sábado, 30 de abril de 2016

OUTROS CONTOS

«O Outono», por Bernardo Soares.

«O Outono»
Jardim Outonal/ Vincent van Gogh

784- «O OUTONO»

[Excerto do Livro do Desassossego]

 Atrás dos primeiros menos-calores do estio findo vieram, nos acasos das tardes, certos coloridos mais brandos do céu amplo, certos retoques de brisa fria que anunciavam o outono.

Não era ainda o desverde da folhagem, ou o desprenderem-se das folhas, nem aquela vaga angústia que acompanha a nossa sensação da morte externa, porque o há-de ser também a nossa. Era como um cansaço do esforço existente, um vago sono sobrevindo aos últimos gestos de agir. Ah, são tardes de uma tão magoada indiferença, que, antes que comece nas coisas, começa em nós o outono.

Cada outono que vem é mais perto do último outono que teremos, e o mesmo é verdade do verão ou do estio; mas o outono lembra, por o que é, o acabamento de tudo, e no verão ou no estio é fácil, de olhar, que o esqueçamos. Não é ainda o outono, não está ainda no ar o amarelo das folhas caídas ou a tristeza húmida do tempo que vai ser inverno mais tarde. Mas há um resquício de tristeza antecipada, uma mágoa vestida para a viagem, no sentimento em que somos vagamente atentos à difusão colorida das coisas, ao outro tom do vento, ao sossego mais velho que se alastra, se a noite cai, pela presença inevitável do universo.

Sim, passaremos todos, passaremos tudo. Nada ficará do que usou sentimentos e luvas, do que falou da morte e da política local. Como é a mesma luz que ilumina as faces dos santos e as polainas dos transeuntes, assim será a mesma falta de luz que deixará no escuro o nada que ficar de uns terem sido santos e outros usadores de polainas.

No vasto redemoinho, como o das folhas secas, em que jaz indolentemente o mundo inteiro, tanto faz os remos como os vestidos das costureiras, e as tranças das crianças louras vão no mesmo giro mortal que os ceptros que figuraram impérios.

Tudo é nada, e no átrio do Invisível, cuja porta aberta mostra apenas, defronte, uma porta fechada, bailam, servas desse vento que as remexe sem mãos, todas as coisas, pequenas e grandes, que formaram, para nós e em nós, o sistema sentido do universo.

Tudo é sombra e pó mexido, nem há voz senão a do som que faz o que [o] vento ergue e arrasta, nem silêncio senão do que o vento deixa. Uns, folhas leves, menos presas de terra por mais leves, vão altas do rodopio do Átrio e caem mais longe que o círculo dos pesados. Outros, invisíveis quase, pó igual, diferente só se o víssemos de perto, faz cama a si mesmo no redemoinho. Outros ainda, miniaturas de troncos, são arrastados à roda e cessam aqui e ali.

Um dia, no fim do conhecimento das coisas, abrir-se-á a porta do fundo e tudo o que fomos - lixo de estrelas e de almas - será varrido para fora da casa, para que o que há recomece.

Meu coração dói-me como um corpo estranho. Meu cérebro dorme tudo quanto sinto. Sim, é o princípio do outono que traz ao ar e à minha alma aquela luz sem sorriso que vai orlando de amarelo morto o arredondamento confuso das poucas nuvens do poente.

Sim, é o princípio do outono, e o conhecimento claro, na hora límpida, da insuficiência anónima de tudo. O outono, sim, o outono, o que há ou o que vai haver, e o cansaço antecipado de todos os gestos, a desilusão antecipada de todos os sonhos.

Que posso eu esperar e de quê? Já, no que penso de mim, vou entre as folhas e os pós do átrio, na órbita sem sentido de coisa nenhuma, fazendo som de vida nas lajes limpas que um sol angular doura de fim não sei onde.

Tudo quanto pensei, tudo quanto sonhei, tudo quanto fiz ou não fiz - tudo isso irá no outono, como os fósforos gastos que juncam o chão em diversos sentidos, ou os papéis amarrotados em bolas falsas, ou os grandes impérios, as religiões todas, as filosofias com que brincaram, fazendo-as, as crianças sonolentas do abismo.

Tudo quanto foi minha alma, desde tudo a que aspirei à casa vulgar em que moro, desde os deuses que tive ao patrão Vasques que também tive, tudo vai no outono, tudo no outono, na ternura indiferente do outono.

Tudo no outono, sim, tudo no outono…

Bernardo Soares
(Semi-heterónimo de Fernando Pessoa)

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

MUDDY WATERS - «Trouble No More»

Poet'anarquista

MAIS NENHUM PROBLEMA

Não me importo à quanto tempo você se foi
Não me importo quanto tempo vai ficar
Mas um belo tratamento
Te trará de volta pra casa algum dia

Mas algum dia querida
Você não será problema
Pobre de mim, não mais

Você continua apostando
Que os dados não vão passar
Bem, você sabe querida
Você está vivendo rápido demais

Mas algum dia querida
Você não será problema
Pobre de mim, não mais

Contarei a todo mundo
Na sua vizinhança
Que a doce garotinha
Não me diz nada de bom

Mas algum dia querida
Você não será problema
Pobre de mim, não mais
Sem mais problemas
Sem mais problemas

Bem, eu sei que está vivendo
Você chama isso de dar fora
Sem amor
Não pode ficar muito tempo

Mas algum dia querida
Você não será problema
Pobre de mim, não mais

Bem, adeus querida
Venha e aperte minha mão
Eu não quero mulher nenhuma
Você não pode ter um homem

Mas algum dia querida
Você não será problema
Pobre de mim, não mais

Muddy Waters (O Rei dos Blues)
Cantor, Guitarrista e Compositor Norte-Americano

sexta-feira, 29 de abril de 2016

OUTROS CONTOS

«Romance do Homem da Boca Fechada», conto poético por Jaime Cortesão.

«Romance do Homem da Boca Fechada»
Pintura de Yosl Bergner

783- ROMANCE DO HOMEM DA BOCA FECHADA

– Quem é esse homem sombrio
Duro rosto, claro olhar,
Que cerra os dentes e a boca
Como quem não quer falar?
– Esse é o Jaime Rebelo,
Pescador, homem do mar,
Se quisesse abrir a boca,
Tinha muito que contar.

Ora ouvireis, camaradas,
Uma história de pasmar.

Passava já de ano e dia
E outro vinha de passar,
E o Rebelo não cansava
De dar guerra ao Salazar.
De dia tinha o mar alto,
De noite, luta bravia,
Pois só ama a Liberdade,
Quem dá guerra à tirania.
Passava já de ano e dia…
Mas um dia, por traição,
Caiu nas mãos dos esbirros
E foi levado à prisão.

Algemas de aço nos pulsos,
Vá de insultos ao entrar,
Palavra puxa palavra,
Começaram de falar
– Quanto sabes, seja a bem,
Seja a mal, hás de contá-lo,
– Não sou traidor, nem perjuro;
Sou homem de fé: não falo!
– Fala: ou terás o degredo,
Ou morte a fio de espada.
– Mais vale morrer com honra,
Do que vida deshonrada!

– A ver se falas ou não,
Quando posto na tortura.
– Que importam duros tormentos,
Quando a vontade é mais dura?!

Geme o peso atado ao potro
Já tinha o corpo a sangrar,
Já tinha os membros torcidos
E os tormentos a apertar,
Então o Jaime Rebelo,
Louco de dor, a arquejar,
Juntou as últimas forças
Para não ter que falar.
– Antes que fale emudeça! –
Pôs-se a gritar com voz rouca,
E, cerce, duma dentada,
Cortou a língua na boca.

A turba vil dos esbirros
Ficou na frente, assombrada,
Já da boca não saia
Mais que espuma ensanguentada!

Salazar, cuidas que o Povo
Te suporta, quando cala?
Ninguém te condena mais
Que aquela boca sem fala!

Fantasma da sua dor,
Ainda hoje custa a vê-lo;
A angústia daquelas horas
Não deixa o Jaime Rebelo.
Pescador que se fez homem
Ao vento livre do Mar,
Traz sempre aquela visão
Na sombra dura do olhar,
Sempre de boca apertada,
Como quem não quer falar.

