Carta de Jean-Paul Sartre recusando o Prémio Nobel de
Literatura.
Nobel da Literatura
Medalha (frente e verso)
CARTA DE RECUSA
Lamento vivamente que este assunto tenha tomado a aparência
de um escândalo; um prémio foi concedido e alguém o recusa. Isto se deve ao facto
de que não fui informado devidamente a tempo do que se preparava. Li no “Le
Figaro Litteraire”, de 15 do corrente mês, sob a assinatura do correspondente
sueco deste jornal, que a maioria na Academia Sueca era a meu favor, mas não
havia sido ainda definitivamente fixada, pelo que bastava escrever uma carta à
Academia, o que fiz no dia seguinte, para pôr um ponto final ao assunto e não
mais se falasse dele. Eu ignorava, então, que o Prémio Nobel é outorgado sem
que se peça a opinião ao interessado e pensei que ainda era tempo de impedi-lo.
Mas compreendo muito bem que quando a Academia Sueca faz sua escolha, já não
pode voltar atrás. As razões pelas quais renuncio ao prémio não se referem nem
à Academia Sueca, nem ao Prémio Nobel em si, como já expliquei em minha carta à
Academia. Nela invoquei duas espécies de razões; razões pessoais e razões objectivas.
As razões pessoais são as seguintes: minha negativa não é um acto improvisado.
Sempre recusei as distinções oficiais. Quando, depois da guerra, em 1945, me
propuseram a Legião de Honra, recusei-a, apesar de possuir amigos no Governo.
Igualmente nunca aceitei ingressar no Colégio de França como sugeriram alguns
de meus amigos. Esta atitude é baseada em minha concepção do trabalho do
escritor. Um escritor que assume posições políticas, sociais ou literárias
somente deve agir com meios que lhes são próprios, isto é, com a palavra
escrita. Todas as distinções que possa receber expõem seus leitores a uma
pressão que não considero desejável. Não é a mesma coisa se eu assino Jean-Paul
Sartre que se eu assino Jean-Paul Sartre, Prémio Nobel. O escritor que aceita
uma distinção deste género compromete, também, a associação ou instituição que
a outorga: minhas simpatias pelos guerrilheiros venezuelanos somente a mim
comprometem, mas se o Prémio Nobel Jean-Paul Sartre toma partido pela
resistência na Venezuela, arrasta consigo todo o Prémio Nobel como instituição.
Nenhum escritor deve deixar-se transformar em Instituição, mesmo que isto se
verifique pela mais honrosa forma, como no caso presente. Esta atitude é
inteiramente pessoal e, evidentemente, não representa nenhuma crítica contra
aqueles que já foram premiados. Tenho muita estima e admiração por muitos dos
laureados que conheci pessoalmente. Mas minhas razões objectivas são as
seguintes: – O único combate actualmente possível no campo da cultura é o da
existência pacífica das duas culturas, a do Leste e a do Oeste. Não quero dizer
com isso que seja necessário que se deem abraços. Sei perfeitamente que o
confronto entre estas duas culturas deve, por necessidade, adoptar a forma de
um conflito, conflito que deve ter lugar entre homens e entre culturas, mas sem
intervenção de instituições. Sinto pessoal e profundamente as contradições
entre as duas culturas: sou feito dessas contradições. Minhas simpatias vão
inegavelmente, para o socialismo e para o que se chama o Bloco do Leste, mas
vivi e me eduquei numa família burguesa e numa cultura burguesa. Isto me
permite colaborar com todos aqueles que querem aproximar ambas as culturas.
Espero, naturalmente que a melhor ganhe, isto é, o socialismo. Por isso é que
não posso aceitar nenhuma distinção concedida pelas altas instâncias culturais,
tanto de Leste como do Oeste, mesmo que admita sua existência. Embora todas as
minhas simpatias vão para o campo socialista, seria impossível para mim
aceitar, por exemplo, o Prémio Lenine, se alguém quisesse me conceder, o que
não se dá. Sei muito bem que o Prémio Nobel, por si mesmo, não é um prémio
literário do campo ocidental, mas se transforma no que se faz dele e podem
suceder coisas que os membros da Academia Sueca não podem prever. Por isto que,
na situação actual, o Prémio Nobel se apresenta objectivamente como uma distinção
reservada aos escritores do Oeste ou aos rebeldes do Leste. Não se premiou
Neruda, que é um dos maiores escritores americanos. Nunca se pensou seriamente
em Aragon, que bem o merece. É lamentável que se tenha concedido o prémio a
Pasternak e não a Cholokhov e que a única obra soviética coroada seja uma
editada no estrangeiro, proibida em seu país. Poder-se-ia ter estabelecido um
equilíbrio mediante um gesto análogo no outro sentido. Durante a guerra da
Argélia, quando assinamos o Manifesto dos 111 eu teria aceitado o prémio com
reconhecimento, porque ele não teria honrado somente a mim, mas à liberdade
pela qual lutávamos. Mas isso não aconteceu e é somente no fim dos combates que
se entregam os prémios. Na motivação da Academia Sueca se fala de liberdade: é
uma palavra que se presta a numerosas interpretações. No ocidente, se fala de
liberdade num sentido geral. Entendo a liberdade de uma forma mais concreta,
que consiste no direito de ter mais de um par de sapatos e de comer pão menos
duro. Parece-me menos perigoso declinar do prémio do que aceitá-lo. Se o
aceitasse, me prestaria ao que se pode chamar de uma ‘recuperação objectiva’.
Afirma o artigo do ‘Le Figaro Litteraire’ que ‘não se teria em conta meu
passado político discutido’. Sei que este artigo não exprime a opinião da
Academia Sueca, mas ele mostra claramente em que sentido seria interpretada
minha aceitação em certos meios de direita. Considero este ‘passado político
discutido’ como ainda válido, mesmo se disposto a reconhecer certos erros passados
perante meus camaradas. Não quero dizer que o Prémio Nobel seja um prémio
‘burguês’, mas esta seria a interpretação burguesa que dariam inevitavelmente
os meios que conhecemos. Finalmente, resta a questão do dinheiro. É
verdadeiramente grave que a Academia coloque sobre os ombros do laureado, além
da homenagem, uma soma enorme. Este problema me atormentou. Ou bem se aceita o
prémio e com a soma recebida se apoiam movimentos ou organizações que se
consideram importantes – de minha parte seria o Comité Apartheit de Londres –
ou bem se recusa o prémio em vista de virtude de princípios gerais, e se priva
este movimento ao apoio que necessita. Renuncio, evidentemente, às 250.000
coroas porque não quero ser institucionalizado nem ao Leste nem ao Oeste. Não se
pode pedir que se renuncie, por 250.000 coroas, aos princípios que não são
unicamente nossos, mas compartilhados por todos os nossos camaradas. Foi isto
que tornou tão penoso para mim tanto a atribuição do prémio como a recusa que
manifestei.
Quero terminar esta declaração com uma mensagem de simpatia ao povo
sueco.
Jean-Paul Sartre
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