terça-feira, 31 de outubro de 2017

SÁTIRA...

Preliminares
Sátira...

«PRELIMINARES»

 Jogo de preliminares
Da dupla d'artistas…
Não preciso ver pistas,
Querem mudar d’ares!...
Mas só nos dias ímpares
Se prestam à mangação,
Nos pares nunca estão
Totalmente receptivos…
Entre mortos e vivos,
Qual laranja cai ao chão?

POETA

OUTROS CONTOS

«Quando Eu Morrer», conto poético por Carlos Biga.

Décimas com motes do poema “Fim” de Mário de Sá-Carneiro, composto por duas quadras de rima interpolada ou intercalada. Para a construção das décimas, troca do terceiro e quarto versos de ambas as quadras para rima cruzada ou alternada.

O poema tal qual escreveu o poeta, diz assim:

FIM

Quando eu morrer batam em latas,
Rompam aos saltos e aos pinotes,
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas!

Que o meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andaluza...
A um morto nada se recusa,
Eu quero por força ir de burro. 

Mário de Sá-Carneiro
«Quando Eu Morrer»
O Circo/ Marc Chagall

Motes de rima cruzada ou alternada para construção das décimas:

Quando eu morrer batam em latas,
Rompam aos saltos e aos pinotes…
Chamem palhaços e acrobatas,  
Façam estalar no ar chicotes! 

Que o meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andaluza...
Eu quero por força ir de burro, 
A um morto nada se recusa.

«Quando Eu Morrer»
Fernando Pessoa encontra D. Sebastião 
“em caixão sobre um burro ajaezado à andaluza”
Júlio Pomar

1118- «QUANDO EU MORRER»

Vai o enterro a passar,
Quem será que morreu?...
Sei que não fui eu,
Ainda estou a respirar.
Ouve-se gente chorar…
Parecem lágrimas sensatas,
Também alguns vira-latas
Uivando no cortejo…
Digo meu último desejo:
Quando eu morrer batam em latas!

Manda embora a tristeza
Quando chegar minha vez,
Creio que às duas por três
A alegria vem de certeza.
Não preciso de mais fineza
Bastam-me estes motes,
Para que a dor suportes
O que peço, deves fazer:
Quando eu morrer
Rompam aos saltos e aos pinotes!

Se o Circo vier à cidade
No dia da minha morte,
Considero-me com sorte
Haverá festa de verdade!
Quero cá deixar saudade
E esquecer as zaragatas,
Se tu ainda bem me tratas
Não permitas o desterro…
No dia do meu enterro
Chamem palhaços e acrobatas!

Antes de baixar à cova
Ouve bem o que eu digo,
Não te esqueças amigo
Que a amizade se prova.
Atende esta prece nova,
Por favor, não a boicotes,
Tu não me conotes
Com um morto qualquer…
Então, se Deus quiser,
Façam estalar no ar chicotes!

Leva-me ao cemitério
De forma estapafúrdia,
Que haja muita balburdia!...
Não leves a morte a sério.
Fico neste eremitério
Onde não soa sussurro,
Se me cheirar a esturro
Depressa me vou embora…
Peço a todos nessa hora
Que o meu caixão vá sobre um burro.

O animal bem composto
Em traje de cerimónia,
Sem qualquer parcimónia
Não me causes desgosto.
Quero tudo a meu gosto
Quando à terra me conduza,
Que mal ninguém deduza
Por eu ter esta vontade…
Ir de burro, de verdade,
Ajaezado à andaluza!

Pra que tudo aconteça
E se cumpra o funeral,
Tratem bem do animal
Das patas até à cabeça.
Ninguém pois impeça
Ou me julgue casmurro,
Se o burro der um zurro
Tanto melhor pra mim…
Quando chegar o meu fim
Eu quero por força ir de burro!

Tenho fé não ser esquecido
Quando me levarem morto,
De burro chegar a bom porto
Ver o meu desejo cumprido.
Entende pois este pedido
Sem haver qualquer escusa,
Assim o morto não te acusa
Do que disseste ser capaz…
Se quiseres ficar em paz,
A um morto nada se recusa!

Carlos Biga

segunda-feira, 30 de outubro de 2017

OUTROS CONTOS

«Quando Eu Morrer», conto poético por Manel d' Sousa.

«Quando Eu Morrer»
O Circo/ Marc Chagall

Quadra da Mário Sá-Carneiro do poema “Fim” composto de 2 quadras de rima interpolada ou intercalada. Para a construção das décimas, alterei a primeira quadra para rima cruzada ou alternada.

A quadra tal qual escreveu o poeta, diz assim:

Quando eu morrer batam em latas,
Rompam aos saltos e aos pinotes,
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas!

Quadra com a rima cruzada ou alternada para construção das décimas:

1117- «QUANDO EU MORRER»

Quando eu morrer batam em latas,
Rompam aos saltos e aos pinotes…
Chamem palhaços e acrobatas, 
Façam estalar no ar chicotes!

Vai o enterro a passar…
Quem será que morreu?
Sei que não fui eu,
Ainda estou a respirar.
Ouve-se gente chorar…
Parecem lágrimas sensatas,
Também alguns vira-latas
Uivando no cortejo…
Digo meu último desejo:
Quando eu morrer batam em latas!

Manda embora a tristeza
Quando chegar minha vez…
Creio que às duas por três,
A alegria vem de certeza.
Não preciso de mais fineza…
Bastam-me estes motes,
Para que a dor suportes
O que peço, deves fazer…
Quando eu morrer
Rompam aos saltos e aos pinotes!

Se o Circo vier à cidade
No dia da minha morte…
Considero-me com sorte,
Haverá festa de verdade!
Quero cá deixar saudade
E esquecer as zaragatas,
Se tu ainda bem me tratas
Não permitas o desterro…
No dia do meu enterro
Chamem palhaços e acrobatas!

Antes de baixar à cova
Ouve bem o que eu digo,
Não te esqueças amigo
Que a amizade se prova.
Atende esta prece nova…
Por favor, não a boicotes,
Tu não me conotes
Com um morto qualquer…
Então, se Deus quiser,
Façam estalar no ar chicotes!

Manel d’ Sousa

SÁTIRA...

As Consequências
Sátira...