Jaime Cortesão

quinta-feira, 28 de abril de 2016

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

CAN - «Future Days»

Poet'anarquista

DIAS FUTUROS

Se algum dia eu viesse a perdê-lo
Eu certamente perderia a mim mesmo
Tudo o que eu encontrei, querida
Eu não descobri sozinho

Tente, e às vezes você terá sucesso
Para fazer este homem de mim
Todas as minhas peças roubadas
Eu não preciso mais delas

Eu acredito, e eu acredito que caso eu posso ver, os nossos dias futuros
Dias de você e eu

Quando eu estava me sentindo quebrado
Concentrei-me em rezar, Você veio do fundo do oceano
Alguma coisa lá fora ouviu?

Todas as complexidades e jogos
Ninguém ganha, mas, de alguma forma, eles continuam enganados
Todos os corações despedaçados
Eles podemos morrer, mas em nós continuam vivos

Eu acredito
E eu acredito porque eu posso ver
Os nossos dias futuros
Dias de você e eu

Quando furacões e ciclones se enfureceram
Quando ventos transformaram sujeira em pó
Quando enchentes vieram ou as marés se levantaram
Isso nos aproximou mais

Todas as promessas ao pôr do sol
Eu as fiz, como o resto
Todos os demónios que costumavam nos rodear
Sinto-me grato por terem nos deixado

Tão persistente em meus caminhos
Ei, Anjo, eu estou aqui para ficar

Sem resistência, sem sustos
Por favor, isto é bom demais para acabar

Eu acredito, e eu acredito que caso eu posso ver, os nossos dias futuros
Dias de você e eu

Can
Banda Alemã (Rock Experimental)

OUTROS CONTOS

«Hora Nocturna», conto poético por Karl Kraus.

«Hora Nocturna»
A Noite Estrelada/ Vincent van Gogh

782- «HORA NOCTURNA»

Hora nocturna que me consomes,
hora em que imagino, medito e sigo,
esta noite vai chegando ao seu destino.
Fora diz um pássaro: é o dia.
Hora nocturna que me consomes,
hora em que imagino, medito e sigo,
este inverno vai chegando ao seu destino.
Fora diz um pássaro: é primavera.
Hora nocturna que me consomes,
hora em que imagino, medito e sigo,
esta vida vai chegando ao seu destino.
Fora diz um pássaro: é a morte.

Karl Kraus

quarta-feira, 27 de abril de 2016

OUTROS CONTOS

«Sobre a Liberdade», conto poético por José Watanabe.

«Sobre a Liberdade»
Poema de José Watanabe

781- «SOBRE A LIBERDADE»

         Pela manhã compraram um pássaro
         como se compra uma fruta
            um ramo de flores.

         Dizem que Hokusai comprava pássaros para libertá-los.

         Também  Da Vinci
             mas medindo-lhes o impulso e o rumo.

         Possivelmente na infância eu tenha pintado pássaros
         mas jamais lhes falei da relação exata com os aviões.

         Estou tentando libertar este pássaro
          para devolver-lhe
           seu direito de morrer no vento.

         Vão me exigir motivos.

         Sentirei a obrigação de falar sobre a liberdade,
         mas a família que é bem lógica

           dirá que apenas só
            com o vento
            a ver que faço.

          José Watanabe

terça-feira, 26 de abril de 2016

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

ELLA FITZGERALD - «Party Blues»

Poet'anarquista

Ella Fitzgerald
Cantora de Jazz Norte-Americana

OUTROS CONTOS

«O Recreio», conto poético por Mário de Sá-Carneiro.

«O Recreio»
Poema de Mário de Sá-Carneiro

780- «O RECREIO»

Na minha Alma há um balouço
Que está sempre a balouçar ---
Balouço à beira dum poço,
Bem difícil de montar...

--- E um menino de bibe
Sobre ele sempre a brincar...

Se a corda se parte um dia
(E já vai estando esgarçada),
Era uma vez a folia:
Morre a criança afogada...

--- Cá por mim não mudo a corda,
Seria grande estopada...

Se o indez morre, deixá-lo...
Mais vale morrer de bibe
Que de casaca... Deixá-lo
Balouçar-se enquanto vive...

--- Mudar a corda era fácil...
Tal ideia nunca tive...

Mário de Sá-Carneiro

domingo, 24 de abril de 2016

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

JIMMY GIUFFRE - «Blues»

Poet'anarquista

Jimmy Giuffre
Músico de Jazz Norte-Americano

OUTROS CONTOS

«A Dor», por Fialho de Almeida.

«A Dor»
Conto de Fialho de Almeida

779- «A DOR»

 Quando o último orango deu origem ao primeiro homem, e esse homem chegando à virilidade pôde  desfrutar a grandeza da indomável força do seu pai, domada pela bondade hilariante da sua luminosa inteligência, fez um dia a si próprio esta pergunta:  

— Em que difiro eu daquele carrancudo ser que não fala  senão por guinchos e só por contracções grotescas se exprime, que para a alegria tem um grito e um urro para a cólera, que vê morrer os filhos e fugir-lhe a esposa, sem que o invada este desconsolado entorpecimento que eu sinto se não remedeio o mal, e se para o que me cerca não encontro explicação?

Ele caminha aos saltos, coberto de pêlos e ululante de vingança, trepando pela nodosidade dos caules e enchendo do seu terror feroz as grutas e os maciços das florestas palpitantes de ninhos, pisando sem remorsos as corolas mais purpúreas e os cálices mais olorantes, e não vendo na vastidão opulenta e na  cromática irradiante desse mundo alado ou desse mundo vegetal mais que a rede em que descuidosamente os seus inimigos vêm cair e onde ele faz as suas vítimas!

É das diferenças superficiais de estrutura  — de eu estar nu e ele vestido de pêlos, de ele ter cauda e eu não, de os seus pés terem o feitio das suas mãos  preênseis, enquanto as minhas plantas se espalmam pela asperidão das marchas a que as submeto — é das diferenças aparentes de organismo  que nascem estas discordâncias de natureza — nele a secura, a ferocidade, o egoísmo e a  inconsequência — em mim o sagrado terror da responsabilidade, o alcance de vistas que me perturba, a previsão sagaz que me aconselha, e esta comoção sem origem que se entorna no meu corpo, e me tortura ou me entusiasma, conforme provém de uma necessidade satisfeita, ou conforme provém de um contratempo inesperado?  

E como se interrogava em voz alta, no meio dos castanheiros que as trepadeiras vestiam em amplexos concupiscentes nas suas couraças de folhas, viu surgir, dos rochedos negros em que pousava, o velho deus das selvas, alta figura cingida de cachos e coroada de flores, com barbas de musgos e vasta  cabeleira de relvas verdejantes.

— Abre a cabeça do teu filho — disse o deus.  

O homem tomou o machado de sílex, chamou seu filho e fazendo-o ajoelhar fendeu-lhe o crânio de um só golpe.

— Essa caixa de osso que partiste é como a casca lenhosa de certos frutos  tropicais de que te alimentas. Partida a casca, esses frutos revelam a polpa delicada, de extraordinário tecido e esquisito sabor.

— Guarda  esse fruto — disse o deus. E após, com império: — Abre a cabeça do teu pai! — ordenou-lhe. O homem encontrou na toca do grande baobabe o velho orango que lhe dera o ser, acocorado e trôpego, roendo talos. Deu-lhe as boas-noites, pediu-lhe a bênção como de costume, e, quando o orango lhe estendia  a  mão lanugenta, sentiu na cara o gume do machado que lhe separava o crânio em duas metades.

— Extrai-lhe o fruto — disse o deus, e o homem obedeceu.  

— Bem — disse o outro.

E apontando a cada um dos cérebros desnudados:  

— Este é o cérebro do teu filho, este o do teu pai. Vês que é maior o do pequeno que o do velho, não vês? Agora segue com a tua unha estes arabescos misteriosos que sulcam a polpa arrancada ao pequeno. Eles desenham o quer que seja de legenda em hieróglifos: é a buena-dicha da espécie humana. São as circunvoluções, que mal se esboçam no cérebro do orango e  que os teus levarão mais e mais profunda e profusamente impressas. Até o teu pai, o cérebro era alguma coisa tosca como o granito; de ti por diante ele lapida-se, depura-se e modifica-se — é a pedra preciosa, cáustica na sombra e tenebrosa na luz, dotada de fulgor próprio e propensa a iluminar ao longe os tenebrosos  recessos dos instintos que herdaste e tens de transmitir suavizados e aptos à utilidade, pela cultura a  que tu mesmo os forçarás. Corta-os ambos em pedaços e examina-os bem. São da mesma matéria,  têm idêntica forma e parecem do mesmo valor. Mas um é o ferro bruto que o mineiro destila do filão recôndito, o outro é o ferro dotado de propriedades magnéticas. Podes chamar àqueles carvão negro e torvo, se tiveres olhado neste diamante lapidado, que cintila pelos engastes das tuas órbitas como se ardesse vivido na coroa de um rei.

