quinta-feira, 17 de outubro de 2013

OUTROS CONTOS

«Revolução», por José Gomes Ferreira.

«Revolução»
Povo/MFA - 25 de Abril de 1974

9- REVOLUÇÃO

Manhãzinha cedo, senti acordar-me o sopro da voz ciciada de minha mulher:
- O Fafe telefonou de Cascais, ... Lisboa está cercada por tropas…
Refilo, rabugento:
- Hã? (...)

Levanto-me preparado para o pesadelo de ouvir tombar pedras sobre cadáveres. Espreito através da janela. Pouca gente na rua. Apressada. Tento sintonizar a estação da Emissora Nacional. Nem um som. Em compensação o telefone vinga-se desesperadamente. Um polvo de pânico desdobra-se pelos fios. A campainha toca cada vez mais forte.
Agora é o Carlos de Oliveira.
- Está lá? Está lá? É você, Carlos? Que se passa?
Responde-me com uma pergunta qualquer do avesso.

Às oito da manhã o Rádio Clube emite um comunicado ainda pouco claro:
- Aqui, Posto de Comando das Forças Armadas. Não queremos derramar a mínima gota de sangue.
De novo o silêncio. Opressivo. De bocejo. Inútil. A olhar para o aparelho.
Custa-me a compreender que se trate de revolução. Falta-lhe o ruído, (onde acontecerá o espectáculo?), o drama, o grito. Que chatice!

A Rosália chama-me, nervosa:
- Outro comunicado na Rádio. Vem, depressa. Corro e ouço:
- Aqui o Movimento das Forças Armadas que resolveu libertar a Nação das forças que há muito a dominavam. Viva Portugal!
Também pede à policia que não resista. Mas Senhor dos Abismos!, trata-se de um golpe contra o fascismo (isto é: salazismo-caetanismo). São dez e meia e não acredito que os «ultras» não se mexam, não contra-ataquem! (...)

A poetisa Maria Amélia Neto telefona-me: «Não resisti e vim para o escritório».
Os revoltosos estão a conferenciar com o ministro do Exército. Na Rádio a canção do Zeca Afonso: Grândola, vila morena ... Terra da fraternidade... O povo é quem mais ordena...
Sinto os olhos a desfazerem-se em lágrimas.

De súbito, aliás, a Rádio abre-se em notícias. O Marcelo está preso no Quartel do Carmo. A polícia e a Guarda Republicana renderam-se. O Tomás está cercado noutro quartel qualquer. E, pela primeira vez, aparece o nome do General Spínola. Novo comunicado das Forças Armadas. O Marcelo ter-se-á rendido ao ex-governador da Guiné. (Lembro-me do Salazar: «o poder não pode cair na rua»).

Abro a janela e apetece-me berrar: acabou-se! acabou-se finalmente este tenebroso e ridículo regime de sinistros Conselheiros Acácios de fumo que nos sufocou durante anos e anos de mordaças. Acabou-se. Vai recomeçar tudo.

A Maria Keil telefonou. O Chico está doente e sozinho em casa. Chora. (Nesta revolução as lágrimas são as nossas balas. Mas eu vi, eu vi, eu vi! (...)

Antes de morrer, a televisão mostrou-me um dos mais belos momentos humanos da História deste povo, onde os militares fazem revoluções para lhes restituir a liberdade: a saída dos prisioneiros políticos de Caxias.

Espectáculo de viril doçura cívica em que os presos... alguns torturados durante dias e noites sem fim.... não pronunciaram uma palavra de ódio ou de paixões de vingança.
E o telefone toca, toca, toca... Juntámos as vozes na mesma alegria. (...)
Saio de casa. E uma rapariga que não conheço, que nunca vi na vida, agarra-se a mim aos beijos.

Revolução!

José Gomes Ferreira

1 comentário:

Camões disse...

Só tinha 14 anos... nesse dia não chorei.

Chorei mais tarde, na Mina do Bugalho, quando com um grupo de amigos fomos ouvir dois presos políticos que tinham regressado à sua terra.

Chorei, tal a desumanidade das histórias passadas numa pequena cela.

Para eles, irmanado em Abril...

Abril dos vermelhos cravos libertado
Devolves-te a esperança quase perdida,
A um povo que jazia amordaçado
Numa pátria há muito já esquecida!

Abril das palavras que se soltaram
Nos corações que pareciam não bater,
Ao mundo inteiro bem alto gritaram
Tudo quanto era preciso não esquecer!

Abril de revolução das nossas gentes
Enchendo as ruas com abraços fraternos!
Muitos sorrisos… tantos olhares contentes,
Momentos que sempre nos serão eternos!

Abril! Pode ser outro mês qualquer
De amor intenso e fraternidade...
Abril será quando um homem quiser,
Amar em cada instante a liberdade !!

Matias José ( 25-04-2009 )