«AS CONSEQUÊNCIAS»

Andas a assediar a direita
E esqueces-te de mim…
Não gosto disso assim,
A esquerda não te rejeita.
No que a nós respeita…
Ponderadas as diligências,
Digo que as consequências
São um caso muito sério…
O castigo pró adultério
É a morte sem reticências.

POETA

domingo, 29 de outubro de 2017

OUTROS CONTOS

«Psicologia de Um Falhado», por Manel d' Sousa.

«Psicologia de Um Falhado»
Pintura de Paolo Troilo

1116- «PSICOLOGIA DE UM FALHADO»

Tu, filho de um átomo que te pariu,
Coisa insignificante, mas complexa…
Trazes a alma interrogando perplexa
Se alguma vez esse momento existiu.

Foi nas trevas obscuras da malvadez
Que surgiste, em negra noite escura…
Filho bastardo da pobre escravatura,
Corre-te na veia imunda a insensatez.

Germe da ignorância, só tu acreditas
Nas palavras desonestas que vomitas…
Mentes a ti mesmo compulsivamente!

Tens a influência dos vermes parasitas
Que se alimentam da tua carne doente,
E crês que a mentira dura eternamente.

Manel d’ Sousa

sábado, 28 de outubro de 2017

SÁTIRA...

A Novela Casillas
Sátira...

«A NOVELA CASILLAS»

Me voy del O’Porto…
O será Puerto?
Hala Madrid!?...
Qué bien se gana aquí,
Todavía no estoy muerto!

ATEOP

sexta-feira, 27 de outubro de 2017

OUTROS CONTOS

«A Morte Perderá o seu Domínio», conto poético por Dylan Thomas.

«A Morte Perderá o seu Domínio»
Poema de Dylan Thomas

1115- «A MORTE PERDERÁ O SEU DOMÍNIO»

E a morte perderá o seu domínio.
Nus, os homens mortos irão confundir-se
com o homem no vento e na lua do poente;
quando, descarnados e limpos, desaparecerem os ossos
hão-de nos seus braços e pés brilhar as estrelas.
Mesmo que se tornem loucos permanecerá o espírito lúcido;
mesmo que sejam submersos pelo mar, eles hão-de ressurgir;
mesmo que os amantes se percam, continuará o amor;
e a morte perderá o seu domínio.

E a morte perderá o seu domínio.
Aqueles que há muito repousam sobre as ondas do mar
não morrerão com a chegada do vento;
ainda que, na roda da tortura, comecem
os tendões a ceder, jamais se partirão;
entre as suas mãos será destruída a fé
e, como unicórnios, virá atravessá-los o sofrimento;
embora sejam divididos eles manterão a sua unidade;
e a morte perderá o seu domínio.

E a morte perderá o seu domínio.
Não hão-de gritar mais as gaivotas aos seus ouvidos
nem as vagas romper tumultuosamente nas praias;
onde se abriu uma flor não poderá nenhuma flor
erguer a sua corda em direcção à força das chuvas;
ainda que estejam mortas e loucas, hão-de descer
como pregos as suas cabeças pelas margaridas;
é no sol que irrompem até que o sol se extinga,
e a morte perderá o seu domínio.

Dylan Thomas

SÁTIRA...

Caso Sério
Sátira...

«CASO SÉRIO»

- Separação quer-se segura…
Se pretendem o divórcio,
Pensem bem no negócio
Antes de fazer má figura…
O mal, nem sempre dura!
- Acabou de vez o mistério!...
Deu-se entre nós adultério,
Não sei se chorar, se rir…
- Melhor continuar a fingir
Que o caso é muito sério!!

POETA

quinta-feira, 26 de outubro de 2017

OUTROS CONTOS

«Afundanço», conto poético por Manel d' Sousa.

«Afundanço»
Conto Poético

Mote

A vida é filha da puta,
A puta, é filha da vida…
Nunca vi tanto filho da puta,
Na puta da minha vida!

Bocage

1114- «AFUNDANÇO»

Até um morto desperta
Ao desabafo de Bocage…
Pode parecer ultraje,
Eu vejo como alerta!
Mas que bem acerta
Esta quadra diminuta,
Uma verdade absoluta
Sem muito escrevinhar…
Como se pode constatar,
“A vida é filha da puta!”

Versar em trocadilho
Soa-me na perfeição,
Gosto de um palavrão
Quando acende rastilho.
Convosco hoje partilho
Esta ementa servida,
A palavra bem metida
Não faz mal a ninguém…
Por ouvir dizer alguém:
“A puta, é filha da vida.”

Notícia de última hora…
Nada que eu aproveite;
Verdade é como azeite,
Sabe-se sem demora.
A mentira tenta por fora
Disfarçar sua conduta,
Aparece de forma astuta
Essa maldita gangrena…
Numa nação tão pequena,
“Nunca vi tanto filho da puta.”

Ouço com lamento
O queixume do povo...
Não há nada de novo,
Avisos, mais d’um cento!
Não sei como aguento
Esta gente distraída,
A mentira repetida
Eu lhe perdi o conto…
Cheguei a este ponto,
“Na puta da minha vida!”

Manel d’ Sousa

terça-feira, 24 de outubro de 2017

SÁTIRA...

Rambo Lopes
Sátira...

«RAMBO LOPES»

O Rambo Flopes
De menina nos braços…
Vai haver estilhaços,
Ninguém segura Lopes!
Com uns retoques
Na incubadora,
Surge a metralhadora
E começa a disparar…
Acaba por acertar
Na sua progenitora.

POETA

SÁTIRA...

O Pior dos Piores
Sátira...

«O PIOR DOS PIORES»

O crime compensa…
Bato na minha mulher
As vezes que eu quiser,
A ninguém faz diferença!
Concordo com a sentença
Do meritíssimo Juiz,
Faço o que ele me diz
Invocando a Sagrada Escritura…
Acabo com a cavalgadura,
Sou agressor de raiz!

POETA

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

OUTROS CONTOS

«O Amor», conto poético por Manel d' Sousa.

«O Amor»
Guarda Chuva/ Alexander Yanin

1113- «O AMOR»

(Quadra de autor português desconhecido)

O amor quando se encontra
Causa penas e dá gosto:
Sobressalta o coração,
Sobem as cores ao rosto.