— Compreendo! — disse o homem, pensativo.  

— Olha melhor esse miolo dos dois frutos descascados. Cada polpa se me afigura formada de lóbulos ou esferoides. É como um continente dividido em nações pelos grandes rios, ou um país repartido em distritos, pelas grandes estradas reais. Cada distrito é a potência que rege alguma determinada função do corpo — são as bossas. Há a bossa da memória, a bossa da inteligência, a bossa da luxúria, a da gula...

E, apontando cada  proeminência, o deus chamava-as pelos seus nomes. Algumas, que eram salientes na criança, ou mal se esboçavam no orango, ou positivamente não existiam. Em compensação, o cérebro do bruto tinha  noutras um desenvolvimento colossal a respeito do pequeno, o deus fazia-as  comparar miudamente, uma a uma.

—  Todas as que presidem à direcção de necessidades animais, instintos ou apetites, são consideráveis, no teu pai — dizia ele ao homem. — Todas as que se referem ao intelecto são de surpreendente grandeza no teu filho. Eis porque buscas alguma coisa mais na vida que a reflexão do teu estômago se tens fome, que a ingestão de água corrente se tens sede, que o repouso se tens sono, e o coito brutal se a virilidade do teu sexo faz explosão ante a fêmea que passa, serva obediente da tua crueldade ou dócil instrumento da tua lascívia!

 Desse instinto, que a natureza institui para povoar os seus continentes e os seus mares, encher de rumor as florestas.

Faz notar Gratiolet que as circunvoluções dos mais rudes primatas são como o esquema das circunvoluções do cérebro humano e de cardumes as águas, tiraste tu os efeitos mais doces, as sinfonias mais límpidas, os mais castos trenos e as mais cintilantes volatas.  

Chamaste-lhe o amor, e cristalizando o amor transfizeste-o na  adoração. À fêmea escrava quebraste as algemas, não consentindo que os seus pés sangrassem, como os teus rudes pés de lutador, nos abrolhos da selva e nos espinhos da maledicência. Da tua rude cabana fizeste um templo, da tua fé um lampadário, uma cúpula da tua religião e da mulher o teu deus. No santuário do teu amor puseste o deus, e da cúpula do templo o lampadário encheu de esplendores místicos a família e a tua alma. Pela adoração domaste a tua força, aprendendo a ser delicado para os fracos, altivo para os soberbos, cruel para os maus, justiceiro, generoso e valente! Estas qualidades deve-las à tua inteligência,  fluido singular que emana deste lóbulo —  e apontava — e te  destacou dos teus antepassados. Por essa faculdade, dominarás os elementos e os animais, serás rei e senhor, porque o teu braço obedecerá  sempre à tua cabeça. Cada geração receberá da anterior um património de ideias adquirido,  entregando religiosamente à que lhe suceder, acrescentando pelos seus esforços esse património sagrado e inviolável. A tua ambição será satisfeita, descansa.

— E serei eterno? — disse o homem, tremendo àquela ideia. 

—  Na história.
  
— Na vida! Que me importará a história? Se poderei viver assim sempre, dominando mares e povos,  e experimentando cá dentro esta plenitude de seiva que extravasa do meu corpo, e se desentranha em colossais alegrias? 

— Não! — disse o deus com voz profunda. — Morrerás!  

— De que me serve então tudo isto? — exclamou ele, contraindo a face serena, que uma graça  infinita deificava. E erguendo os  braços desesperado caiu a chorar a mesquinhez da sua condição. O velho deus sorria. 

— E qual a bossa que no cérebro do meu filho corresponde a este horrível veneno que a tua palavra me faz beber? 

O deus apontou-lha, dizendo: 

— Esse veneno chama-se a Dor e nunca envenenou o teu pai. 

— Faz-me então voltar à nativa bruteza dos meus — disse o homem. — Prefiro a inconsciência rude do orango, a essa inteligência que, iluminando-me a vida, me faz dela um ergástulo, e onde não poderei fazer um passo, bom ou mau que seja, sem que este tribunal interior, incorruptível e soberano, me detenha se vou com pressa, ou bruscamente me acorde se adormeci, para me julgar do que eu fizer e para me castigar a toda a hora. 

A voz do deus bradou: 

— Jamais!
  
E desde então esse animal vaidoso, julgado o mais perfeito e o mais livre dos seres vivos, tornou-se no miserável escravo que eternamente geme sob o chicote do seu verdugo — esse verdugo que se chama: o Pensamento. 

Fialho de Almeida

quarta-feira, 20 de abril de 2016

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...
(Escolha musical da blogosfera)

HELENA MEIRELLES - «Guaxo»

Poet'anarquista

Helena Meirelles
Violeira, Cantora e Compositora Brasileira

OUTROS CONTOS

«A Casa do Juiz», por Bram Stoker.
«A Casa do Juiz»
Conto de Bram Stoker

778- «A CASA DO JUIZ»

