar aqui um pouquinho mais.

— Por que você não vem também?

— Não— disse ela— Quero ver o por do sol.

— Não quero interromper. Mas é que gostaria de ir a casa da minha filha para ver as lutas de boxe pela televisão. Você sabe, ela vive aqui perto.

— Vá com ele— disse ela.

— Está bem — disse ele e saiu andando atrás do velho.

— Você sabe onde está o dinheiro?

— Sei — respondeu ele, olhando para trás.

— Vem me buscar depressa, pode ser?  

— Está bem. Mas quando escurecer, descemos. Lembre-se.

— Está bem — disse — Me de um beijo antes de ir.

Ela o beijou com força e com dor.  

Ele a sentiu  tensa, afiada por dentro. Antes de se perder atrás das folhagens ele ainda acenou. Pelo ar chegou sua voz que dizia eu te quero. Ou talvez perguntava, você me quer?

Ficou olhando para o sol se pondo. Era um circulo cheio de fogo que o horizonte convertia em três quartos de circulo, em meio circulo e em nada, ainda que permanecesse um leve borbulhar vermelho por onde o sol desapareceu. Em seguida o céu foi ficando violeta, roxo e o negro da noite apagou os restos do crepúsculo.  

— Teremos lua esta noite? — se perguntou ela falando alto.

Olhou para baixo, viu um buraco negro e logo abaixo, a crosta de espuma branca ainda visível. Se moveu para a borda onde estava sentada e deixou os pés pendurados no vazio. Depois apoiou as mãos na pedra, suspendeu o corpo e sem o menor ruído se deixou cair no poço negro e profundo que era a praia exactamente oitenta e dois metros abaixo.  

Guillermo Cabrera Infante

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

LUIGI BOCCHERINI - «III. Minuetto»

Poet'anarquista

Luigi Boccherini
Compositor e Violoncelista Italiano

OUTROS CONTOS

«Camarada, eu te Ensinarei o Furor!», por André Gide.

«Camarada, eu te Ensinarei o Furor!»
Frutos da Terra/ Hans Happ

737- CAMARADA, EU TE ENSINAREI O FUROR!»

[Excerto de 'Os Frutos da Terra']

"Tu não me dominarás, tristeza! Ouço um canto suave através das lamentações, dos soluços. Um canto cujas palavras invento a meu talante. Um canto que me fortalece o coração quando o sinto prestes a ceder. Um canto que encho com teu nome, Camarada, e com um apelo aos que com ânimo responderão:
            
Erguei-vos frontes inclinadas! Olhares voltados para os túmulos, erguei-vos. Não para o céu vazio, mas para o horizonte da terra. Para onde te conduzirão teus passos, Camarada, regenerado, valente, disposto a sair desses lugares empestados pelos mortos; deixa tua Esperança transportar-te para a frente. Não permitas que nenhum amor ao passado te retenha... Lança-te para o Futuro! A poesia, cessa de transferi-la para o sonho; saibas vê-la na realidade. E se não estiver nela ainda, coloca-a lá!

As sedes não estancadas, os apetites insatisfeitos, os frémitos, as esperas vãs, as fatigas, as insónias... que tudo te seja poupado, ah, como o desejaria, Camarada! Inclinar para tuas mãos, teus lábios, os galhos de todas as árvores frutíferas. Fazer ruírem os muros, abaterem-se diante de ti as barreiras sobre as quais o açambarcamento ciumento acaba de escrever: "Entrada proibida. Propriedade particular". Obter enfim que te caiba a recompensa integral de teu trabalho. Erguer tua fronte e permitir enfim que teu coração se encha não mais de ódio e inveja, mas sim de Amor! Sim, permitir enfim que todas as carícias do ar, os raios do Sol e todos os convites à felicidade te atinjam.
            
Ó tu para quem escrevo – a quem chamava outrora por um nome que hoje se me afigura demasiado dorido, a quem eu agora chamo Camarada – não admitas mais nada de dorido no teu coração.
            
Saibas obter de ti o que torne a queixa inútil. Não implores mais de ourem o que podes obter.
            
Eu vivi; é tua vez agora. É em ti que doravante se prolongará minha juventude. Dou-te procuração. 

Se sentir que sucedes a mim, aceitarei melhor a morte. Transfiro-te minha Esperança.
            
Sentir-te corajoso permite-me deixar a vida sem lamentos. Toma minha alegria. Faze tua felicidade do aumento da de todos. Trabalha e luta e nenhum mal aceites que possas mudar. Cumpre que saibas repetir sem cessar: depende de mim! Ninguém se conforma sem covardia com todo o mal que depende dos homens. Deixa de acreditar, se jamais o acreditaste, que a sabedoria está na resignação; ou deixa de pretender à sabedoria.
            
Camarada, não aceites a vida tal qual a propõem os homens. Não cesses de te persuadir que ela poderia ser mais bela, a vida; a tua e a dos outros homens; não uma outra, futura, que nos consolasse desta e nos ajudasse a aceitar sua miséria. Não aceites! Quando começares a compreender que o responsável por todos os males da vida não é Deus, que os responsáveis são os homens, não te conformarás mais com esses males.
           
            Não sacrifiques aos ídolos...."

André Gide