Às vezes anda perdido,
Ninguém dele sabe…
Antes que o dia acabe,
Procuro se está escondido.
Este mal padecido
Facilmente se demonstra,
Gosta de ficar no contra
Para assim me torturar…
Surge em qualquer lugar
O amor quando se encontra.

Sofre o comum mortal
Esta doença sem cura,
O tempo que ela dura
Chega mesmo a ser fatal.
Se as coisas correm mal
Pode dar-se o desgosto,
Depois de fogo posto
Não pára mais d’ arder…
Ouço muita voz dizer:
Causa penas e dá gosto!

A cabeça em desalinho
Não consegue fingir…
O amor parece vir,
Mas dou comigo sozinho.
Sigo noutro caminho
Pode ser a solução,
Mesmo em contra-mão
Ora se levanta, ora cai…
Um estrondoso ai
Sobressalta o coração!

 Finalmente aparece
Quando menos espero…
Para vos ser sincero,
A vontade desaparece.
O tempo quente arrefece
Quando chega o sol-posto,
Não estou mais disposto
A cair nessa esparrela…
Mas quando a vejo a ela,
Sobem as cores ao rosto!

Manel d’ Sousa

quinta-feira, 19 de outubro de 2017

SÁTIRA...

Queda Livre
Sátira...

«QUEDA LIVRE»

Sem pedalada
Prós tubarões…
É só desilusões,
Não ganhamos nada.
A porta está fechada
Aos que têm menos,
Somos os somenos
Europeus endinheirados…
Grandes bem calçados,
Comem os pequenos!

ATEOP

OUTROS CONTOS

«O Espelho de Lida Sal», por Miguel Angel Asturias.

«O Espelho de Lida Sal»
O Sentido da Visão/ Juan Dò

1112- «O ESPELHO DE LIDA SAL»

I

Quando o inverno declina os rios vão ficando sem fôlego. Ao brando deslizar das correntes sucede o silêncio seco, o silêncio da sede, o silêncio das secas, o silêncio das lâminas de água imobilizada entre os bancos de areia, o silêncio das árvores que o calor e o vento tostado do verão quente fazem suar folhas, o silêncio dos campos onde os rústicos se amodorram nus e sem sono. Nem moscas. Atmosfera irrespirável. O sol cortante, a terra como um forno de olaria aceso. Os gados extenuados espantam o calor com o rabo enquanto buscam a sombra dos abacateiros. Através da erva seca e escassa, coelhos sedentos, serpentes surdas a procura de água e aves que mal erguem o voo.

Inútil dizer quanto os olhos se matam diante de tanta terra rasa. Para as quatro bandas da distância a vista perde-se no horizonte. Só olhando muito bem se divisam pequenos grupos de árvores, campos de terras revolvidas e caminhos desses que se formam de tanto e tanto trilhados de passos e que vão por ali adiante, até ranchos onde o homem encontra o contento do lume, a mulher, os filhos, currais onde a vida procura o alimento, como galinha insaciável, o prazer dos dias.

Por uma dessas desesperadas horas de calor e sufocação, D. Petronila voltou para casa. D. Petronila Ângela, a quem alguns nomeavam assim, ao passo que outros lhe chamavam Petrángela, mulher de D. Filipe Alvizures, mãe dum rapaz e grávida de há meses. D. Petronila Ângela finge que não faz nada, para que seu marido não a repreenda por fazer coisas no estado em que está, e com esse ar de nada fazer mantém a casa em ordem, tudo como deve ser: roupa limpa nas camas, asseio nos quartos, pátios e corredores, olho na cozinha, mãos na costura e ao forno, idas e vindas aqui e ali: ao galinheiro, à quadra onde se mói o milho ou o cacau, a arrecadação das coisas velhas, ao curral, à horta, à rouparia, à despensa, à toda a parte.

Seu senhor marido ralha quando a vê ocupada; quer que esteja sentada ou deitada sempre sem mexer uma palha; mas isso é mau, pois os filhos saem preguiçosos. Seu senhor marido, Filipe Alvizures, é um homem interiormente imenso — o que o torna lento de movimentos —, e por fora sempre metido em espaçosas roupas de cetim. Ignora a aritmética, mas sabe somar rapidamente servindo-se de grãos de milho, e ainda sabe menos de letras, mas e inútil saber ler, como bem sabem todos esses que nunca lêem. De resto, se D. Pe­tronila diz que ele é imenso por dentro é porque lhe custa juntar duas palavras. Dir-se-ia que as vai buscar uma a um ponto a outro muito mais além. Dentro e fora de si, o senhor Filipe tem onde se mover muito à sua vontade, sem ter que fazer nada de afogadilho, reflectindo com toda calma. E quando chegue a sua hora — «Queira Deus que daqui a muitos e bons!», diz lá consigo Petrángela—, se a morte lhe não colhe o passo não poderá levá-lo.

 A força do sol reparte-se pela casa toda. Um sol com fome, que sabe que são horas de almoço. Mas sob os tectos de telha de barro está mais fresco. Contra seu costume, Filipinho, o filho mais velho, chegou primeiro que seu pai, saltou a cavalo por cima do portão de trancas —só duas estavam atravessadas: as mais altas, as mais perigosas — e, entre o alvoroço das galinhas, o latir dos cães e o esvoaçar dos pombos, depois dum ir e vir a velocidade de relâmpago, imobilizou o cavalo, cujas ferraduras arrancavam faíscas à calçada do pátio, e soltou uma gargalhada.

— Que coisa sem graça nenhuma, Filipinho... já sabia que eras tu!

À mãe não agradavam nada semelhantes Áfricas. Os olhos do cavalo brilhavam, espumava-lhe a boca. Filipinho desmontou e foi abraçar e acarinhar D. Petronila.

Daí a pouco chegava o pai, montado no Samaritano, um macho negro assim chamado devido a sua mansidão. Arreou-se da montada com mil e um vagares, para afastar as trancas do portal que Filipinho vencera de salto, pô-las de novo e entrou sem fazer bulha que não a do toque-toque dos cascos do Samaritano no empedrado fronteiro ao apeadeiro.