Quando se aproximou a data de seu exame, Malcolm Malcolmson decidiu ir para algum lugar onde pudesse ler em paz. Ele receava os atractivos da praia e também um isolamento completo no campo, pois há muito conhecia seus encantos, e então resolveu encontrar alguma cidadezinha modesta onde não houvesse nada que o distraísse. Absteve-se de pedir sugestões a quaisquer de seus amigos, pois julgava que todos recomendariam algum lugar que ele já conhecia e onde já tinha conhecidos. Tanto quanto desejava evitar amigos, Malcolmson não queria de modo algum se sobrecarregar com a atenção de amigos e, assim, resolveu procurar uma casa. Encheu uma maleta com algumas roupas e todos os livros de que precisava e depois comprou passagem para o primeiro nome no quadro de horários que ele não conhecesse. Quando ao cabo de uma viagem de três horas desembarcou em Benchurch, sentiu-se satisfeito por ter apagado seus rastos e garantido assim uma oportunidade de entregar-se a seus estudos em paz. Dirigiu-se imediatamente à única pousada que aquele lugar sossegado possuía e acomodou-se para a noite. Benchurch era uma cidade comercial e uma vez a cada três semanas ficava excessivamente populosa, mas nos restantes vinte e um dias era atraente como um deserto. Malcolmson procurou nos arredores, no dia seguinte a sua chegada, refúgios mais isolados ainda do que uma pousada tranquila como o “Bom Viajante”. Apenas um único lugar cativou-o, e certamente excedia até mesmo suas ideias mais extravagantes no que diz respeito a tranquilidade; na verdade, tranquilidade não era a palavra adequada a qualificá-lo — solidão era o único termo que conviria a seu isolamento. Era uma velha casa de estilo jacobino, irregular, sólida, com caixilhos e janelas pesados, circundada por um muro alto e compacto de tijolos. Apesar de ser construída com altura maior do que o usual era excepcionalmente pequena. Com efeito, a um olhar mais atento, parecia-se mais a uma casa fortificada do que a uma morada comum. Mas todas essas coisas agradaram a Malcolmson. “Aqui”, pensou ele, “está exactamente o canto que eu estava procurando, e se tiver a oportunidade de usá-lo, ficarei satisfeito.” Sua alegria aumentou quando percebeu que ela, indubitavelmente, não estava habitada no momento. Na agência do correio ele obteve o nome do corretor, que raramente era surpreendido pelo surgimento de alguém interessado em alugar parte da velha casa. O sr. Carnford, o advogado local e corretor, era um velho cavalheiro amável e confessou abertamente sua alegria em saber que alguém desejava viver na casa. “Para ser sincero”, disse ele, “eu ficaria muitíssimo feliz, em nome dos proprietários, em isentar qualquer um do aluguer pelo período de anos, apenas para acostumar as pessoas daqui a vê-la habitada. Faz tanto tempo que está vazia que se criou algum tipo de prevenção contra ela, e isso somente sua ocupação poderá eliminar — ainda mais”, acrescentou ele com um olhar furtivo para Malcolmson, “por um letrado como o senhor, que deseja tranquilidade durante algum tempo.” Malcolmson julgou desnecessário interrogar o corretor sobre a “prevenção absurda”; ele sabia que poderia conseguir mais informações, caso quisesse, em outros cantos. Pagou o aluguer de três meses, pegou o recibo e o nome de uma velha senhora que provavelmente se encarregaria de “ajeitá-lo” e foi embora com as chaves no bolso. Foi então até a proprietária da hospedaria, que era uma pessoa alegre e muito gentil, e lhe pediu conselhos quanto aos víveres e provisões de que provavelmente necessitaria. Ela levantou as mãos em espanto quando ele lhe contou onde iria se instalar. “Não na Casa do Juiz!”, disse ela, empalidecendo. Ele explicou a localização da casa, dizendo que não sabia seu nome. Quando terminou, ela respondeu: “Sim, é ela com certeza — com certeza é aquela! É sem dúvida a Casa do Juiz.” Ele lhe pediu que falasse sobre a casa, por que era assim chamada e o que havia contra ela. A velha lhe contou que era assim chamada na localidade porque fora, muitos anos antes — quanto tempo não sabia, uma vez que viera de outra parte do país, mas julgava ter sido há dois séculos ou mais —, a residência de um juiz que inspirava grande terror por causa de suas sentenças severas e sua hostilidade a prisioneiros em sessões de tribunais superiores. Quanto ao que havia contra a casa em si, ela não sabia. Ela muitas vezes perguntara, mas ninguém pudera dar-lhe informações; mas havia um sentimento geral da existência de algo, e de sua parte nem todo o dinheiro do banco a convenceria a ficar na casa sozinha durante uma hora. Depois ela se desculpou com Malcolmson por suas palavras perturbadoras. “É muito ruim de minha parte, senhor, e o senhor — além disso, um jovem cavalheiro —, desculpe-me dizê-lo, está prestes a ir morar lá sozinho. Se fosse meu filho — e o senhor me perdoará dizê-lo —, não dormiria lá nem uma noite, nem que eu tivesse de ir lá e puxar eu mesma a grande campainha que existe em baixo!” A boa criatura era tão claramente sincera e tão gentis suas intenções que Malcolmson, apesar de divertido, ficou comovido. Disse-lhe amavelmente o quanto apreciava seu interesse por ele e acrescentou: “Mas, minha querida sra. Witham, na verdade a senhora não precisa preocupar-se comigo! Um homem que está lendo para os exames de Matemática Tripos tem muito em que pensar para ser perturbado por qualquer dessas ‘algumas coisas’ misteriosas, e seu trabalho é de um tipo demasiado exacto e prosaico para permitir que ele reserve algum canto em seu espírito para mistérios de qualquer espécie. Progressão harmónica, permutações e combinações e funções elípticas já possuem mistério suficiente para mim!” A sra. Witham foi providenciar seus pedidos e ele foi procurar pela velha senhora que lhe havia sido recomendada. Quando retornou com ela à Casa do Juiz, após um intervalo de algumas horas, encontrou a própria sra. Witham esperando com vários homens e meninos a carregar pacotes e um carpinteiro e estofador com uma cama numa carroça, pois, disse ela, embora as mesas e as cadeiras pudessem estar em boas condições, uma cama que ainda não fora arejada durante talvez cinquenta anos não era adequada para o descanso de ossos jovens. Ela estava obviamente curiosa para ver o interior da casa; e, não obstante, visivelmente tão receosa das “algumas coisas” que, ao menor som, agarrava-se a Malcolmson, a quem não deixou nem por um minuto e que percorreu toda casa. Depois de examinar a casa, Malcolmson decidiu ocupar a ampla sala de jantar, que era grande o suficiente para atender a todas as suas necessidades; e a sra. Witham, com a ajuda da arrumadeira, a sra. Dempster, continuou a organizar tudo. Quando as canastras foram trazidas e abertas, Malcolmson viu que, com uma previdência muito gentil, ela enviara de sua própria cozinha provisões suficientes para uns poucos dias. Antes de partir, ela expressou amavelmente seus votos de uma estada feliz; e à porta virou-se, dizendo: “E talvez, senhor, como o aposento é grande e exposto a correntes de ar, seria conveniente ter uma daquelas cortinas grandes em volta de sua cama à noite — embora, para dizer a verdade, eu morreria se tivesse de me fechar assim, com todos os tipos de... de ‘coisas’, que põem suas cabeças pelos lados, ou acima, e olham pata mim!” A imagem que ela invocara era demais para os seus nervos e ela fugiu incontinente. A sra. Dempster fungou de uma forma superior enquanto a proprietária desaparecia e observou que, de sua parte, não tinha medo nem de todos os diabos do reino. “Vou lhe dizer o que é, senhor”, disse ela; “demónios é toda espécie e tipos de coisas — excepto demónios!” Ratos e camundongos e besouros; e portas rangendo e telhas soltas e vidraças quebradas e maçanetas quebradas, que saem quando são puxadas e então caem no meio da noite. Veja os lambris da sala! São velhos — têm cem anos! O senhor pensa que não há ratos e besouros lá? E imagina, senhor, que não vai ver nenhum deles? Ratos são demónios, isso sim, e demónios são ratos; e não comece a pensar outra coisa!” “Sra. Dempster”, disse Malcolmson gravemente, fazendo-lhe uma reverência polida, “a senhora sabe mais do que um polemista experiente! E digo-lhe que, como sinal de estima por seu coração e mente inquestionavelmente sãos, quando eu me for, dar-lhe-ei a posse desta casa e a deixareificar aqui sozinha pelos dois últimos meses de meu período como inquilino, pois quatro semanas me serão suficientes.” “Muito obrigada, senhor!”, respondeu ela, “mas eu não poderia dormir fora de minha casa sequer uma noite. Moro no asilo de Greenhow e se eu dormir uma noite fora de meus aposentos perco tudo de que preciso para viver. As regras são muito estritas e há muita gente esperando uma vaga, para que possa me arriscar. Mas, mesmo assim, vou ficar contente em vir aqui e servir o senhor durante sua estada.” “Minha boa mulher”, disse Malcolmson apressadamente, “vim para cá em busca de solidão; e, acredite-me, estou tão grato ao falecido Greenhow por ter assim disposto seu ato de caridade admirável — seja ele qual for — que me sinto obrigado a recusar a oportunidade de cair em tal tipo de tentação! O próprio Santo António não poderia ser mais rigoroso sobre isso!” A velha senhora deu uma gargalhada. “Ah!, meu jovem cavalheiro”, disse, “o senhor não precisa temer nada; e talvez consiga a solidão que quer aqui”. Ela posse a trabalhar na limpeza; e ao cair da noite, quando Malcolmson retornou de seu passeio — sempre carregava um de seus livros para estudar enquanto caminhava —, encontrou o quarto varrido e arrumado, a velha lareira acesa e a mesa posta para o jantar, com a comida da excelente sra. Witham. “Isso é que é conforto”, disse ele, esfregando as mãos. Depois de terminar seu jantar e levar a bandeja para a outra extremidade da mesa de jantar antiga de carvalho, pegou novamente seus livros, colocou novas toras no fogo, ajustou seu lampião e acomodou-se para um período de trabalho realmente duro. Ele prosseguiu sem pausa até cerca de onze horas, quando interrompeu seu trabalho para ajeitar o fogo e o lampião e fazer uma xícara de chá. Ele sempre fora dado a um chá e durante sua vida académica trabalhava e tomava chá até tarde da noite. O resto constituía um grande luxo para ele e, assim, desfrutou dele com uma sensação de