segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

OUTROS CONTOS

«Boas Noites!», por Machado de Assis.

«Boas Noites!»
Carnaval em São Fidélis

986- «BONS NOITES!»

Ei-lo que chega... Carnaval à porta!... Diabo! aí vão palavras que dão ideia de um começo de recitativo ao piano; mas outras posteriores mostram claramente que estou falando em prosa; e se prosa quer dizer falta de dinheiro (em cartaginês, está claro) então é que falei como um Cícero.

Carnaval à porta. Já lhe ouço os guizos e tambores. Aí vêm os carros das ideias... Felizes ideias, que durante três dias andais de carro! No resto do ano ides a pé, ao sol e à chuva, ou ficais no tinteiro, que é ainda o melhor dos abrigos. Mas lá chegam os três dias, quero dizer os dois, porque o de meio não conta; lá vêm, e agora e a vez de alugar a berlinda, sair e passear.

Nem isso, ai de mim, amigas, nem esse gozo particular, único cronológico, marcado, combinado e acertado, me é dado saborear este ano. Não falo por causa da febre amarela; essa vai baixando. As outras febres são apenas companheiras. . . Não; não é essa a causa.

Talvez não saibam que eu tinha uma ideia e um plano [...]

Mas a falta de dinheiro (prosa, em língua púnica) não me permite pôr esta ideia na rua. Sem dinheiro, sem ânimo de o pedir a alguém, e, com certeza, sem ânimo de o pagar, estou reduzido ao papel de espectador. Vou para a turbamulta das ruas e das janelas; perco-me no mar dos incógnitos.

Já alguém me aconselhou que fosse vestido de tabelião. Redargui que tabelião não traz ideia; e depois, não há diferença sensível entre o tabelião e o resto do universo. Disseram-me que, tanto há diferença, que chega a havê-la entre um tabelião e outro tabelião.

– Não leu o caso do tabelião que foi agora assassinado, não sei em que vila do interior? Foi assassinado diante de cinquenta pessoas, de dia e na rua, sem perturbação da ordem pública. Veja se há de nunca acontecer coisa igual ao Cantanheda...

– Mas que é que fez o tabelião assassinado?

– É o que a notícia não diz, nem importa saber. Fez ou não fez aquela escritura. Casou com a sobrinha de um dissidente político. [...] Vista-se você de tabelião da roça, com um tiro de garrucha varando-lhe as costelas.

– Mas como hei de significar o tiro?

– Isto agora é que é ideia; procure uma ideia. Há de haver uma ideia qualquer que significa um tiro. Leve à orelha uma pena, na mão uma escritura para mostrar que é tabelião; mas como é tabelião político, tem de exprimir a sua opinião política. E outra ideia Procure duas ideias, a da opinião e a do tiro.

Fiquei alvoroçado, o plano era melhor que o outro, mas esbarrava sempre na falta de dinheiro para a berlinda, e agora no tempo para arranjar as ideias. Estava nisto, quando o meu interlocutor me disse que ainda havia ideia melhor.

– Melhor?

– Vai ver: comemorar a tomada da Bastilha, antes de 14 de julho.

– Trivial.

– Vai ver se é trivial. Não se trata de reproduzir a Bastilha, o povo parisiense e o resto, não senhor. Trata-se de copiar São Fidélis...

– Copiar São Fidélis?

– O povo de São Fidélis tomou agora a cadeia, destruiu-a, sem ficar porta, nem janela, nem preso, e declarou que não recebe o subdelegado que para lá mandaram. Compreende bem, que esta reprodução de 1789, em ponto pequeno, cá pelo bairro é uma boa ideia.

– Sim, senhor, é ideia... Mas então tenho de escolher entre a morte pública do tabelião e a tomada da cadeia! Se eu empregasse as duas?

– Eram duas ideias.

– Com umas brochadas de anarquia social, mental, moral, não sei mais qual?

– Isso então é que era um cacho de ideias... Falta-lhe só a berlinda.

– Falta-me prosa, que é como os soldados de Aníbal chamavam ao dinheiro. Uba sacá prosa nanupacatu. Em português: "Falta dinheiro aos heróis de Cartago para acabar com os romanos. "Ao que respondia Aníbal: Tunga loló. Em português: Boas noites.

Machado de Assis

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