Almoçaram de boca calada, vendo-se como se não se vissem. O senhor Filipe via sua mulher, esta seu filho, e o filho seus pais, que devoravam tortilhas rasgavam a carne duma perna de frango com os dentes afiados, bebiam água a grandes sorvos, para que lhes passasse da garganta a massa duma saborosa papa de mandioca vermelha.

– Deus lhe pague, senhor pai...

O almoço findou, como sempre, sem muitas palavras, entre o silêncio de todos e as olhadelas de Petrángela à cara e ao movimento das mãos de seu marido, para saber quando ele terminara um prato e pedir a criada que trouxesse o seguinte.

Filipinho, depois de dar graças a seu pai, aproximou-se da mãe, os braços cruzados sobre o peito, a cabeça baixa, e repetiu:

— Deus lhe pague, senhora mãe...

E tudo terminou na forma do costume: D. Filipe na sua rede, a mulher numa cadeira de balanço, Filipinho escarranchado num banco, como se continuasse a cavalo. Cada qual com seus pensamentos. O senhor Filipe fuma. Filipinho não se atreve a fumar diante de seu pai, mas vão-se-lhe os olhos atrás do fumo, enquanto Petrángela se balança apoiando-se agora e logo no chão com um e outro dos seus pés pequeninos.

II

Lida Sal, uma mulata mais torneada que um pião, era toda ouvidos, não para o que estava fazendo, mas para a conversa do cego Benito Jojón com um tal Falutério, mordomo da festa de Nossa Senhora do Carmo. O cego e Falu­tério tinham acabado de comer e estavam para abalar. Isto ajudava a que Lida Sal pudesse escutar o que diziam. Os lavadouros de pratos e outros utensílios sujos ficavam quase ao pé da porta que a casa de pasto tinha sobre a rua.

– Os Perfectantes — dizia o cego, ensaiando gestos como se arrancasse das rugas do rosto incomodas teias de aranha— são os mágicos... Então, como explicar que não se encontrem candidatas, tanto mais que agora os homens andam tão ariscos? Sim, amigo Falutério, há poucas bodas e muitos baptismos, o que não está bem. Muito solteirão com cria, muito solteirão com cria...

– Que quer você? Desculpe-me a franqueza... mas se peço a sua opinião é para estar seguro, quando falar com os outros membros da Confraria da Santíssima Virgem. A festa não tarda, e se não há mulheres que se encarreguem das fardas dos Perfectantes então vai ser como o ano passado: sem mágicos...

– Falar não custa, Falutério, fazer é que dá trabalho. Se me fazem a caridade de deixar que eu me ocupe de vestir os Perfectantes, bem pode ser que eu encontre candidatas. Há por ai muita mulher casadoira, Falutério, e mulher em idade de arranjar marido.

– É difícil, Benito, é difícil. Ideias de outros tempos. Hoje em dia, com o que se sabe, quem vai lá acreditar em semelhantes bobagens?! Da minha parte, e da parte todos os da comissão dos festejos da padroeira, creio não haver nenhum inconveniente em lhe dar, já que é necessitado e não pode trabalhar por ser cego, o encargo de enfeitar os Perfectantes.

– Sim, sim, deixem-me fazê-lo e assim não se acabarão as coisas de outros tempos.

– Vou-me embora, deixo-o agora. E tenha como certo o oferecido.

– Tomo-lhe a palavra, sim senhor, tomo-lhe a palavra... E cá me vou também, a tratar disso, com a ajuda de Deus

A mão fria e ensaboada de Lida Sal abandonou o prato que estava lavando e pousou no braço do cego, na manga do seu casaco, que de tão remendado era todo ele um remendo. Benito Jojón cedeu ao gesto afectuoso, deteve o passo, pois se dirigia para sua casa, ou seja para a praça do povoado, e perguntou quem o retinha.

– Sou eu, Lida Sal, a rapariga que lava os pratos aqui na casa de pasto.

– Sim, filha. Mas que queres de mim ?

– Que me dê um conselho novo...

– Ah!, ah! És então das que acreditam que ha conselhos velhos...

– E é mesmo por isso que o quero novo. Um conselho que invente só para mim, que não tenha dado a nenhuma outra, que nem sequer o tenha pensado. Novo...

– Vejamos, vejamos se posso...

– Trata-se, como vossemecê já sabe...

– Não, não sei nada...

– É que eu estou. como devo dizer ?, que eu estou,.. um bocado embeiçada por um homem, e ele nem sequer olha para mim...

– É solteiro?

– Sim, solteiro, bem jeitoso, rico... —suspirou Lida Sal. — Mas como é que vai reparar em mim, que apenas lavo louça, se ele é uma grande coisa?...

– Não digas mais nada. Sei o que queres, mas como me disseste que não passas duma criada que lava louça, não vejo como te arranjarás para pagar a esmola duma das fardas dos Perfectantes. São coisas muito caras...

– Por ai não se aflija. Tenho algum dinheirinho, se não é assim muitíssimo o que se tem que dar de esmola. O que eu quero saber e se vossemecê se compromete a dar-me uma dessas vestes mágicas e a ir ter com aquele ingrato, para que ele a use no dia da padroeira. Que ele se vista de Perfectante com o traje que eu lhe mande é o principal. O resto corre por conta da magia.

– Mas, filha, s além de não ver não sei onde encontrar esse tal senhor a quem tu queres e por quem te derretes? Quanto a este teu caso, sou duas vezes cego...

Lida Sal inclinou-se até uma das grandes orelhas rugosas. peludas e emporcalhadas do cego e disse-lhe:

– Em casa dos Alvizures.

– Ah!... Ah!...

– Filipinho Alvizures...

– Entendo, entendo... queres fazer um bom casamento...

– Não, por Deus! Lembre-se de que é cego e não pode ver claro, se o que vê no meu amor e apenas o interesse!

– Então, se não é por interesse é porque o corpo te pede...

– Não seja bruto! Me pede a alma, porque se me pedisse o corpo eu suaria quando o vejo, mas não suo, pelo contrario, fico como se não fosse eu, a suspirar,

– Esta bem! Quantos anos tens?

– Vou fazer dezenove, mas não sei bem, talvez vinte. Eh!, tire a mão dai... Cego, e mesmo assim, a botar a pata!

– É para me certificar, filhinha, para me certificar de como estas de carnes...

– Vai a casa dos Alvizures?... Isso é o que me interessa!