tranquilidade deliciosa, voluptuosa. O fogo renovado estalava e brilhava e lançava sombras singulares através da grande e antiga sala; e enquanto ele sorvia seu chá quente deleitou-se com a sensação de isolamento. Foi então que começou a notar, pela primeira vez, como era grande o barulho que os ratos estavam fazendo. “Seguramente”, pensou, “não estavam a fazê-lo todo o tempo em que eu lia. Se tivessem feito, com certeza eu o teria notado!” Depois, quando o ruído aumentou, ele se convenceu de que era realmente novo. Era evidente que de início os ratos estavam amedrontados pela presença de um estranho e pela luz do fogo e do candeeiro; mas com o passar das horas haviam se tornado mais ousados e estavam agora se divertindo à vontade. Como estavam ocupados! E que estranhos ruídos! Para cima e para baixo, atrás dos velhos lambris, sobre o forro do teto e sob o soalho eles corriam, roíam e arranhavam! Malcolmson sorriu consigo ao recordar a frase da sra. Dempster, “Demónios são ratos, e ratos são demónios!” O chá começou a exercer seus efeitos estimulantes sobre o intelecto e os nervos; ele anteviu com alegria um outro período de trabalho antes do fim da noite e, com a sensação de segurança que isso lhe proporcionou, permitiu-se o luxo de uma boa olhada em torno da sala. Pegou seu lampião com uma das mãos e caminhou em volta, perguntando-se por que uma casa antiga tão singular e bela fora abandonada por tanto tempo. O entalhe do carvalho nas esquadrias dos lambris era primoroso, e acima e em volta das portas e das janelas ele era belo e de grande valor. Havia alguns quadros nas paredes, mas estavam cobertos de tanta poeira e sujeira que ele não conseguia distinguir seus pormenores, embora levantasse seu lampião à altura da cabeça. Aqui e lá, à medida que ele caminhava em volta da sala, viu uma rachadura ou buraco tapado no momento pela cara de um rato, com seus olhos brilhantes piscando na luz, mas num instante ele se fora e seguiram-se um guincho e ruído de patas a correr. O que mais o chocou, contudo, foi o cordão da grande campainha do tecto, que pendia em um canto da sala, à direita da lareira. Ele empurrou para perto da lareira uma grande cadeira de carvalho entalhado de espaldar alto e sentou-se para sua última xícara de chá. Depois, avivou o fogo e voltou para o trabalho, sentado a uma extremidade da mesa, com o fogo à sua esquerda. Durante certo tempo, os ratos o perturbaram um pouco com suas passadas incessantes, mas ele se habituou ao ruído como fazemos com o tique-taque de um relógio ou com o bramir de águas em movimento; e mergulhou tão profundamente em seu trabalho que tudo no mundo, excepto o problema que estava tentando resolver, lhe passava ao largo. Ele subitamente levantou os olhos, seu problema ainda por solucionar, e havia no ar aquela sensação da hora antes do amanhecer, que é tão aterradora a uma vida incerta. O ruído dos ratos havia cessado. Na verdade, pareceu-lhe que cessara apenas há pouco e que foi o súbito cessar que o perturbara. O fogo baixara, mas ainda lançava uma luz vermelho vivo. Quando ele olhou, deu um pulo, apesar de seu sangue frio. Sentado na grande cadeira de carvalho de espaldar alto, ao lado direito da lareira, estava um rato enorme, encarando-o fixamente com olhos malévolos. Ele fez um movimento em sua direção como que para expulsá-lo, mas ele não se mexeu. Então, ele fez o movimento de atirar algo. Ainda assim ele não se mexeu, mas mostrou raivosamente seus grandes dentes brancos, e seus olhos cruéis brilharam à luz do lampião com o acréscimo de uma expressão vingativa. Malcolmson espantou-se e, agarrando o atiçador da lareira, correu para ele a fim de matá-lo. Antes porém que pudesse atingi-lo, o rato, com um guincho que soou como a condensação do ódio, pulou para o chão e, subindo pelo cordão da campainha, desapareceu nas trevas, para além do raio de luz esverdeado do lampião. Nesse instante, estranhamente, o ruído de passos dos ratos nos lambris começou novamente. A essa altura, o espírito de Malcolmson já se distanciara do problema, e quando um agudo canto de galo lá fora lhe anunciou a aproximação da manhã, ele foi para a cama dormir. Dormiu tão profundamente que não foi despertado nem mesmo pela chegada da sra. Dempster para arrumar sua sala. Foi somente quando ela havia limpado o lugar e aprontado seu café da manhã e bateu de leve na tela que envolvia sua cama que ele acordou. Ainda estava cansado, após sua noite de trabalho pesado, mas uma xícara de chá forte logo o recompôs e, pegando seu livro, saiu para a caminhada matinal, levando consigo alguns sanduíches, para não ter de retornar até a hora do jantar. Encontrou uma aléia tranquila entre altos olmos um pouco além da cidade e lá passou a maior parte do dia estudando seu Laplace. Quando retornou, procurou a sra. Witham para agradecer-lhe a gentileza. Quando ela o viu chegando, através da janela de vidros facetados de seu quarto particular, veio ao seu encontro e convidou-o a entrar. Lançando-lhe um olhar interrogativo, balançou a cabeça enquanto dizia: “Não deve exagerar, senhor. Está mais pálido esta manhã do que deveria. Ficar acordado até muito tarde e sobrecarregar o cérebro com trabalho muito pesado não é bom para ninguém! Mas diga-me, senhor, como passou a noite?vBem, espero? Mas, do fundo do coração, senhor, fiquei feliz quando a sra. Dempster me contou esta manhã que o senhor estava bem e dormindo profundamente quando ela chegou.” “Ah!, tudo correu bem para mim”, respondeu ele, sorrindo, “as ‘algumas coisas’ não me perturbaram, até agora. Apenas os ratos; e eles tinham um circo, francamente, por todos os cantos. Houve um malvado, que parecia um diabo velho que sentou-se em minha própria cadeira ao lado da lareira e não queria ir embora, até que eu peguei o atiçador, e então ele subiu correndo pelo cordão da campainha e entrou por algum buraco na parede ou no tecto — não consegui ver por onde, estava muito escuro.” “Cruzes”, disse a sra. Witham, “um diabo velho e sentado em uma cadeira ao lado da lareira! Tome cuidado, senhor! Tome cuidado! Muita verdade é dita em tom de brincadeira.” “O que quer dizer? Juro que não entendi.” “Um velho diabo! O velho diabo, talvez. Ora, senhor, não deve rir!”, pois Malcolmson dera uma sonora gargalhada. “Vocês, jovens, pensam que é fácil rir de coisas que fazem tremer os mais velhos. Não faz mal, senhor! Não faz mal! Deus queira que o senhor ria sempre. É tudo que eu lhe desejo!” E a boa senhora iluminou-se toda com a simpatia e a alegria demonstrada por ele; seus temores desapareceram por um instante. “Ah!, perdoe-me!” disse Malcolmson depois. “Não me tome por mal-educado; mas a ideia foi demais para mim — que o próprio velho diabo esteve na cadeira a noite passada!” E tal pensamento o fez rir novamente. Então ele foi para casa jantar. Naquela noite, as corridas dos ratos começaram mais cedo; na verdade, já aconteciam antes de sua chegada e somente cessaram quando a novidade de sua presença os perturbou. Após o jantar, ele sentou-se ao lado do fogo por um tempo e fumou; e, depois de tirar a mesa, começou a trabalhar como antes. Essa noite os ratos perturbaram-no mais do que na noite anterior. Como corriam para cá e para lá, para cima e para baixo! Como guinchavam e arranhavam e roíam! Como, tornando-se mais audaciosos, aproximavam-se da abertura de seus buracos, das frestas e das rachaduras dos lambris até que seus olhos brilhassem como lampadazinhas à medida que o fogo aumentava ou diminuía. Mas para Malcolmson, agora sem dúvida acostumado a eles, seus olhos não eram malignos; ele apenas sentia seu espírito brincalhão. Por vezes, o mais ousado fazia incursões pelo chão ou ao longo das molduras dos lambris. De quando em quando, sentindo-se perturbado, Malcolmson fazia um som para amedrontá-los, batendo na mesa com a mão ou emitindo um ameaçador “Fora, fora!” para que fugissem imediatamente para seus buracos. E assim passou a primeira parte da noite; e apesar do barulho Malcolmson absorveu-se outra vez em seu trabalho. De repente ele parou, como na noite anterior, tomado de uma súbita sensação de silêncio. Não havia o menor ruído de roedura, arranhadura ou guincho. O silêncio era tumular. Ele lembrou-se da estranha ocorrência da noite anterior e instintivamente olhou para a cadeira próxima à lareira. E então um sentimento estranhíssimo atravessou-o. Lá, na grande e velha cadeira de espaldar alto de carvalho entalhado ao lado da lareira, estava sentado o mesmo rato enorme, encarando-o fixamente com olhos malévolos. Instintivamente ele pegou o que estava mais próximo de sua mão, um livro de logaritmos, e atirou-o em sua direcção. Não acertou a pontaria e o rato não se mexeu, e assim o blefe da noite anterior repetiu-se; e novamente o rato, caçado de perto, fugiu pelo cordão da campainha. Estranhamente também, a partida desse rato foi instantaneamente acompanhada do ressurgimento do barulho pela comunidade geral dos ratos. Nessa hora, assim como na noite anterior, Malcolmson não conseguiu ver em que parte da sala o rato desaparecera, pois a luz verde de seu candeeiro deixava a parte superior na escuridão, e o fogo estava baixo. Ao olhar para seu relógio, ele descobriu que era perto da meia-noite; e, nada triste pela interrupção, acendeu o fogo e fez sua chaleira de chá nocturno. Ele trabalhara durante um bom tempo e sentiu-se merecedor de um cigarro; e, assim, sentou-se na grande cadeira de carvalho entalhado diante do fogo e desfrutou dele. Enquanto fumava, começou a pensar que gostaria de saber por onde o rato desaparecera, pois tinha algumas ideias para o dia seguinte, não inteiramente desligadas de uma ratoeira. E assim, ele acendeu outro lampião e colocou-o de modo a que brilhasse bem dentro do canto direito da parede ao lado da lareira. Pegou todos os livros que trouxera e colocou-os à mão para atirá-los ao vilão. Por fim, levantou o cordão da campainha e pôs sua extremidade sobre a mesa, prendendo-a sob o lampião. Enquanto o manipulava, não pôde deixar de observar como era flexível, especialmente para um cordão tão forte e sem uso. “É possível enforcar um homem com ele”, pensou consigo. Quando completou seus preparativos, olhou em volta e disse complacentemente: “E agora, meu amigo, acho que fisgaremos você, desta vez!” Ele recomeçou