– Hoje mesmo... Mas que é isto que me enfiaste no dedo? É um anel?

– Um anel de ouro. Vale o que pesa...

– Que bom... que bom...

– Dou adiantado pelo do que tiver de pagar de esmola pela farda de Perfectante.

 – És pratica, menina. Mas olha que não posso, ir a casa dos Alvizures sem saber sequer como te chamas...

– Lida Sal...

– Bonito nome, mas não é cristão. Vou lá onde me manda o teu coração. Experimentaremos a magia. Como a estas horas as carroças do senhor Filipe estão no mercado carregando e descarregando lenha, meto-me numa delas, como já tenho feito outras vezes, e lá me terão de visita a em busca do Filipinho

III

O cego quis beijar a mão a D. Petronila Ângela, mas esta retirou a tempo e o estalido dos lábios perdeu-se no vazio. Não era de beijoquices, pela mesma razão que detestava os cães.

– A boca se fez para comer, para falar, para rezar, Jojón, e não para lamber as pessoas. Veio à procura dos homens? Estão por ai, estendidos nas redes. Me dê sua mão, que eu o levo, cuidado para não tropeçar. Mas que é que o traz tão apressado? Felizmente, bem sabe, as carroças estão à sua disposição e esta casa sempre aberta para você.

– Sim, Deus lhe pague, minha senhora, e se vem sem antes avisar é porque o tempo corre e temos de nos adiantar para preparar bem a festa de Nossa Senhora.

– Tem razão, já estamos quase em vésperas do grande dia... Mas quem diria que a outra festa foi já há um ano.

– E agora estão fazendo preparativos que deixam a perder de vista os do ano passado. A Senhora vai ver...

O senhor Filipe numa rede e Filipinho noutra, embalavam-se enquanto o Sol ia declinando. O senhor Filipe fumava um tabaco que cheirava a figos, e Filipinho, por respeito, resignava-se a ver formarem-se e desfazerem-se as nuvens do fumo perfumado no ar tépido.

Petrángela aproximou-se deles conduzido Jojón pela mão e, já quase ao pé das redes, anunciou-lhes que tinham visita.

– Não é uma visita —corrigiu o cego—, e um maçador...

– Os amigos nunca maçam — adiantou-se a dizer o senhor Filipe enquanto botava fora da rede uma das pernas, curtas, para se sentar.

– Veio com os carreiros, Jojón? — perguntou Filipinho.

– Sim, menino, sim. Mas agora, se arranjei modo de vir, como hei de ir e que não sei.

– Selo um cavalo e vou levá-lo — respondeu Filipinho, — Por isso não esteja em cuidados...

– Senão, fica connosco...

– Ai, minha senhora, se eu fosse uma simples coisa ficava, mas tenho boca, já sabe que uma boca a mais é sempre um incómodo!

O senhor Filipe entretanto apertou a mão do cego, tão cheia de sombras duvidosas, e conduziu-o a uma cadeira que Filipinho trouxera.

– Vou lhe por um charuto na boca — disse o senhor Filipe.

– Não me peça licença, senhor; para dar um gosto não se pede licença...

E já fumando a plenos pulmões Jojón continuou:

– Dizia-lhes eu que isto não era uma visita, mas uma maçada. Assim mesmo, pura maçada. Venho com o encargo de saber se Filipinho quer ser este ano o chefe dos Perfectantes.

– Isso é lá com ele— disse o senhor Filipe Alvizures, fazendo sinais a Petrángela que se aproximasse, e, chegando-se ela, prendeu-a pela cintura inabarcável só com um braço, para estarem juntos, atentos ao falar do cego.

– Isso traz agua no bico... — reagiu Filipinho, expelindo um jato de saliva que ficou a brilhar no chão.

Sempre que ficava nervoso cuspia assim.

– Não lhe ponho a faca aos peitos —aduziu Jojón. — Há tempo para pensar bem no caso e resolver sem precipitação, desde que não demore muitos dias, porque a festa esta à porta. E note, menino, que no caso de aceitar tem de experimentar o traje, a ver se lhe cai bem e para que se lhe cosam nas mangas os galões de Príncipe dos Perfectantes.

– Não me parece que ele tenha de estar com grandes pensamentos — decidiu a executiva Petrángela. — Filipinho e afilhado de Nossa Senhora do Carmo, e não vejo melhor maneira de lhe mostrar a sua devoção do que participar na sua santa festa.

– Isso sim... — articulou Filipe filho.

– Então —interveio o pai procurando as palavras—, não tem muito que pensar nem mais que falar. — E sempre sem encontrar como dizer as coisas: — Viu que não deu passos em vão, senhor Benito ? E se agora, como disseste, o vais levar a cavalo, na aldeia poderás experimentar os trajes, a ver qual te fica melhor, se são precisos alguns arranjos.

– Agora trataremos dos galões de Príncipe — disse Jojón. —Quanto ao traje, trago-o eu cá depois para que o prove, porque não o tenho ainda.

– Seja...— aceitou Filipinho. —Para não perdermos tempo vou ver se escolho um macho manso, antes que caia a noite.

– Espere ai, senhor apressado! —deteve-o a mãe.— Primeiro que tudo, Jojón tem de tomar o seu chocolatezinho...

– Sim, sim, mãe, já sei, mas enquanto ele toma o seu chocolate eu escolho o macho e aparelho-o. Faz-se tarde... — e foi saindo na direção dos currais. — Faz-se tarde e escurece, se bem que para um cego seja o mesmo andar de dia ou de noite... — continuou ele de si para consigo.

IV

A casa de pasto estava sem luz e silenciosa. À noite os clientes eram escassos. A grande animação era ao meio-dia. Havia pois espaço e desafogo mais que suficientes para que o cego, muito agarrado ao braço de Filipinho Alvizures, entrasse e fosse sentar-se a uma das mesas, enquanto um par de olhos fixava no moço as suas pupilas negras, cheias. duma luz de esperança.

– Tomam alguma coisa? — perguntou Lida Sal aproximando-se, enquanto passava um pano sobre a velha mesa de madeira, gasta dos anos e das intempéries.

– Duas cervejas — respondeu Filipinho — e, se há, dois pães com carne.

A mulata sentia momentaneamente que o chão, única coisa estável sob os seus pés, a não segurava. A custo dissimulava a sufocação. Cada vez que lhe era possível roçava os braços nus e os seios firmes, trementes sob a blusa, pelos ombros de Filipe. Pretextos para se aproximar não lhe faltavam: os copos, a espuma que extravasava do copo do cego, os pratos com os pães com carne.

E vossemecê — perguntou Alvizures ao cego —, onde dorme? Tenho de ir embora e queria deixá-lo lá...

– Por aqui. Aqui mesmo na casa de pasto dão-me as vezes pousada, não é, Lida Sal?

– Sim, sim... — foi tudo o que esta pôde dizer, e mais custoso lhe foi ainda articular o preço das cervejas e dos sanduiches.

No oco da sua mão em concha, em que sentia o seu coração, apertou as moedinhas quentes que lhe entregou Alvizures, quentes de terem estado na algibeira dele, em contacto com a sua pessoa, e sem poder resistir mais levou-as aos lábios e beijou-as. Depois de as beijar passou-as pelo rosto e deixou-as cair por entre os seios.

Pela escuridão sem olhos, uma dessas escuridões das noites que começam e acabam negras, cor de ardósia, trotava o cavalo de Filipinho Alvizures, que se afastava seguido do macho, mais molengo no passo, em que viera montado o cego.

Ah!, como era difícil falar em meio de tantas coisas tão caladas!

– Quieto, ó cego —murmurou Lida Sal, de maneira nenhuma zangada, tal a festa que lhe ia na alma. — Aí não se mexe...

– A mão quer apertar-te, cabeça oca, para que sintas o anel que hoje me deste, aqui no meu dedo, já como coisa minha, que bastante trabalho me custou a ganhá-lo: trabalho e manhã. Amanhã terás cá a farda de Perfectante que o Filipinho usará na festa.

– E que vou eu fazer?...

– Tu, filha, tens de dormir com ela vestida bastantes noites, para que a deixes impregnada da tua magia. Durante o sono tornamo-nos mágicos. Assim, logo que ele a vista, para tomar parte na festa, há-de sentir o encantamento e procurar-te, já não poderá viver sem te ver.

Lida Sal sentiu-se vacilar. A cabeça andava-lhe a roda. Com uma mão firmou-se as costas duma cadeira, com a outra apoiou-se a mesa, e um soluço teimoso de soltar-se chegou-lhe aos lábios.

– Choras?

– Não! Não!... Sim! Sim!

– Choras ou não choras?

– Sim, de felicidade...

– Mas, és mesmo muito feliz?...

– Quieto, ó cego, quieto!

A teta quente da mulata saltou de sob a blusa ao tactear do velho, enquanto ela sentia que as moedas com que lhe pagara Filipinho Alvizures escorregavam dos seios para o ventre, tal como se o seu coração estivesse já a soltar pedaços de metal fundido de que seriam feitas as moedas com que pagar a Jojón o restante da esmola da farda mágica.

V

Não havia fantasia mais vistosa que o do Perfectante. Calção de guarda suíço, couraça de arcanjo, jaqueta toureira. Botas, galões, franjas, tudo dourado, abotoaduras e cordões de ouro, cores vivas e furta-cores, lantejoulas, avelórios, penduricalhos de cristal com fulgores de pedras preciosas. Os Perfectantes brilhavam como sois entre a mascarada que acompanhava a Senhora do Carmo, durante a procissão que percorria todas as ruas da povoação, as principais e as humildes, pois ninguém admitiria que a Grande Senhora não passasse à sua porta.

O senhor Filipe moveu a cabeça dum lado ao outro. Pensando bem, não lhe agradava por aí além que seu filho vestisse aqueles ouropéis, porém como opor-se teria sido ferir os sentimentos religiosos de Petrángela, mais espevitados agora que estava grávida, dissimulou o desagrado com uma piada que a consorte achou de mau gosto.

– Tao embeiçado estava eu pela tua senhora mãe quando nos casamos, Filipinho, que diziam por ai que ela tinha dormido sete noites seguidas com o traje o fato que eu sai de Perfectante, haverá isso uns vinte e sete, trinta anos talvez...

- Teu pai nunca saiu de Perfectante, filho, não o acredites!... -contradisse-o ela, temerosa e contristada.

– Pois , se é assim, não te serviu de nada dormires com  o traje...

Alvizures pôs-se a rir, ele que era homem de poucos risos, não porque não gostasse de rir, mas porque desde que e casou dizia: “O riso deve ficar à porta da igreja, onde um homem se casa, onde começa o seu calvário..”

– Essa das artes de magia para. que te casasses comigo é pura invenção tua... Se saíste de Perfectante foi por causa de qualquer outra...

– Outra?... Nem em vinte léguas de roda... – e riu, riu muito bem disposto, convidou Filipinho a rir também: -" Ria, filho, ria, que ainda és solteiro. O riso é um privilégio dos solteiros. Quando te casares, quando uma rapariga dormir com a farda de Perfectante que te caiba usar na festa, adeus riso para sempre! Nós, os casados, não rimos, fazemos que rimos, o que não é o mesmo... O riso é atributo dos solteiros... dos solteiros novos, porque os  solteirões mais velhos, também não riem, arreganham os dentes...

– Teu pai confunde tudo, filho... -reagiu Petrángela. – O riso é dos novos, sejam casados ou solteiros, e não dos velhos. Mas ele está velho, que queres?, a velhice entrou com ele...

Petrángela não pregou olho nessa noite. Assomavam-lhe à consciência aquelas noites em que na verdade dormiu com traje de Perfectante que o senhor Filipe Alvizures vestiu na festa de trinta anos atrás. Tivera que contradizê-lo diante do filho, porque há segredos que nem aos filhos se revelam. Não segredos: intimidades, pequenas intimidades. Não amanhecia. Sentiu frio. Aconchegou os pés. Fechou as pálpebras. Impossível tornar a adormecer. O sono andava ausente dos seus olhos, temia que àquela hora, em vésperas da festa de Nossa Senhora do Carmo, alguma moça estivesse a dormir com o traje de Perfectante destinado a Filipinho, para, o impregnar do seu suor mágico e de tal arte o seduzir.