seu trabalho, e embora, como antes, de início o ruído dos ratos o perturbasse, logo mergulhou nas suas proposições e em seus problemas. Novamente o ambiente próximo chamou-lhe de repente a atenção. Desta vez poderia não ter sido o súbito silêncio apenas; houve um ligeiro movimento do cordão, e o lampião mexeu-se. Sem fazer um movimento, olhou para ver se sua pilha de livros estava ao alcance e então correu os olhos pelo cordão. Enquanto olhava, viu o grande rato cair do cordão para a poltrona de carvalho e sentar-se lá, encarando-o. Ele levantou um livro com o braço direito e, fazendo pontaria, atirou-o no rato. Este, com um movimento rápido pulou para o lado e esquivou-se do projéctil. Pegou um outro livro, um terceiro e atirou-os um após outro no rato, mas todas as vezes sem sucesso. Por fim, como ele estivesse com um livro na mão para atirar, o rato guinchou e pareceu amedrontado. Isso fez com que Malcolmson ficasse mais do que nunca impaciente por atingi-lo, e o livro voou e atingiu o rato com uma pancada que ressoou. Ele deu um guincho de terror e, devolvendo ao seu perseguidor um olhar de terrível malignidade, subiu o espaldar da cadeira, deu um grande salto para o cordão da campainha e subiu como um raio. O lampião balançou com o puxão súbito, mas era pesado e não virou. Malcolmson seguiu o rato com os olhos e viu-o, à luz do segundo candeeiro, saltar para a moldura dos lambris e desaparecer por um buraco em um dos grandes quadros que pendiam da parede, obscurecido e invisível pela camada de sujeira e de poeira. “Procurarei a morada de meus amigos pela manhã”, disse o estudante, enquanto reunia seus livros. “O terceiro quadro a partir da lareira; não vou me esquecer.” Pegou os livros um a um, fazendo comentários sobre eles enquanto os levantava. “Com o Secções Cônicas ele não se importa, nem Oscilações Cicloidais, nem o Principia, nem os Quatérnios, nem aTermodinâmica. E aqui está o livro que o afugentou!” Malcolmson pegou-o e olhou para ele. Quando o fez, foi tomado de espanto e uma súbita palidez espalhou-se pelo rosto. Olhou em volta inquieto e estremeceu ligeiramente, enquanto murmurava consigo:“A Bíblia que minha mãe me deu! Que extraordinária coincidência!” Sentou-se para trabalhar novamente, e os ratos nos lambris recomeçaram seus jogos. Eles não o perturbaram, contudo: de certo modo, sua presença deu-lhe uma sensação de companheirismo. Mas não conseguiu concentrar-se no trabalho e, após tentar dominar o assunto de que se ocupava, desistiu e foi para a cama enquanto a primeira réstia do amanhecer entrava pela janela leste. Ele caiu em um sono pesado, mas inquieto e dormiu durante muito tempo; e, quando a sra. Dempster despertou-o na manhã já bem avançada, pareceu pouco à vontade e por alguns minutos não parecia perceber exactamente onde estava. Seu primeiro pedido surpreendeu a criada. “Sra. Dempster, enquanto eu estiver fora hoje, gostaria que a senhora pegasse a escada e espanasse aqueles quadros, especialmente o terceiro a partir da lareira. Quero ver como são.” No fim da tarde, Malcolmson trabalhou em seus livros na aléia sombreada, e a alegria do dia anterior retornou-lhe à medida que transcorria o dia, e ele descobriu que sua leitura estava indo a bom passo. Conseguira solucionar satisfatoriamente todos os problemas que até então o frustravam e estava em um estado tão eufórico que fez uma visita à sra. Witham no “Bom Viajante”. Encontrou um estranho na aconchegante sala de estar com a proprietária, que lhe foi apresentado como dr. Thornhill. Ela não estava muito à vontade, e esse fato, associado ao dilúvio de perguntas da parte do dr. Thornhill, levou Malcolmson à conclusão de que sua presença não era um acidente e portanto, sem formalidades, ele disse: “Dr. Thornhill, com prazer responderei a qualquer pergunta que o senhor quiser me fazer se me responder primeiro a uma.” O doutor pareceu surpreso, mas sorriu e respondeu de imediato. “Combinado! E qual é ela?” “A sra. Witham pediu-lhe que viesse, encontrasse-me e me aconselhas-se?” O dr. Thornhill por um instante ficou espantado, e a sra. Witham enrubesceu violentamente e saiu; mas o doutor era uma pessoa franca e directa e respondeu imediata e abertamente: “Sim, mas não queria que o senhor soubesse. Acho que foi minha pressa desajeitada que o fez suspeitar. Ela me disse que não gostava da ideia de o senhor ficar sozinho naquela casa e que julgava que o senhor tomava muito chá. Na verdade, ela quer que eu o aconselhe a, se possível, desistir do chá muito tarde à noite. Fui um estudante dedicado em minha época, e portanto imagino poder tomar a liberdade de um académico e, sem ofendê-lo, aconselhá-lo na qualidade de alguém não muito estranho.” Malcolmson, com um sorriso aberto estendeu a mão. “Aperte, como dizem na América!”, disse. “Devo agradecer-lhe pela gentileza e também à sra. Witham, e sua gentileza merece um retorno de minha parte. Prometo  não tomar mais chá forte... nenhum chá até que o senhor me permita. E que irei para a cama esta noite à uma hora, no mais tardar. Está bem assim?” “Muitíssimo bem”, disse o doutor. “Agora, conte-nos tudo que observou na velha casa”, e assim Malcolmson ali mesmo contou com detalhes tudo que acontecera nas duas últimas noites. Ele foi interrompido de quando em quando por exclamações da sra. Witham, até que finalmente, quando narrou o episódio da Bíblia, a emoção crescente da proprietária exprimiu-se num grito; e não foi senão depois de um bom copo de conhaque com água que ela se recompôs. O dr. Thornhill ouviu com fisionomia cada vez mais soturna e, quando a narrativa terminou e a sra. Witham se recuperou, perguntou: “O rato subiu sempre pelo cordão da campainha?” “Sempre.” “Imagino que o senhor saiba”, disse o doutor, após uma pausa, “que cordão é esse”. “Não, não sei!” “É”, disse o doutor lentamente, “a mesma corda que o carrasco usava para as vítimas do rancor jurídico do Juiz!” Aqui ele foi interrompido por um outro grito da sra. Witham, e tiveram que providenciar sua recuperação. Malcolmson, após ter olhado para seu relógio e descoberto que estava perto da hora do jantar, fora para casa antes do completo restabelecimento da sra. Witham. Quando a sra. Witham conseguiu recompor-se, ela praticamente investiu contra o doutor com perguntas agressivas acerca do que ele quisera dizer ao pôr ideias tão horríveis na cabeça do pobre jovem. “Ele já tem o suficiente lá para aborrecê-lo”, acrescentou ela. O dr. Thornhill replicou: “Minha cara senhora, meu propósito foi muito claro! Queria chamar a atenção dele para o cordão da campainha e a necessidade de mantê-la lá. Pode ser que ele esteja realmente exausto e se tenha dedicado demais aos estudos, embora eu possa dizer que parece ser o jovem mais forte e saudável, mental e fisicamente, que já vi. Mas os ratos... e aquela insinuação do diabo...” O doutor balançou a cabeça e continuou. “Eu queria oferecer- me para ficar esta noite com ele, mas tive certeza de que teria sido motivo de ofensa. Ele pode, à noite, ser tomado de estranho medo ou alucinação; e se ele o for, quero que ele puxe aquele cordão. Como ele está sozinho, isso nos alertará e poderemos chegar a tempo de socorrê-lo. Ficarei acordado até bem tarde esta noite e de ouvidos atentos. Não se assuste se Benchurch tiver uma surpresa antes do amanhecer.” “Doutor, o que o senhor quer dizer? O que quer dizer?” “Quero dizer o seguinte: que é possível — não, mais provável — que ouçamos a grande campainha da Casa do Juiz esta noite”, e a saída do doutor foi tão significativa quanto se poderia imaginar. Quando Malcolmson chegou à casa, descobriu que era um pouco mais tarde do que o habitual, e a sra. Dempster já se fora: as regras do asilo de Greenhow não deveriam ser desobedecidas. Ele ficou feliz em ver o lugar limpo e arrumado, com um fogo agradável e um lampião bem ajustado. A noite estava mais fria do que se poderia esperar em Abril, e um vento forte soprava e sua força aumentava com tal rapidez que se podia prever com certeza uma tempestade durante a noite. Por alguns minutos após sua entrada, o ruído dos ratos cessou; mas, assim que eles se acostumaram à sua presença, começaram novamente. Ele ficou contente ao ouvi-los, pois teve uma vez mais a sensação de companhia que o ruído lhe dava, e veio-lhe rápida e novamente à mente o estranho fato de que eles apenas silenciavam para avisar que o outro — o grande rato com olhos malévolos — entrava em cena. Somente o lampião para leitura estava aceso, e sua sombra verde mantinha no escuro o tecto e a parte superior da sala, dando à luz agradável da lareira, que se difundia sobre o chão e brilhava no tecido branco que recobria a extremidade da mesa, uma qualidade acolhedora e alegre. Malcolmson sentou-se para jantar com bom apetite e espírito animado. Após o jantar e um cigarro, ele sentou-se com o firme propósito de estudar, determinado a não deixar que nada o perturbasse, pois se lembrava da promessa ao doutor, e decidiu aproveitar ao máximo o tempo restante. Durante mais ou menos uma hora, ele trabalhou bem, e então seus pensamentos começaram a afastar-se de seus livros. As circunstâncias actuais a sua volta, as exigências de sua atenção física e sua susceptibilidade nervosa eram inegáveis. A essa altura, o vento transformara-se em ventania, e a ventania, em tempestade. A velha casa, sólida que fosse, parecia tremer em suas fundações, e a tempestade rugia e intensificava-se através de suas muitas chaminés e suas bizarras torres antigas, produzindo sons estranhos, sobrenaturais, nas salas e corredores vazios. Até mesmo a grande campainha no teto deve ter sentido a força do vento, pois o cordão levantou-se e caiu ligeiramente, como se o sino fosse movido um pouco de tempos em tempos, e a corda flexível caiu no assoalho de carvalho com um som forte e oco. Quando Malcolmson o ouviu, lembrou-se das palavras do doutor: “É a corda que o carrasco usava para as vítimas do rancor jurídico do Juiz”. Dirigiu-se ao canto da lareira e pegou-a para examiná-la. Dela emanava uma espécie de atracção irresistível, e enquanto esteve lá, ele perdeu-se por um momento em especulações acerca de quem eram essas vítimas e do desejo sinistro do Juiz de manter uma lembrança tão horrível sob seus olhos. Enquanto estava lá, o balançar da campainha no tecto