– Ai, Senhora do Céu, Virgem Santíssima!... -balbuciava. - Perdoai os meus temores, as minhas superstições, sei que é uma tolice... que tudo isto são crendices, crendices sem fundamento... mas é meu filho... meu filho!

O certo seria evitar que ele saísse de Perfectante. Mas como evitá-lo, se tinha aceitado e ia figurar de príncipe dos Perfectantes? Seria desarranjar tudo, e depois não tinha sido ela, diante do marido, quem dispusera que Filipinho aceitasse?

Não amanhecia. Não cantavam os galos. Tinha a boca seca. A cabeleira, de tanto buscar o sono às voltas no travesseiro, emaranhara-se-lhe sobre o rosto.
– Que mulher, Deus meu!, que mulher estará a dormir com o traje de Perfectante que levaria o meu Filipinho?

VI

Lida Sal, mais pómulos que olhos de dia, mas de noite mais olhos que pómulos, divagava as pupilas dum lado ao outro do quarto em que dormia, e ao afirmar-se de que estava só, que só a grande escuridão era sua companheira, a porta bem trancada, a porta e um janelo que dava para a dispensa ainda mais em cegueira, desnudava-se toda, passava as mãos ásperas da esfrega ao longo do corpo esbelto e, seca a garganta peia angústia, húmidos os olhos, as coxas trementes, enfiava o traje de Perfectante e deitava-se. Mas, mais que o sono, era uma sonolência que lhe ia paralisando o corpo, sonolência e cansaço que a não impediam de em voz baixa, meio adormecida, conversar com o tecido, confidenciando a cada um dos fios coloridos, das lantejoulas, aos avelórios, aos ouros, os seus sentimentos amorosos.

Uma noite, porém, não o vestiu. Deixou-o enrodilhado debaixo do travesseiro, triste porque não tinha um espelho de corpo inteiro onde se ver com ele vestido. Não era porque lhe importasse saber como lhe ficava, se curto, se comprido, largo ou apertado, mas porque era um dos primeiros rituais mágicos vesti-lo e vê-lo vestido diante dum grande espelho. Pouco a pouco foi-o tirando de sob o travesseiro, mangas, pernas, costas, peito, para o acariciar contra o rosto, pousar-lhe em cima a fronte com seus pensamentos, cobri-lo de miúdos beijos...

Manhãzinha cedo chegou Jojón em cata do seu desjejum. Desde que andava em conluios com ela comia quanto lhe apetecia, sempre as escondidas da patroa, que nesses dias pouco parava na casa de pasto, pois a azafamavam os preparativos para poder dar despacho à clientela habitual e à gente de fora durante os dias da festa.

– Coitado de quem é pobre! – queixou-se a mulata' – Não tenho um espelho grande em que me veja...

– E isso é de toda a urgência - respondeu o cego – porque por ai pode falhar-te a magia...

– Mas que fazer? Só se eu me for meter, como uma ladra, numa casa rica, à meia-noite, vestida de Perfectante. Estou desesperada. Desde ontem à noite estou que não sei que hei de fazer. Aconselhe-me...

– É o que não sei... A magia tem as suas consistências...

– Não entendo o que quer dizer...

– Sim, porque a magia consiste nisto ou consiste naquilo, mas sempre consiste em alguma coisa, e, neste caso, consiste em que uma mulher se deve vestir de Perfectante e ver-se a um espelho de corpo inteiro.

– Mas vossemecê, sendo cego, como sabe de espelhos?...

– Não sou cego de nascença, pequena. Já tinha os meus anos quando perdi a vista, por causa dum mal purulento que primeiro me comeu as pálpebras e depois se me meteu nos olhos.

– Sim nas casas grandes... como a dos Alvizures... há espelhos desses...

– Diz-se que há um muito bom lá em casa deles e até se conta... Não, não é brincadeira... Bem, talvez com isto te possa dar uma esperança. Então vou te contar a coisa, não por mexeriquice. Sirva-me isto de desculpa para quando fores sua nora... Conta-se que como a mãe do Filipinho, D. Petrángela, não teve espelho onde se visse quando enfeitiçou o marido, no dia em que se casou levava o traje de Perfectante por baixo do vestido de noiva e que, ao dizer- lhe o senhor Filipe que se despisse, tirou o vestido branco e, em vez de aparecer nua, mostrou-se em traje de Perfectante, só para cumprir o ritual, para dar satisfação à magia...

– Os casados põem-se assim nus?

– Sim pequena...

– Então vossemecê foi casado?

– Sim, e como o mal ainda não me tinha dado cabo dos olhos pude ver minha mulher...

– Vestida de Perfectante...

– Não, filhinha: como Eva, em couro...

Lida Sal retirava a tigela em que o cego acabara de tomar café com leite e sacudia as migalhas de pão de cima da mesa. Não aparecesse por ali a patroa.

– Não sei onde, mas tens de encontrar um espelho para te veres da cabeça aos pés vestida de Perfectante... – foram as últimas palavras do cego.

E desta vez esqueceu-se de a prevenir que o prazo para devolver o fato se ia aproximando; a festa estava à porta e ele tinha de o levar a casa dos Alvizures.

VII

Estrelas quase afogadas na claridade da Lua, árvores dum verde sombrio, currais cheirosos a leite e orvalho, montões de feno em medas pelos campos, que à lua-cheia mais amarelos pareciam. A tarde tardara em dar lugar à noite. Fora-se afilando até não ser senão um reflexo cortante no ponto onde o céu já se pintava de estrelas. E nesse fio cortante azulado, avermelhado, rosa, verde e violeta da tarde fixava  Lida Sal os olhos, pensando que era chegado o prazo para devolver a farda.

– Amanhã é o último dia que te deixo – preveniu-a Jojón – Se não a entrego à tempo está tudo estragado...

– Sim, sim, não fique preocupado, amanhã a entrego é que hoje vou ver-me ao espelho...

– Ao espelho dos teus sonhos, pequena, porque não vejo onde...

O fio luminoso da tarde ficou nas pupilas de Lida Sal como a frincha dum impossível, como urna frincha por onde pudesse abarcar o céu.

– Sevandija maldita:... -berrou ao seu alheamento a dona da locanda. - Não tens vergonha, com uma data de louça por lavar! Desde há dias que me andas para aqui e para ali como uma doida, e o trabalho por fazer.