ainda levantava a corda de quando em quando; mas então veio uma nova sensação — uma espécie de tremor na corda, como se algo estivesse a mover-se ao longo dela. Olhando instintivamente para cima, Malcolmson viu o grande rato descendo lentamente em sua direcção, encarando-o fixamente. Ele largou a corda e pulou para trás, resmungando uma maldição, e o rato, virando-se, subiu novamente pela corda e desapareceu; no mesmo instante Malcolmson percebeu que o ruído dos ratos, que havia cessado por um certo tempo, recomeçou. Tudo isso o pôs a pensar, e ocorreu-lhe que não investigara a toca do rato ou examinado os quadros, como pretendia. Acendeu o outro lampião sem copa e, erguendo-o, dirigiu-se para o terceiro quadro ao lado da lareira, no lado direito onde vira o rato desaparecer na noite anterior. Assim que olhou, ele deu um salto para trás tão de repente que quase deixou cair o lampião, e uma palidez mortal espalhou-se pelo seu rosto. Seus joelhos tremeram, grossas gotas de suor desceram-lhe pela testa e ele estremeceu como um álamo. Mas ele era jovem e corajoso, e recompôs-se; após uma pausa de alguns segundos, deu novamente alguns passos à frente, levantou o lampião e examinou o quadro, que fora espanado e lavado e agora estava bem visível. Era de um juiz, vestido com sua toga púrpura e arminho. Seu rosto era duro e cruel, mau, astucioso e vingativo, com uma boca sensual, nariz adunco e rubicundo, com a forma do bico de uma ave predadora. O restante do rosto era de cor cadavérica. Os olhos possuíam um brilho singular e uma expressão terrivelmente maligna. Ao olhar para eles, Malcolmson gelou, pois enxergou ali a própria imitação dos olhos do grande rato. O candeeiro quase caiu de sua mão, ele viu o rato com seus olhos malévolos espiando através do buraco no canto do quadro e notou o súbito cessar do ruído dos outros ratos. Contudo, ele se recompôs e continuou a examinar o quadro. O Juiz estava sentado em uma grande cadeira de carvalho com espaldar alto, no lado direito de uma grande lareira de pedra, onde, no canto, pendia uma corda desde o teto, a extremidade enrolada no chão. Com uma sensação de algo semelhante a horror, Malcolmson reconheceu a cena da sala como estava e olhou em volta, tomado de pavor, como se esperasse encontrar alguma estranha presença atrás de si. Então ele olhou para o canto da lareira — e com um grito deixou o lampião cair-lhe da mão. Lá, na cadeira do Juiz, com a corda pendendo atrás, estava sentado o rato com os olhos malévolos do Juiz, agora intensificados e com laivos demoníacos. Salvo pelo rugido da tempestade, lá fora era tudo silêncio. O lampião caído despertou Malcolmson. Felizmente era de metal e, assim, o óleo não espirrara. Todavia, a necessidade prática de cuidar dele imediatamente acalmou o seu nervosismo. Quando ele o apagou, enxugou a fronte e pensou por um instante. “Isso não vai bem”, disse consigo. “Se continuar assim, tornar-me-ei um tolo insensato. Isso deve acabar! Prometi ao doutor que não tomaria chá. De fato, ele tinha toda razão! Devo estar ficando doente dos nervos. Estranho que não o notasse. Nunca me senti melhor em toda a minha vida. Mas está tudo bem agora, e não me comportarei como um tolo novamente.” Então ele misturou um copo bem forte de conhaque e água e resolutamente sentou-se para trabalhar. Era quase uma hora quando levantou os olhos do livro, perturbado pelo súbito silêncio. Lá fora, o vento uivava e rugia mais alto do que nunca, e a chuva atingia pesadamente as janelas, batendo como granizo no vidro; mas dentro não se ouvia um som sequer, excepto o eco do vento, quando ele rugia na grande chaminé, e de quando em quando silvavam uns poucos pingos de chuva que desciam pela chaminé quando a tempestade amainava. O fogo baixara e deixara de arder, embora lançasse um brilho avermelhado. Malcolmson prestou atenção e então ouviu um ruído leve, um guincho muito fraco. Ele vinha do canto da sala onde pendia a corda, e ele julgou que fosse o arrastar da corda no assoalho, ao balançar da campainha, que a levantava e baixava. Ao olhar para cima, contudo, viu, iluminado vagamente, o grande rato agarrado à corda e a roê-la. A corda já estava quase partida — ele podia ver a cor mais clara onde as fibras estavam descobertas. Enquanto olhava, o trabalho completou-se, e a extremidade cortada da corda caiu com estrépito sobre o assoalho de carvalho, enquanto, por um instante, o grande rato permanecia como um puxador ou uma boda no fim da corda, que agora começava a balançar para cá e para lá. Malcolmson sentiu por um momento uma outra fisgada de terror enquanto pensou que agora a possibilidade de chamar o mundo exterior em seu socorro estava eliminada, mas uma raiva intensa tomou seu lugar e, agarrando o livro que estivera lendo, arremessou-o contra o rato. O golpe foi certeiro, mas antes que o projéctil o alcançasse, o rato caiu e atingiu o chão com um baque surdo. Malcolmson imediatamente atirou-se em sua direcção, mas ele safou-se e desapareceu na escuridão das sombras da sala. Malcolmson sentiu que seu trabalho havia terminado naquela noite, e decidiu, lá e então, variar a monotonia das acções por uma caça ao rato e tirou a copa verde do lampião para prover uma iluminação mais ampla. Quando o fez, a penumbra da parte superior da sala se desfez, e ao novo fluxo de luz, grande em comparação à escuridão anterior, os quadros na parede mostraram-se claramente. De onde estava, Malcolmson viu exactamente na parte oposta àquela em que estava o terceiro quadro na parede, à direita da lareira. Esfregou os olhos surpreso e então um grande medo começou a tomá-lo. No centro do quadro, havia um grande remendo irregular de tela marrom, tão novo como quando fora esticado na moldura. O fundo estava como antes, com a cadeira, o canto da chaminé e a corda, mas a figura do Juiz desaparecera. Malcolmson, quase paralisado num arrepio de horror, virou-se lentamente e então começou a sacudir-se e a tremer como alguém tomado de paralisia. Suas forças pareciam tê-lo abandonado, e estava incapaz de acção ou movimento e mal podia até mesmo pensar. Ele conseguia apenas ver e ouvir. Lá, na grande cadeira de carvalho com espaldar alto, estava sentado o Juiz, em sua toga escarlate com arminho, com seus olhos malévolos olhando vingativamente e um sorriso de triunfo na boca resoluta, cruel, enquanto levantava com as mãos um barrete negro. Malcolmson sentiu como se seu sangue fugisse do coração, como alguém em momentos de prolongada expectativa. Uma cantiga soava em seus ouvidos. Fora, ele podia ouvir o rugido e o troar da tempestade e, através dele, varrido pela tempestade, vinha o soar da meia-noite pelos grandes sinos da praça do mercado. Ele permaneceu, por um espaço de tempo que lhe pareceu interminável, imóvel como uma estátua e com olhos arregalados, aterrorizados, sem fôlego. Quando o relógio bateu, o sorriso de triunfo no rosto do Juiz intensificou-se e ao último toque da meia-noite ele colocou o barrete negro em sua cabeça. Lenta e deliberadamente, o Juiz levantou-se de sua cadeira e apanhou o pedaço de corda da campainha que jazia no chão, envolveu-o nas mãos como se lhe agradasse seu toque e então, com determinação, começou a enrolar uma das extremidades, dando-lhe a forma de um laço. Ele o apertou e testou com o pé, puxando forte até ficar satisfeito e então fez um nó corrediço, que segurou com a mão. Depois, ele começou a mover-se ao longo da mesa, no lado oposto ao de Malcolmson, mantendo nele os olhos até passar por ele, quando, com um movimento rápido, postou-se em frente à porta. Malcolmson então começou a sentir que estava preso em uma armadilha e tentou pensar no que poderia fazer. Havia algo de fascinante nos olhos do Juiz, dos quais ele não conseguia desviar os seus, obrigando-o a encará-lo. Viu o Juiz aproximar-se — ainda no meio do caminho entre ele e a porta — levantar o laço e jogá-lo em sua direcção como que para prendê-lo. Com um grande esforço ele fez um movimento rápido para o lado e viu a corda cair a seu lado e ouviu-a bater contra o assoalho de carvalho. Novamente o Juiz levantou o laço e tentou apanhá-lo, mantendo sempre seus olhos malévolos fixos nele, e a cada vez, com um enorme esforço, o estudante mal conseguiu desviar-se. Assim foi por muitas vezes, o Juiz aparentemente nunca disposto a desistir e a perder a calma, mas brincando como um gato com um rato. No clímax do desespero, Malcolmson lançou um rápido olhar a sua volta. A luz do lampião parecia ter reavivado e havia luz bastante na sala. Nos muitos buracos de rato e nas frestas e rachaduras dos lambris, ele viu os olhos dos ratos; e esse aspecto, que era puramente físico, deu-lhe um vislumbre de consolo. Olhou em volta e viu que a corda da grande campainha estava cheia de ratos. Cada centímetro dela estava coberto e cada vez mais uma multidão deles escorria do pequeno buraco circular no forro, de onde ela saía, de tal forma que, com seu peso, o sino começava a balançar. Ouça! Ela balançara até que o badalo tocou o sino. O som era muito fraco, mas o sino estava apenas começando a balançar e aumentaria. Ao som, o Juiz, que estivera com os olhos fixos em Malcolmson, olhou para cima e um repente de ira diabólica espalhou-se sobre seu rosto. Seus olhos faiscaram como brasas ardentes e ele bateu os pés com um som que parecia fazer tremer a casa. Um terrível troar de relâmpago rebentou acima quando ele levantou novamente a corda, enquanto os ratos continuavam a correr para cima e para baixo da corda, como que correndo contra o tempo. Desta feita, em vez de atirá-la, ele aproximou-se de sua vítima e abriu o laço. Enquanto ele se aproximava, parecia haver algo paralisante na sua própria presença, e Malcolmson permaneceu rígido como um cadáver. Ele sentiu os dedos gelados tocarem sua garganta ao ajustar a corda. O laço apertava cada vez mais. Então o Juiz, tomando em seus braços a forma rígida do estudante, levantou-o e colocou-o sentado na cadeira de carvalho e, subindo ao seu lado, estendeu a mão e agarrou a ponta da corda balouçante da campainha. Quando levantou sua mão, os ratos fugiram guinchando e desapareceram no buraco do tecto. Tomando a ponta do laço que estava em volta do pescoço de Malcolmson, atou-a à corda balouçante do sino e então, descendo, empurrou para longe a cadeira.