A mulata deixou que lhe arrepelasse a grenha e beliscasse os braços, sem responder. Passado um instante, como por encanto, a tormenta amainou. Mas era pior. Porque ao palavrório dos insultos seguiram-se as mil e uma lamentações e recomendações do costume.

– Temos a festa à porta e a menina nem sequer me pediu que lhe mandasse fazer roupa nova. Do que tenho de teu devias comprar um vestido, uns sapatos, umas meias. Não vais atrever-te a aparecer na igreja e na procissão como uma maria-ninguém. É uma vergonha! Que vão pensar de mim, tua patroa? Que te mato à fome ou que fico com o teu ordenado!

– Pois, se lhe parece, amanhã dá-me dinheiro e eu vou comprar qualquer coisa.

– Está visto, menina, temos de agradar uns aos outros' Tu agradas-me fazendo as coisas como deve ser, eu agrado-te comprando-te o que te faz falta. E ainda mais que és nova e não és feia. Quem te diz que entre os que vêm vender gado à feira não te aparece um bom partido?

Lida Sal ouvia-a, mas não entendia nada. Esfregava os trastes, pensando, matutando, no que imaginara ante a última réstia da tarde. O que mais custava era esfregar as frigideiras e os tachos. Que maçada! Tinha de raspá-los à força de pedra-pomes, até lhes safar as gorduras do fundo, e em seguida, por fora, era outra pura guerra com a fuligem também gordurosa.

O esplendor da Lua não permitia pensar que era de noite. Dir-se-ia que somente o dia esfriara, mas que continuava na mesma.

– Não fica longe - disse para si mesmo, dando forma verbal ao que pensava – e é um bocadão de água, quase uma lagoazinha.


Não demorou muito no quarto. Tinha de estar de volta ao amanhecer e entregar o traje de Perfectante ao cego, para que o levasse a casa dos Alvizures... Ah!, mas antes tinha de o ver ela no seu corpo, a um grande espelho, pois a magia tem as suas consistências...

Ao princípio, o encontrar-se em pleno campo intimidou-a. Mas logo foi familiarizando os olhos com os arvoredos, as pedras, as sombras. Via tudo tão claramente por onde ia que lhe pareceu caminhar à luz dum dia submerso. Ninguém a encontrou com aquele estranho traje, caso contrário, quem quer que fosse, teria largado a correr, como ante uma visão diabólica. Teve medo, medo de ser uma visão de fogo, uma tocha de lantejoulas em chamas, um rasto de avelórios, de chispas de água cristalizadas numa só pedra preciosa com forma humana, quando chegou à beira do lago para se debruçar sobre ele vestida com a farda que Filipinho Alvizures usaria na festa.

Da beira boscosa dum barranco que cheirava a desabamentos por entre raízes desenterradas e pedras removidas contemplou o vasto espelho verde, azul e fundo, com seu rendilhado de nuvens baixas, raios de Lua e sonhadoras obscuridades. Pareceu-lhe outra. Seria mesmo ela? Era Lida Sal ? A mulata que esfregava os tachos na casa de pasto seria a rapariga que descia por aquele caminho naquela noite, àquele luar, com aqueles trajes de lume e orvalho?

De um e de outro lado roçavam-lhe os ombros as pestanas dos pinheiros, flores sonâmbulas de perfume adormecido molhavam lhe o cabelo e o rosto com doces beijos húmidos.

– Deixem-me passar! Deixem-me passar! ... – dizia avançando por entre moitas de gengibres, perfumados, enlouquecedores.

– Deixem-me passar! Deixem-me passar !... - repetia ao deixar atrás rochas e pedras gigantescas tombadas do céu, se aerólitos eram, ou da boca dum vulcão num recente cataclismo, se da terra eram.

– Deixem-me passar! Deixem-me passar!... -dizia à cascatas...

– Afastem-se, deixem passar a formosura! -dizia aos regatos e arroios que também iam como ela ver-se ao grande espelho...

– Ah! Ah! Ele bebe-vos –dizia lhes-, mas a mim não me beberá, só me vai ver, vai ver-me vestida de Perfectante, para que se cumpram todas as consistências da magia.

Não corria vento. Luar e água. Lida Sal arrimou-se a uma árvore que dormia chorando, mas logo se afastou horrorizada, que talvez fosse de mau agoiro debruçar-se para o espelho juntamente com uma árvore que chorava adormecida.

Duma ponta a outra da margem foi procurando sítio onde pudesse ver-se em corpo inteiro. Não conseguia a sua imagem completa. Em corpo inteiro. Só se subisse a uma das altas pedras da outra margem.

– Se o cego me visse.. . - mas, que tolice !, como poderia vê-la um cego...

Sim, tinha dito uma tolice, quem tinha de ver-se ao espelho era ela, ver-se dos pés à cabeça.

Trepou. Estava agora em cima dum rochedo de basalto contemplando-se na água.

Onde encontrar um espelho melhor?

Avançou um pé para a extremidade do pedregulho, a admirar o seu belo traje - lantejoulas, avelórios, pedras luminosas, galões, franjas e cordões de ouro -, e em seguida o outro pé, para se ver ainda melhor; e já não pôde deter-se, o seu corpo baqueou contra a própria imagem, um choque de que n5o ficou nem a imagem nem o corpo.

Mas voltou à superfície. Procurava salvar-se... as mãos... as bolhas... o afogamento... voltara a ser a mulata que lutava pelo inalcançável... a margem... agora o inalcançável era a margem...

Duas imensas angústias...E foi o que fechou por último, as imensas angústias dos seus olhos a verem cada vez mais longe a margem do pequeno lago, desde então chamado o “Espelho de Lida Sal”.

Quando chove e há luar, o seu cadáver flutua. Viram-no as rochas. Viram-no os salgueiros que choram folhas e reflexos. Os veados e os coelhos viram-no. As toupeiras telegrafam a noticia de que a viram, com a palpitação dos seus coraçõezinhos de terra, antes de volverem às suas escuridões.

Redes de chuva de prata pestanejante arrancam a sua imagem do espelho e passeiam-na vestido de Perfectante pela superfície da água, que a sonha, luminosa e ausente.

Miguel Angel Asturias