* * *
Quando o sino da Casa do Juiz começou a soar, muita gente acatou ao chamado. Luzes e tochas de diversos tipos surgiram e logo uma multidão silenciosa correu ao local. Bateram com força à porta, mas não houve resposta. Arrombaram a porta e invadiram a grande sala de jantar, com o doutor à frente. Na ponta da corda da grande campainha pendia o corpo do estudante e, no rosto do Juiz, no quadro, havia um sorriso maligno.

Bram Stoker

domingo, 17 de abril de 2016

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

RITCHIE BLACKMORE - «Bullfrog»

Poet'anarquista

Ritchie Blackmore
Guitarrista dos Deep Purple a Solo

OUTROS CONTOS

«O Mistério da Palavra», conto poético por Adolfo Simões Muller.

«O Mistério da Palavra»
Poema de Adolfo Simões Muller

777- «O MISTÉRIO DA PALAVRA»

Porque será que uma palavra aflora
correspondendo logo ao nosso apelo,
com a medida justa, o justo emprego,
enquanto noutras vezes se demora
(rimmel, bâton, um jeito no cabelo…)
e chega em voo cego de morcego?

Porque será que uma palavra quase
vai buscar outra dentre a multidão,
e esta segunda, uma terceira e quarta,
e assim nasce de súbito, uma frase,
um belo verso, a quadra ou a canção,
a sentença de morte, a tua carta?

Porque será que uma palavra, impávida,
resiste aos séculos e fica jovem,
ou morre (cancro, enfarte, dor reumática),
enquanto outra, novinha, surge grávida,
e aos nove meses os filhinhos chovem
que é um louvar a Deus e à gramática?

Porque será que a rima atrai a rima,
e a rima nova é como o vinho novo
que salta e espuma e baila na garganta?
E outra rima! Outras rimas! A vindima
das palavras não pára… E, no renovo,
o poema é estrela que alumia e canta!

Porquê este mistério, Poesia?
És tal e qual a electricidade:
existe mas nem sempre a gente a vê.
Porque foges um ano e mais um dia
e voltas, alta noite, claridade?
Porquê? Porque será? Porquê? Porquê?

Adolfo Simões Muller